Em musical no Rio sobre a cantora negra que dobrou a ópera, Isabel Fillardis brilha e prova que a luta é a mesma 200 anos depois


Com Taís Araújo e Lázaro Ramos na plateia, “Lapinha” narra a trajetória da mineira que superou preconceitos e conquistou Portugal com o bel canto, em peça com direção precisa de Édio Nunes

* Com André Vagon

Isabel Fillardis é figura curiosa. Começou a vida como modelo na virada dos anos 1980/90 – época em que ser modelo não garantia rios de dinheiro como atualmente, mas quando todo país procurava sua equivalente a Naomi Campbell ou Iman, as raríssimas negras que então dominavam os editoriais de moda. Depois, se tornou atriz, e a estreia na TV veio em “Renascer” (1993), de Benedito Ruy Barbosa, não parando mais de atuar, com algumas participações bissextas no cinema. Agora, ela empresta sua linda figura ao teatro, como protagonista de “Lapinha”, projeto pessoal que lhe consumiu três anos sobre Joaquina Maria Conceição da Lapa – a Lapinha –, cantora lírica negra e atriz dramática que fez sucesso no Brasil Colônia e em Portugal, despertando a atenção de gente graúda como Dona Maria, a Louca, e Dom João VI. O texto de João Batista romantiza sua trajetória através dos poucos registros que se tem de sua pessoa, a maioria tirada de relatos jornalísticos do período, quando o mundo ocidental ainda sobrevivia maciçamente do trabalho escravo. Sabe-se que a personagem lutou com dificuldade contra as adversidades decorrentes de sua condição de negra para se estabelecer no meio artístico.

Isabel Filadis: boa dose de sua própria trajetória e a situação o artista negro no mercado inspiram a realização de "Lapinha" (Foto: Divulgação)

Isabel Filadis: boa dose de sua própria trajetória e a situação o artista negro no mercado inspiram a realização de “Lapinha” (Foto: Divulgação)

Mais metalinguagem, impossível: se Isabel tivesse surgido nas passarelas dez anos depois, poderia ter se beneficiado das fronteiras abertas por Shirley Mallmann e Gisele. Se houvesse aparecido na televisão uma década depois, teria aproveitado um pouquinho da presença de Taís Araújo e Lázaro Ramos nas mídias audiovisuais, dois atores que colaboram para, lentamente, subverter a máxima de que ator negro no Brasil só pode fazer papel de serviçal. Isabel ainda cometeu aquilo que poderia ser considerado um desatino para qualquer atriz, ainda mais uma de pele negra em ascenção: algumas interrupções no trabalho para se tornar a mãe de três filhos. Em um segmento cruel na hora de filtrar talentos pela cor da tez, dar um tempo na carreira, ainda jovem, para se dedicar à família pode parecer tão tempestuoso como desejar ser diva da ópera há 200 anos, quando ainda se acreditava que lugar de negro era no fogão. A obstinação de Joaquina pelo bel canto encontra eco no périplo de Isabel para por sua história de pé.

Bem verdade que, desde a década passada, a mídia tem procurado ajudar a sepultar preconceitos descabidos, e a prova são atores do calibre de Halle Berry, Denzel Washington e Morgan Freeman se tornarem artífices da indústria cinematográfica premiados com o Oscar de ‘Melhor Ator em Papel Principal’. Na verdade, quando Isabel ainda dava expediente nas passarelas, Washington e Freeman já estavam concorrendo ou sendo premiados com a estatueta de ‘Melhor Ator Coadjuvante’, mas essa questão nunca andou a passos largos, e basta conferir que o negro mais celebrado em Hollywood, Samuel L. Jackson, até hoje ainda não ganhou seu merecido trofeu.

No Brasil então nem se fala, e nem é preciso citar Ruth de Souza, Milton Gonçalves, Ailton Graça e tantos outros para confirmar que –  apesar de Lázaro e Taís, ambos presentes na plateia de “Lapinha”, no Teatro Clara Nunes, Rio, nesta noite de quarta-feira (15/10), em estreia somente para convidados –, muita coisa ainda precisa mudar.

No mundo lírico então, nem se fala. Apesar de alguns pouquíssimos monstros sagrados na cena mundial (como a soprano estadounidense Jessye Norman), ainda hoje o meio operístico é nada pródigo em oferecer oportunidades a cantores negros, e, dentro deste reduto, os próprios negros do coro de Theatro Municipal do Rio de Janeiro se reuniram, me meados dos anos oitenta, para formar a Ébano – Empresa Brasileira dos Artistas Negros da Ópera –, entidade que visava promover seus talentos e amealhar mais trabalho, com a saudosa mezzo soprano Conceição Gonçalves à frente, entre outros.

Passado esse longo prólogo que, por si só, contextualiza a importância da empreitada de Isabel Fillardis, vale informar que a peça musical é gostosíssima, de sinceridade ímpar como a protagonista e flui que é uma beleza. À vontade no papel, ela se vale se sua capacidade de interpretação para conferir veracidade, força e ternura à personagem, ainda que nem sempre se sinta absolutamente segura na hora de cantar. Apesar de belos momentos em que solta a voz, a atriz prefere se concentrar em sua zona de conforto, a atuação. Mas nada que prejudique o andamento da trama, até porque chega a ser ousado produzir um espetáculo biográfico sobre um personagem que ganhou a vida como cantora lírica, sem ser do ramo. Aliás, é essa boa dose de garra que leva Isabel adiante e tudo indica que um ou outro probleminha vocal aqui e ali deve se dissipar quando ela se perceber completamente confortável na dupla função de atuar e cantar. Ainda assim, ela consegue a proeza que muitos atores que cantam não conseguem: manter-se no personagem na hora de entoar a voz, coisa que costuma ser dificílima até para algumas cobras criadas nos musicais.

No elenco, um time barra pesada se encarrega de dividir a cena com ela: Zezeh Barbosa, deliciosa como sempre, magnética na interpretação, comicidade e na projeção de voz; Ruben Gabira, sensacional ator-cantor-bailarino com décadas de ótimos serviços prestados ao showbizz e que comparece no teatro, no mínimo, desde a antológica versão de “Chorus Line”, em meados dos anos 1980 – ao lado de Claudia Raia, Totia Meirelles, Thales Pan Chacon, Sheila Mattos e Roberto Lima –; Ivan Vellame, linda figura em cena, versátil e dotado de gogó poderoso; Naná Nascimento, divertidíssimo; e Helga Nemeczyk que, além de cantora fabulosa, tem timing de comédia precioso e, danadinha, sabe roubar a cena com ninguém, sendo responsável pelos momentos mais engraçados da peça.

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Igualmente na ficha técnica, Isabel se cercou de profissionais tarimbados e, curiosamente, a maioria negros, o que confere mais energia ainda ao resultado, dado o assunto. À frente deles, o ator, bailarino e coreógrafo Édio Nunes (Theatro Musical Brazileiro, Império) mais uma vez se aventura com competência na direção, lado a lado com Vilma Melo, com quem também dividiu o comando no premiado “Cabaré Dulcina”. Macaco velho dos palcos, o diretor pinta e borda com  tudo aquilo que aprendeu em anos de estrada emendando um espetáculo após outro, e sai da tarefa com louvor, costurando as cenas com a leveza que se espera de um texto ágil que, apesar da seriedade do enredo, prima pelo bom humor, cheio de sacadas rápidas saídas do teatro de revista.

Ao compor a música do espetáculo, o diretor musical Wladimir Pinheiro foi sábio na hora de juntar sonoridades que aproximam o lírico da música popular e batidas africanas, amplificadas por suave toque de opereta em caldeirão que sublinha perfeitamente o sentido do texto. E a turma a quem foi confiada a dupla missão do cenário e figurino – Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo – se sai bem da tarefa de compor a ambiência com verba curta. A sacada de misturar figurinos do Século XVIII com elementos casuais do vestuário contemporâneo disfarçam a grana apertada e ganha graça com a cartela de cores de variações de azul índigo e chambray – afinal, o jeans não é o mesmo mais democráticos dos tecidos, usado por pessoas de todos os credos e tons de pele, rompendo preconceitos e a divisão do mundo em classes sociais?

Infelizmente, o cenário, mais difícil de ser dobrado às limitações do orçamento, resulta em um todo um tanto mambembe, mas que se enquadra na proposta da obra, com a luz de Aurelio De Simoni compensando o conjunto. Mas, que o bom espetáculo merecia mais recursos cenográficos, fato! No fim, vale a empreitada, não somente pela vontade de por o espetáculo de pé, mas pelo resultado plenamente alcançado.

Blue jeans: da esquerda para a direita: Gabira, Zezeh, Isabel, Helga e Vellame; Sentado, Naná Nascimento (Foto: Divulgação)

Blue jeans: da esquerda para a direita: Gabira, Zezeh, Isabel, Helga e Vellame; Sentado, Naná Nascimento (Foto: Divulgação)

* André Vagon é coreógrafo pós-graduado em psico-motricidade, diretor de cena em show e eventos corporativos, estudioso e professor de dança, tendo atuado por mais 20 anos como bailarino profissional. Crítico de dança e espetáculos do HT, para ele a vida é puro movimento

Serviço:

Local: Teatro Clara Nunes – Shopping da Gávea (Rua Marques de São Vicente, 52, 3o Piso)

Telefone: (21) 4003-2330

Bilheteria: de terça a domingo, a partir das 15h

Estreia: 15 de outubro. Temporada até 19/12

Valor: R$ 60

Horário: quarta 21h, quinta 18h30 e sexta 19h

Capacidade: 435 lugares

Duração: 80 minutos

Classificação: livre

Gênero: musical