‘Me senti provocado a explorar musicalidade africana, pensar pretitude e energia da periferia’, diz Rincon Sapiência


Com a temperatura nas alturas o rapper paulista incendiou o Circo Voador no lançamento do disco Mundo Manicongo: dramas, danças e afroreps. A noite histórica contou com as presenças do baiano Hiran, da cantora Lellê e da coreógrafa Gabb Cabo Verde, exaltando os conceitos de ‘nós por nós’ e ubuntu em uma ode à cultura negra

Rincon Sapiencia lançou o disco Mundo Manicongo: dramas, danças e afroreps, no Circo Voador (Foto: Andreh Santos)

*Por Rafael Moura

Os termômetros na Lapa marcavam 36º C, mas no Circo Voador passavam dos 50. Afinal foi uma noite histórica para os fãs do rap nacional. O grande poeta do hip hop, Rincon Sapiencia, lançou o álbum ‘Mundo Manicongo: dramas, danças e afroreps’. O show de abertura ficou a cargo de Hiran, um cantor gay, que vem se destacando na cena, ainda dominada por homens héteros. O jovem que é apaixonado pelas rimas desde os nove anos, precisou ultrapassar as barreiras da homofobia para ser ouvido e respeitado. Sucessos como – ‘Náufrago’ (uma parceria com sua conterrânea Maju), ‘Lágrima’ (um feat com Gloria Groove, Baco Exu do Blues e ÀTTØØXXÁ) e seu ‘grito de guerra’ ‘Tem mana no rap’ foram alguns dos hits que embalaram a apresentação. “Eu vim da cidadezinha de Alagoinhas, na Bahia, e com a ajuda de grandes nomes da cena, eu, um preto, gay, rapper, interiorano e que pulsa a música da cabeça aos pés estou ganhando espaço no cenário nacional”, conta Hiran Fernandes Santos, que compõe músicas altamente políticas e cheias de mensagens. O neo rapper contou ainda que por anos se sentiu out do mundo do rap, por achar que não teria espaço para ser compreendido.

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Depois de um breve intervalo, os primeiros acordes da música ‘Mundo Manicongo’, que nomeia o segundo álbum de Rincon Sapiência, já estremeciam a lona:

‘Se a terra ‘tá seca, nós rega

É o mundo Manicongo, não tem regra

Tenho várias ideias no meu porte

Tamo dando pinote, ninguém pega…’, levando a plateia ao delírio e com a letra na ponta da língua anunciando que um afrobaile estava prestes a acontecer. “Com esse disco eu me senti provocado a explorar a musicalidade africana, a pensar a pretitude e a energia das periferias”, frisa Rincon Sapiência. O artista carimba seu passaporte com mais diferentes ritmos vindos da música pop contemporânea africana, com instrumentais dançantes que passeiam desde o afrobeat e o afrohouse, até o dundunba, ritmo originário da Guiné e divulgado ao redor do mundo pelo mestre djembefolá Famoudou Konatè. marcando uma nova fase desse trabalho lançado pelo seu selo próprio, o MGoma.

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A noite seguiu com os hits ‘Real Oficial’, ‘Onda Sabor e Cor’ (que acaba de ganhar um clipe gravado em Cabo Verde) e ‘Meu Ritmo’… Então foi a vez da ‘Nega Braba’, Lellê pisar no palco, com um visual afrofuturista, para um dueto das faixas ‘Sensação’ e ‘Eu Mereço’. “Ter a Lellê nesse disco foi muito especial, ela é uma das grandes expoentes, de imenso potencial, da música popular preta. Primeiro, eu a convidei para cantar a faixa Sensação, que precisava de um vocal feminino. E quando compus Eu mereço acabou ficando um vazio e eu chamei ela novamente para me emprestar o talento e preencher esse espaço”, revelou o artista.

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Valorizando sua identidade africana Sapiência acionou o conceito de Ubuntu, um termo antigo da região Sul Africana originado na língua Zulu (pertencente ao grupo linguístico bantu) que significa “humanidade” e geralmente é traduzido como “Humanidade para os outros” ou “Sou o que sou pelo que nós somos” e trouxe um time peso para esse novo trabalho – Mano Brown, Rael, Gaab, do grupo ÀTTØØXXÁ, Duquesa e o coletivo de Mc’s Audácia. “Para mim esse termo se traduz como a filosofia da coletividade. É buscar as nossas raízes, identidades, as histórias e isso se materializa em dança, adereços, corpos e vestimentas nos ajudando a pensar a pretitude e o nosso futuro”, enfatizou.

Com um olhar menos orgânico, o rapper mergulha em um universo quase psicodélico e plural, que faz uma ponte entre o continente africano e ritmos que compõem a essência brasileira e que dialogam com as periferias, como o pagodão baiano e o funk brasileiro – desde o Mandela até o 150 bpm – e indo até o grime inglês. Essa mistura permitiu Rincon, que também assina a produção do disco, a criar experimentações musicais, dentro desse mundo, permeado por conflitos existenciais e amorosos que botou todo mundo para dançar. “Foram muitas inspirações até chegar no resultado final e fico feliz de ver a aceitação do público. Eu fui transbordado por ritmos que me cercam, a minha paixão e respeito pelo berço da humanidade, a África, e até por dona Ivaní, minha mãe, costureira, onde cresci em meio ao barulho das máquinas”, explicou.

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Made in África

Horas antes do show no Circo Voador, Rincon Sapiência presenteou os fãs com o clipe da música ‘Onda, Sabor e Cor’. Gravado em Cabo Verde, um arquipélago no Oceano Atlântico, que pertence ao continente africano, o filme expressa a musicalidade da faixa, que traduz a atmosfera do verão e exalta a ancestralidade africana. O videoclipe revela uma narrativa poética com imagens aéreas da ilha paradisíaca, somadas a momentos de interação com a população local e do artista se banhando nas águas do mar cabo-verdiano.

“Antes de ir para Cabo Verde, eu já sabia que seria uma situação especial, tanto pelo lugar quanto por eu ter ascendência cabo-verdiana, ainda que seja distante. Por isso, além do show que faríamos, eu tinha o desejo de gravar algo nessa viagem. Mas me faltava uma música que combinasse com o ambiente, então o desafio foi inventar ela ali para poder gravar o clipe. Uma ideia que foi resumida nos elementos que dão nome à faixa: onda, sabor e cor. Com eles em mente, eu criei a música e acho que deu muito certo, pois ela traz o astral de Cabo Verde. Conseguimos fazer imagens legais lá para o clipe, e, no fim, a música se encaixou perfeitamente no repertório do disco”, contou Rincon.

O videoclipe foi realizado durante a passagem do artista pelo país, em abril de 2019, e traz um caráter documental da experiência vivida na viagem, a segunda passagem de Rincon Sapiência pela África. Além do clipe em si, a campanha de lançamento traz mais dois conteúdos exclusivos que também foram fruto da viagem, que serão lançados em breve no YouTube. O primeiro, uma entrevista sobre a música cabo-verdiana com Gil Cabral Moreira, professor da cultura nacional, músico e colecionador de discos, detentor de um rico acervo que contempla a história musical do país. O segundo, um minidocumentário da viagem que aborda a vivência da dupla Rincon e Lubaconstruktor durante a saga em Cabo Verde, desde o embarque no Brasil, passando pelos passeios, entrevistas para os veículos de comunicação locais e o show no Kriol Jazz Festival.