Marina Lima: Após lançar inéditas, cantora exalta conquistas LGBTQIAP+ e critica ascensão do conservadorismo


A cantora, que lançou o EP “Motim” e está na estrada em turnê, postou nas redes sociais um questionamento sobre qual seria o olhar que os seus melhores amigos – Cazuza e Renato Russo – teriam do mundo contemporâneo pós-pandemia e diante da ascensão de governos conservadores. A cantora afirma que a vida sem música seria um erro, fala da velocidade do streaming e desabafa: “Eu sou quase como uma escritora musical, então eu me sinto ainda só”

*Por Vítor Antunes

No meado de 2021, Marina lançou “Motim”, um EP que objetivava trazer novidades na sua música. Não os sintetizadores ou guitarras elétricas que sempre estiveram presentes, mas um olhar sobre o Brasil. País que ainda respirava os reflexos do recrudescimento da pandemia. Segundo a cantora, o álbum fala de problemas inerentes do país, como “a desigualdade, o pós-pandemia, ou a ascensão da extrema-direita – não apenas no Brasil, mas no mundo”. Com uma onda de shows a ser realizada por várias cidades brasileiras, a cantora promete cantar os sucessos que consolidaram sua carreira, assim como a curiosidade que lhe move.

O EP lançado por Marina traz a proposta do olhar de uma mulher de 66 anos, brasileira, questionadora. “A linguagem musical do álbum não é nova. ‘Motim’ é o mais inserido nesse mundo mais-que-musical. É um álbum produzido por mim enquanto cidadã, mulher, brasileira, morando em São Paulo. Este disco, que é o meu mais recente, fala de assuntos que me interessam e traz uma onda musical que eu sei fazer e eu acho que tem a ver com os dias de hoje”. No fim de 2019, o cineasta Candé Salles lançou o documentário “Uma garota chamada Marina“, gravado ao longo de anos e nos quais o pensamento da cantora e recortes de sua carreira estavam presentes. De igual maneira teremos aqui a cantora em sua forma mais múltipla e sincera.

Marina Lima em “Motim”, um EP questionador (Foto: Candé Salles)

UMA INTÉRPRETE DE MUNDO: “COM LICENÇA EU VOU À LUTA”

Marina foi forjada nos movimentos políticos dos anos 1980. Militou em favor dos HIV positivos daquela época, pediu por mudanças no Brasil em canções, fez e/ou cantou músicas com temática homoerótica em 1984. Numa crítica ao comportamento conservador, Marina diz ver de maneira muito positiva a conquista de espaços e avanços sociais em grupos costumeiramente oprimidos: “Essas pessoas não tinham espaço. Hoje em dia, elas metem o pé na porta e exigem não ser mais ignoradas. Isso é tão importante! São questões que ninguém conseguiu conter, a direita não conseguiu conter, assim como a pobreza, e as questões de gênero, de sexualidade e de raça”.

A ida à luta de populações que eram, via de regra, silenciadas, é um motivo de comemoração para a cantora: “Hoje em dia essa força e união que as mulheres, os gays e que os negros têm me anima muito, por ser uma potência. É um negócio que me deixa muito feliz vê-las, assim como aos, homens gays e aos homens trans que estão aparecendo e sendo aceitos pela maioria. Significa que o mundo mudou. As coisas vão e voltam de maneira diferente e as pessoas estão exigindo ser aceitas, serem escritas nas leis, exigindo direitos. Naquela época não havia casamento e união estável. Os gays que estavam em relacionamento sério diziam-se sempre namorados. Era algo quase infantilizado, pois que não se podia ter direitos de herança e plano de saúde, por exemplo. Hoje em dia não é assim. Deu-se um passo adiante”, analisa.

Independente, Marina traz em si a marca que caracteriza os transgressores: a solidão. É o que ela própria diz: “Quando eu tinha 40 anos, eu era uma mulher independente, compositora, gostava de música eletrônica e era muito chato, não havia espaço para isso. Não que eu me queixe, longe disso, faço questão de superar os obstáculos”. Ela prossegue dizendo ver a si como “uma artista solitária. Tudo bem, eu compus com meu irmão Antônio Cícero, mas eu não sou uma cantora, eu sou uma intérprete do mundo que eu aposto e faço isso tanto através das minhas canções como daquelas dos outros que eu queira cantar. Eu sou quase como uma escritora musical, então eu me sinto ainda só”, observa.

O desabafo, contudo, não é um queixume. Ela própria nega isto: “O meu temperamento enquanto artista e enquanto cidadã é de não me queixar. Para eu me queixar, tem que estar muito feia a coisa. Antes de tudo eu tento ganhar aquilo de alguma maneira. Eu posso até tentar explicar, descrever ou retratar alguma situação difícil e barra pesada, mas faço isso de forma que não pareça uma queixa, pois que é uma realidade. Ainda que seja uma dura realidade. Falar sobre ela serve para espantá-la”.

Marina Lima é uma mulher plural e livre (Foto: Candé Salles)

Ainda sob este contexto, Marina salienta: “O meu trabalho é muito linkado no que eu vivo e eu sempre acho que trata-se de uma oportunidade viver o tempo que me é dado independente da década em que eu esteja. A cada hora eu me vejo de uma maneira, de um jeito que me interessa. Sou uma pessoa otimista, mas gosto de falar da realidade. Não sei até quando vou ficar dizendo isso, mas eu gosto muito da vida”.

Recentemente, a cantora fez um post em suas redes sociais no qual dizia estar sentido falta dos amigos de sua geração, especialmente os falecidos Renato Russo (1960-1996) e Cazuza  (1957-1990). Embora esperançosa da vida, a cantora fez um desabafo e citava os amigos, situando-os nos difíceis tempos contemporâneos: “O mundo piorou muito. É muito mais perigoso, teve essa questão do coronavírus e tudo parece algo cíclico…. Eu fico imaginando o que o Cazuza e o Renato estariam dizendo disso tudo, embora tenham morrido de HIV, que era também um vírus mortal daquela época. Eles não tiveram tempo (de ter tratamento). Citei Cazuza e Renato por ser muito amiga deles, não que fôssemos iguais, pelo contrário”. E a cantora continua:

O fato de eu não ter banda não os incomodava, assim como a minha sexualidade livre também não – Marina Lima

Ela prossegue dizendo achar que “os caras das bandas eram meio assim, reticentes, comigo, e com eles eu não cheguei a ter uma história forte. Talvez eu tenha tido uma história mais forte com o Lobão, mas não chegamos a transar. O único cara (de banda) que eu cheguei a namorar foi o Zé Luís, que hoje nem mora mais no Brasil”. Zé Luís é um saxofonista que há anos mora nos Estados Unidos e foi muito ativo na música brasileira, especialmente nos anos 1980. Esteve presente em discos de Eduardo Dussek, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Barão Vermelho.

Zé Luís, Cazuza, Lobão e Marina. A cantora namorou com o saxofonista (Foto: Reprodução/Site Cazuza)

Ainda sobre seus melhores amigos, Marina diz que estes morreram, a contrário de outros, que gozaram de melhor sorte. E, traçando um paralelo com a pandemia, falou de Paulo Gustavo (1978-2021), que faleceu ainda antes que houvesse sido disponibilizada a vacina para a Covid. Lançando mão do pensamento crítico aos conservadores, a cantora diz que antigamente vilanizaram a Aids por ser transmitida sexualmente. Ao passo que hoje “transmitiram o preconceito para a vacina. Trata-se de um bando de imbecis que não pensa na coletividade e que pensa no seu próprio bem”, dispara.

CORAÇÕES A MIL

Uma volumosa carreira com muitíssimas músicas em trilhas de novela, desde o primeiro álbum, “Simples como Fogo”, a outros mais contemporâneos como “Lá nos Primórdios”. Vários personagens foram embalados por canções de Marina. Uma das primeiras músicas a entrar para uma novela de grande sucesso foi “Corações a Mil”, tema de Lauro Corona (1957-1989) em “Baila Comigo”. O que poucos observaram era que a letra abordava, de alguma maneira, o poliamor. Tema discutido contemporaneamente e quase proibitivo nos anos de Ditadura. A cantora divertiu-se ao lembrar da canção, feita por Gilberto Gil especialmente para ela e salientou que a música tem um grande poder de sedução, razão pela qual, talvez não tenha sido problematizada na época: “A música, especialmente a popular, é uma arte muito sedutora. A gente ouve e enlouquece pelo ouvido. Eu gosto de música, gostava de dançar, de paquerar, gosto da vida e sou uma pessoa afirmativa. A música é um convite a ter as pessoas comigo”.

A vida sem a música seria um erro – Marina Lima

Além desta música de Gilberto Gil, tema de um personagem importante da novela das 20h, outro tema tem fundamental importância na carreira da cantora. Trata-se de “Pra Começar”, música de abertura de um dos maiores sucessos da carreira do autor Lauro César Muniz, “Roda de Fogo”. Sobre esta música, a cantora contou-nos que só veio a gravá-la em estúdio, por inteiro, em 2018. Para a abertura do folhetim global gravou apenas uma curta vinheta de 1minuto e 8 segundos para caber estritamente no vídeo de apresentação da trama. A outra gravação, que foi a que compôs o LP com as músicas da novela, era a gravação ao vivo, única da canção completa. Marina Lima diz: “O diretor da PolyGram, quando ouviu, mostrou na Globo e o pessoal da TV achou que ela era muito adequada para a novela. Gravei então uma vinheta com o tempo exato da abertura”. Curiosamente, em 2003, Marina tornaria a gravar a música, e, de igual maneira, uma gravação ao vivo.

Segundo a cantora, as novelas foram fundamentais para tê-la junto ao público. Não apenas o fato de ter músicas em folhetins, mas também, ser um sucesso popular nas rádios, colaborou para que ela se tornasse um ícone pop “São muitas as músicas que fazem parte da formação, do gosto e do carinho dos brasileiros. Não há como negar que isso tudo é o que me deu a possibilidade de estar onde estou”, pontua.

Em plenos 80’s, Marina discutia o poliamor nas músicas. Assim como a sensualidade LGBTQIA+ em canções como “Veneno” e “Mesmo que seja eu” (Foto: Candé Salles)

À MEIA VOZ: NUDEZ POR “PRESCRIÇÃO MÉDICA”

Em 1999, ainda recuperando-se de uma depressão após a perda do pai, que lhe afetou a voz, Marina disse haver descapitalizado, pois que a maior parte de suas rendas vinham dos shows, e por haver se recolhido em função da doença, o dinheiro estava se escasseando. Ela nos conta como veio o convite para a Playboy naquele momento: “ Desde que eu me entendo por gente me chamavam para posar nua e naquele momento eles estavam em cima de mim de novo. Daí, queixei-me ao meu terapeuta de que eu estava sem dinheiro e que depois da depressão eu fiquei sem voz. Ele pediu que eu ponderasse sobre posar para a revista. Daí, eu mesma disse a ele que já falavam muitas coisas a meu respeito, de que eu era difícil, diferente, que eu me escondia… Perguntei como justificaria isto. E ele me disse ‘se alguém perguntar, diga que foi por prescrição médica’. E assim o fiz”, revela.

Fiz a Playboy por que estava sem grana – Marina Lima

A cantora relata-nos que haver posado nua lhe fez muito bem: “Foi bom, eu comecei a ver as pessoas, voltei a fazer shows… Eu chegava, por exemplo, no aeroporto de Porto Alegre, e os executivos sorriam pra mim e eu sorria de volta. Acho que passei a não assustar tanto. Eles viram que eu era uma mulher normal, com peito, com bunda, com sexo”.

Marina diz que ainda que vendesse muitos discos e recebesse os direitos autorais, a conta nunca era muito justa – o que reitera dizendo ser o mesmo no streaming. E que recebia melhor nos shows, quando a renda ficava entre ela e o empresário. Aliás, em se tratando do streaming e das plataformas audiovisuais, relembramos que a cantora foi uma das pioneiras a lançar conteúdos audiovisuais para consumo doméstico.

O show “Todas”, de 1986, foi comercializado em VHS pelo Manchete Vídeo, braço da extinta emissora. Ela diz que as “linguagens estavam começando a ser acessíveis e os diretores começaram a pensar na possibilidade de ter os shows gravados, como forma de expressão. Eu acho que o mundo com a internet e com o audiovisual passou ter tantas possibilidades… Hoje, mesmo quando você lança um EP, tem de ter um vídeo e a forma de divulgar mudou muito. Eu nunca fui ligada em vídeo, meu interesse maior eram os discos. Mas, eu me cerco de gente que me ajuda muito a criar e a poder estar tentando lançar meus trabalhos de um jeito profissional que chegue nas pessoas até hoje”.

Marina Lima no VHS/Home-Vídeo do show “Todas”, de 1986. Uma das pioneiras a investir em shows para uso doméstico (Foto: Reprodução/Manchete Vídeo)

Ainda sobre esta questão financeira, a cantora diz: “Eu, Marina, que sou meio solitária e que não caibo muito em nenhuma especificidade, fui meio abandonada. Se o Brasil puder encarar a sua desigualdade social sendo um país justo socialmente com tudo o que diz respeito a isso e eu puder ter uma chance de envelhecer com saúde e com um trabalho que eu considere genuíno para mim na minha idade e que eu possa me sustentar, eu me faria muito feliz. Eu não sou uma artista com 66 anos que tem uma vida ganha, com casas e pertences, não que eu tenha administrado mal a minha grana, mas eu nunca achei que isso fosse tão importante. Achei que estar cercada de amigos e com uma vida boa era mais válido. Agora, mesmo com o Brasil estando como está, eu não deixei de trabalhar e está tudo certo. Espero que quando eu não puder trabalhar, eu possa ter um lugar no Brasil para mim também”.

“QUEM VAI COLAR OS TAIS CAQUINHOS DE UM VELHO BRASIL?”

Na capa do disco “Todas”, o álbum estava com a fotografia principal intencionalmente fora de foco. Perguntamos à artista o que desfoca o Brasil e ela disse ser “o fato de o país nunca encarar de frente a sua desigualdade social. Somos uma nação enorme, totalmente desigual. A Constituição que está escrita ali não vale para a maioria imensa do povo brasileiro, que não tem saúde, escolaridade e requisitos básicos de sobrevivência”.

Diante de um país que vive às voltas de destruir-se e reconstruir-se, perguntamos a ela, fazendo um trocadilho com um de seus sucessos dizendo “pra terminar, quem vai colar os tais caquinhos de um Velho Brasil?”: E ela respondeu: “Espero que ninguém queira colar esses caquinhos. Acho que vamos tentar construir um novo Brasil a partir de tudo isso que se despedaçou. O caquinho velho, nós vamos jogar fora e desistir”. O Brasil de Marina é aquele que espera por acontecimentos. E, a contrário do que disse Ana Gaio, em 1987 à Revista Manchete, a cantora que revelou-se a nós não era “uma pessoa arredia, difícil de pouco se mostrar”, mas sim a que gosta de “sonhar e arder de amor desde que era uma menina”. E que mostra e sente.