*Por Rafael Moura
Acionando a força dos ancestrais e suas memórias afetivas, a cantora, compositora e musicista carioca, Márcia Guzzo, acaba de lançar o EP ‘Udayara’. A palavra não existe na língua portuguesa e em nenhuma outra língua, mas, apesar disso, ela tem um importante significado para a artista. Inventada para representar a “persona” de uma mulher brasileira: forte, feliz, que conhece a sua ancestralidade e as suas origens, essa figura – que representa tantas mulheres e também Márcia – surgiu no processo de criação e produção das quatro faixas do EP autoral de mesmo nome, que já está em todas as plataformas digitais, e tem produção musical de Kassin.
“’Udayara’ fala sobre esse poder feminino que transmite saberes e conhecimentos e que não é só meu. É uma canção que traz a imagem da mulher negra, afro-brasileira, que luta para sobreviver nesse país, que recebe toda essa carga moral de responsabilidade. Ela representa todas as mulheres que sustentam uma família, que acordam cedo e que dão duro para cuidar da vida, dos filhos e da casa. E que mesmo com tudo isso, mantêm vivo aquele sonho de dias melhores”, explica Márcia Guzzo.
Desde criança, Márcia é dedicada aos estudos musicais. Cursou canto na Escola Villa Lobos e estudou na Escola de Choro, ambas no Rio de Janeiro. Em 2014, a artista assumiu seu trabalho autoral, lançando suas primeiras composições no álbum ‘Leve’, de 11 faixas, que contou com as participações de Elba Ramalho e Dona Ivone Lara, em sua última música gravada em vida. As canções de álbum estiveram em vários festivais e Márcia também apresentou o show no Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF) e no Theatro Municipal de Niterói. A artista ainda é criadora do projeto infantil ‘Som Baby’, e atualmente vive na Cidade do México com a família.
“Udayara” representa uma virada na carreira da artista, não somente em relação às descobertas pessoais, mas também no estilo musical. Guzzo mergulhou no universo da black music, com um mix de ritmos dançantes às faixas como o pop, o reggaeton, o blues, o brega, o house music e até mesmo o funk, trazendo uma receita genuinamente de sons brasileiros e latinos, com sintetizadores e batidas eletrônicas que prometem não deixar ninguém parado. Nessa viagem sonora, Márcia conta com Caio Oica na bateria, Lux Ferreira nos sintetizadores e Kassin no baixo e na guitarra. “Apesar de ser um EP dançante do começo ao fim, ‘Udayara’ possui uma forte característica inspirada nos meus ídolos da black music da década de 70, 80 como Cassiano, Tim Maia e Sandra de Sá, que marcaram para sempre poderosas mensagens. As músicas falam de aceitação e retratam o meu processo de autodescoberta enquanto uma mulher afro-brasileira”, explica a intérprete.
Quatro faixas de poder
Faixa que dá nome ao EP, ‘Udayara’ é uma composição cheia de groove, criada em parceria com o carioca Gabriel Moura, fundador do Farofa Carioca, e que traz como centro o poder dessa figura inventada pela artista: a Udayara, que representa Márcia, mas também a força e a ancestralidade de toda mulher brasileira. “Tem a força dos seus ancestrais // Tem a luz, o sorriso, o axé // O poder dos seus olhos fatais // De dizer o que pensa, o que quer // É valente, guerreira de fé // Não se vende ou se entrega jamais / Segue em frente sem medo com a benção dos seus orixás”, diz uma das estrofes.
Já ‘Acima das Vaidades’ também tem um ritmo contagiante e uma poderosa letra que levanta questões sobre o feminino e identidade, baseadas na discussão do cabelo. A faixa é uma parceria de Márcia com Aleh Ferreira, vocalista da lendária banda brasileira de funk, Black Rio, e tem inspirações em ‘hinos’ de importantes figuras da música black brasileira dos anos 70 e 80.
‘Sou cabelo bom, nem adianta me controlar // Sou cabelo bom, todo dia eu posso mudar // Sou cabelo ruim, se minha postura te incomoda // Sou cabelo bom, ninguém vai me criticar’, diz o início da letra. “Eu escrevi essa música há alguns anos quando, de fato, percebi minhas raízes e a minha ancestralidade. A música fala do cabelo, que é quase como um símbolo. É realmente por onde a mulher, e principalmente a mulher negra, percebe a sua identidade”, completa Márcia.
A faixa já chega com um videoclipe disponível no YouTube, com direção de Márcio Graffiti, fotografia de Maria Chrisá e roteiro da ativista indígena Renata Aratykyra.
A terceira faixa do EP é ‘Outro Bar’, composta com o parceiro musical de longa data de Guzzo, Mig Martins. A composição valsa entre um brega e um bolero moderno, e surgiu de uma cena curiosa observada pela artista no conhecido Tem Tudo de Madureira, reduto comercial do subúrbio do Rio de Janeiro. “Eu estava lá um dia e vi uma situação muito exótica de um casal brigando. Os dois estavam completamente bêbados. E surgiu uma situação de violência verbal. O homem dizia que a mulher tinha que parar de beber, enquanto ele mesmo estava completamente bêbado. Essa mulher estava ali, sendo julgada e agredida verbalmente pelo companheiro”, explica Márcia.
Na época, a artista atuava como coordenadora da oficina de talentos num projeto social que atendia mulheres vulneráveis, na Vila Mimosa, conhecida área de prostituição a cidade. “Eu vi essa cena e estava muito tocada pelo trabalho que exercia, então, transformei isso em inspiração para contar a história dessa mulher que merecia respeito naquele momento”, enfatiza.
A canção que fecha o EP é ‘Praia de Itaipuaçu’, canção que resgata a memória afetiva da praia, localizada em Maricá, no Rio de Janeiro, e por onde Márcia passa temporadas junto com sua família, que tem casas no local. Também foi na praia que a artista se apresentou, profissionalmente, pela primeira vez. A faixa faz jus ao nome e traz para o EP um clima praiano, numa mistura de forró com reggaeton e house music. Numa participação mais que especial, Mestrinho do Acordeon. “Praia de Itaipuaçu’ não tem um estilo específico, ela é pra dançar! É uma fusão de muitos ritmos, como é a Praia de Itaipuaçu mesmo, aberta a vários tipos de público e democrática. É uma faixa que me dá muita alegria, pois retrata um pouco desse lugar tão especial pra mim e que foi muito importante na minha carreira”.
O EP “Udayara” foi contemplado no edital “Retomada Cultural RJ”, da Secretaria Estadual de Cultura e Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro, por meio da Lei Aldir Blanc.
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