* Por Carlos Lima Costa
O vídeo postado na rede social de um médico chocou o país. A filmagem com um homem negro com os pés acorrentados, o pescoço preso por um ferro e as mãos algemadas remetia a escravidão. Diante da repercussão, ele alegou que junto com seu funcionário havia feito uma encenação teatral. Mas a Polícia Civil investiga o caso, ocorrido em sequência a outros acontecimentos onde se levantou a questão racista. Como ressalta a atriz Luellem de Castro, que interpretou Talíssia, em Malhação – Vidas Brasileiras, e está lançando Girassol, seu primeiro álbum, o mais agravante é que não são casos isolados.
“Graças ao avanço da discussão, temos conseguido colocar mais luz nessas histórias. As pessoas estão vendo mais. Qualquer situação é grave da mesma forma. Mas situações racistas acontecem todos os dias há muitos anos. Constantemente a gente se choca com algo diferente e fica com a sensação de ‘nossa, como isso pode acontecer’. E tem famílias com casa própria em determinada favela, que a milícia chega e cobra dessas pessoas para que elas morem em suas casas. Isso acontece o tempo inteiro. Como me toca? Eu fico triste obviamente e com muito medo, porque a qualquer momento pode ser eu, o meu irmão ou qualquer pessoa da minha família. Somos moradores de comunidade e sabemos que não existe um suporte real para nós”, ressalta.
Luellem enfatiza que a pergunta ‘como isso a toca?’, que costumam fazer às pessoas pretas deveria ser direcionadas às brancas. “A minha resposta é óbvia. Eu não gosto, não quero que aconteça. Mas e quem está fora dessa parada e quem é o possível agressor? Como você se organiza com isso? A situação da pessoa acorrentada choca para quem está longe, para quem acha que essas coisas não acontecem. A gente teve, no ano passado, o caso de uma mulher mantida em cárcere privado por uma família para a qual trabalhava e, depois, se descobriu que a família devia um dinheiro absurdo e que a casa era dela. Então, fico triste, com raiva, quero que se resolva. Mas de fato quem precisa se organizar e dar opiniões fortes são as pessoas que podem de fato ajudar a fazer com que isso não aconteça”, pontua.
A artista é enfática ao afirmar que já passou por situação racista. “Eu sou uma pessoa preta de 26 anos em um país completamente racista. Eu enfrentei o preconceito a vida inteira e em várias situações. E de fato tudo é grave. Não existe pecadinho e pecadão. Se está errado, está errado desde acorrentar uma pessoa a chamar outra de ‘macaco’. É grave da mesma forma. Não pode acontecer. Não tenho o hábito de ficar comentando, dando detalhes do que passei, porque isso não acrescenta ao que eu preciso dizer e leva para as pessoas um sentimento de pena e eu não acho que as pessoas precisam sentir pena de quem sofre racismo. As pessoas precisam sentir asco de quem é racista”, aponta.
Além de política, amor, sexo e fé, o álbum Girassol, em oito canções como Azul, Só Penso Nele e a faixa título, apresenta música que remete à questão do preconceito: Rock do Privilégio. “Ela retrata justamente isso que falamos que é essa organização de sociedade, fala de meritocracia, dos dois lados da moeda, de quando uma pessoa credita que você deveria fazer mais esforço para ser alguém, mas ela não leva em consideração qual é a sua história. Aposto que essa seja a música no meu álbum que consegue falar mais claramente sobre isso. Tem outra, Brasil, que aborda um pouco dessa situação do nosso país. Ela é mais lírica, tem uma poesia, mas dá para entender também que aborda a questão dos nossos políticos, as nossas leis, as mortes incessantes que acontecem aqui e a esperança de melhora. A nossa única opção é não desistir mesmo”, observa.
As canções são todas autorais, um mix entre as compostas mais recentemente com outras da época em que começou a compor, em 2015. “São diversos ritmos. Tem rock, MPB, ijexá, é uma brasilidade bem misturada. Estou bem feliz com o resultado desse álbum de estreia, fala muito de mim, do que eu penso”, aponta.
Luellem faz parte do grupo Teatro de Afeto e no meio do processo da peça Pinéal, – Ritual Cênico, o diretor Saulo Rocha, propôs que todos escrevessem uma música para o espetáculo. “Éramos umas dez meninas, a música ficou horrorosa, rimos muito, ninguém sabia escrever aquilo, mas foi bom para o processo e para mim também, porque depois disso tomei gosto. Eu fazia poemas desde os 7 anos, mas nunca tinha me organizado para escrever música e aí depois desse processo comecei e até usei umas para a própria peça”, explica ela, cujas canções abordam temas de sua vivência. “Escrevo muito sobre o que eu vivo, o que vejo, o que encontro no meu caminho, principalmente. Então, são temas reais na minha vida”, comenta.
Tendo como religião o candomblé, ela gravou a música Pra Seguir, que fala de fé. “Ela mostra muito do dia a dia de uma pessoa na favela e de fé, saúda Oxum, canta uma cantiga de agradecimento a Oxum”, conta ela, nascida e criada no Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, onde ainda mora. Lá, desfilava em um concurso de modelos e foi convidada para ingressar em uma agência e aí surgiu a oportunidade de participar de seu primeiro filme, No Meio da Rua, de Antonio Carlos da Fontoura.
“A arte sempre foi presente na minha vida desde pequenininha. Meu pai era músico, meu irmão mais velho é músico, minha mãe era porta bandeira de escola de samba. E eu acabei começando nova. Com 7 anos eu já tinha feito meu primeiro filme, então, nem deu tempo de ser uma coisa que acontecia pra mim nas brincadeiras. Eu acabei sendo uma criança que cresceu meio adulta, tinha uma certa seriedade com a arte, que eu já via como trabalho”, lembra ela, que depois de Malhação atuou na série Reality Z, da Netflix.
Depois, para o mesmo streaming, participou do filme Casamento à Distância, de Silvio Guindane, e, pela Globo Filmes, rodou Grande Sertão: Veredas, dirigido por Guel Arraes, previstos para estrear este ano. “O primeiro é uma comédia romântica, a minha personagem é amiga da noiva, uma lutadora bem sucedida, meio pegadora, ela é lésbica e fica com várias mulheres. No outro, interpreto a Nhorinhá. Nessa adaptação ela é uma mulher sensual da favela, muito livre, bissexual, e está ali envolvida com o Riobaldo e a Diadorim, os personagens principais e vive ali esse romance um pouco com eles. São duas personagens muito diferentes do que já fiz”, diz Luellem, sem preconceitos. “Nunca tive isso. Sou bissexual desde que eu comecei a beijar na boca, isso nunca foi uma questão pra mim nem dentro da minha casa. Minha família nunca fez separação de pessoas por conta da escolha sexual delas. Graças a Deus os meus pais são abertos e inteligentes em relação a sensibilidade das pessoas”, revela.
Vivemos em sociedade machista, então, como mulher, negra, bissexual, vinda da favela precisou ser forte e guerreira para enfrentar todo tipo de situação adversa? “Dependendo do recorte social, umas pessoas passam por mais situações do que outras. Não sei se sou forte e guerreira para enfrentar qualquer situação. As que já passei, eu consegui lidar. Eu sou só uma menina de 26 anos e espero que seja tudo leve (risos), sabe, eu sou tranquila, acredito muito na minha fé. Tenho respeito gigante e orgulho pela minha herança de africanidade, que a gente traz por conta de toda exploração que teve aqui no nosso país”, frisa.
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