*Por Rafael Moura
A primeira live da diva do technobrega, Gaby Amarantos, surgiu como um desafio feito por sua ‘companheira de saia’, a cantora Pitty. Foi assim que nasceu o ‘Conversa com a madrinha’, que, em sua noite de estreia, convidou Leona Vingativa, uma artista transexual de Belém do Pará, engajada em causas ambientais. Seus principais vídeos retratam a relação com os problemas de uma cidade urbanizada, como o lixo, alagamento com as chuvas e insegurança. A musa do ‘treme’ começa a transmissão dizendo que está ‘paramentada’, vestindo a bandeira de seu estado. “Essa live não é só para cumprir o desafio feito pela minha amiga Pitty, mas para apresentar uma grande artista, que eu tenho o prazer de ter como minha afilhada, Leona Vingativa. Nós duas somos super heroínas da Amazônia, do estado do Pará, da Região Norte, mulheres pretas, da periferia, do Jurunas”.
E a transmissão segue com Leona dando seu nome e dizendo que era uma criança quando viu um vídeo viralizar. “Eu sou Nati Natini Natili Lohana Savic de Albuquerque Pampic de La Tustuane de Bolda, mais conhecida como Danusa Deise Medly Leona Meiry Cibele de Bolda de Gasparri. A mulher jamais falada. A menina jamais igualada. Conhecidíssima como a noite de Paris. Poderosíssima como a espada de um samurai. Eu sou apertada como uma bacia, enxuta como uma melancia, tenho dois filhozinhos, um zuiudinhu e um barrigudinho, casei com o dono da Parmalat e virei mamífera, só mamo, pertenço a família imperial brasileira, Orleans e Bragança, penetração difícil”. A madrinha agradece e elogia. “Minha filhada é um ícone da cidade e foi uma dos primeiros grandes virais da internet, uma das primeiras youtubers”.
Leona Vingativa começou produzindo esquetes para internet, uma minissérie de drama feita e gravada pelo celular, e lhe rendeu milhões de acessos no YouTube ainda em 2009. Dez anos depois sua vida virou um filme, um mini-documentário ‘Leona – O filme’, de Clara Seria e Hugo Resende, do Estúdio Mundo Inspirações, lançado em junho de 2019, durante o Festival Cinema em Transe, em São Paulo. “É muito gratificante estar mostrando isso para as pessoas. O que aconteceu comigo. Isso tudo vai ser exposto no documentário. Eu fico muito feliz de poder mostrar para as pessoas que uma mulher trans, preta, da periferia pode brilhar também. Quero ser um incentivo para as artistas trans”, conta Leona.
Gaby é uma das entrevistadas do documentário falando de sua relação com a estrela. E manda uma ‘alô’ para as plataformas de streaming Amazon Prime e para a Netflix, “vamos botar o filme da minha amiga no catálogo de vocês”. E acaba sendo surpreendida ao saber que Suzana Pires, que está assistindo a conversa, irá disponibilizar o filme em sua plataforma ‘Dona de Si’, que tem como propósito mudar a vida de inúmeras outras mulheres que estejam precisando de apoio para dar um salto na construção de sua carreira.
Dois grandes sucessos de Leona são composições de Gaby. ‘Eu quero um boy’, uma paródia de ‘Todo Mundo’, hit para a Copa do Mundo de 2014 e ‘Frescar no Círio’. A humorista, cantora e diva conta que começou sua carreira com dez anos. “Eu comecei nesse quarto, da Alejada Hipócrita, que é minha mana Paulinho Colucci, um ator, produtor, roteirista e criança viada do Jurunas. Esses vídeos de humor foram um grande marco na minha vida”, revela. E Gaby completa. “Eu fiz essa versão para lançar minha afilhada. Eu não sou gay, mas eu me acho muito viada, porque eu peguei todo o dialeto, e tenho uma convivência muito grande com os LGBTQIA+. E eu conheço a Leona desde criança viada, no Jurunas, desde ereiazinha, tocando o terror no bairro. E é importante falar desse tema, das crianças LGBTs, que é um grande tabu no Brasil. Fiquei surpresa quando fui convidada para ir à parada de Nova York, em 2018, e no dia anterior eu descobri que tem um evento para as crianças LGBTs. Achei o máximo”, conta.
“Muitas famílias têm medo por seus filhos serem gays por conta do preconceito e da violência do mundo. Se fosse por causa de porrada, eu tinha mudado e estava com meu cabelo curtindo, um homem em pessoa. Apanhei muito da minha família para ver se ‘tomava jeito’. Minha mãe é pastora, meu pai é investigador policial e eu sou fresca”, ressalta Leona. E Gaby completa. “É muita hipocrisia querer agredir uma criança. Nada justifica a violência. O Brasil registra uma morte a cada 23 horas aos LGBTs. A orientação sexual é algo que não se muda. É preciso debater mais. Eu sei que não é meu lugar de fala, mas eu tenho uma responsabilidade como figura pública, por isso sinto que preciso levar essa mensagem para ampliar o debate”.
Dados da União Nacional LGBT apontam que a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de apenas 35 anos, enquanto a média da população em geral é de 75,5 anos. “A falta de empregos para as trans reflete na prostituição, que é um dos fatores de viver tão pouco. Eu tenho certeza que muitas estão ali por necessidade. Eu já estive naquela situação e não gostava, mas já matou muito minha fome. Eu penei muito com aquela realidade. Eu fui expulsa de casa aos 14 anos e foi quando entrei na vida. Faço um apelo para os donos de empresas: contratem as trans, deem oportunidades para elas. Se não tivermos uma profissão, um ofício, estamos lascadas. Porque ninguém sobrevive sem dinheiro, e para nós é muito mais difícil”, desabafa Leona.
Inclusão social é a expressão do século 21. Uma forma de reparar historicamente as minorias excluídas do processo de socialização, como negros, indígenas, pessoas com necessidades especiais, homossexuais, travestis e transgêneros, bem como aqueles em situação de vulnerabilidade socioeconômica, como moradores de rua e pessoas de baixa renda. Esse conceito se refere tanto a Declaração Universal de Direitos Humanos como a Constituição Federal de 1988, que apresentam direitos que devem se estender a todas as pessoas, sem exceção. O que na teoria é muito lindo, mas na prática…
“Fala-se muito de inclusão, de ampliar os direitos da população, mas toda vez que sou contratada por uma marca ou por uma empresa para fazer um trabalho eu pergunto: quantas pessoas negras você emprega, quantas mulheres trabalham aqui? Quantas mulheres trans têm nessa empresa? Falamos muito de diversidade, mas as mulheres trans estão na base da base da pirâmide social e acabamos sempre invisibilizando essa parcela da sociedade. A expectativa de vida das trans é de 35 anos e a prostituição é o que sobra para para elas pela falta de inserção no mercado. Isso é uma triste uma realidade. Falar de orgulho LGBTQIA+, transfobia, LGBTfobia é importante o anos todo, não só na semana da parada”, dispara Amarantos.
Leona pergunta a Gaby sobre o início de sua carreira e a banda Techno Show, uma grande referência para o technobrega, no Pará. “A Techno Show foi uma fase muito linda da minha vida. Foi onde aprendi a ser empresária, dançarina, estilista, e ser cantora. Como não tínhamos recursos, fazíamos tudo. Foi a minha universidade como artista, um momento de formação. Persistir é a grande palavra. Todo mundo é artista, todo mundo tem um dom, e a pandemia fez com que parássemos um pouco e esse isolamento mostrou um lado criativo em muita gente. Arte é um dom, um sentimento divino. É uma deusa que eu agradeço todos os dias. Não busque o sucesso, persiga-se a verdade”, conta.
Com uma audiência recheada de anônimos e famosos como Pitty, Deise Tigrona, Jhonny Hooker, Arethuza Love, Rico Dalasam, Suzi Pires, Carol Pita, Astrid, Jaloo, as paraenses fizeram questão de agradecer um por um e Gaby disse. “Precisamos valorizar esses artistas que estão sempre na luta quebrando os muros e continuar caminhando contra o racismo, a desigualdade e levantando as bandeiras da igualdade e inclusão”. A musa do Treme abordou ainda a importância do uso da tecnologia para os negros, que tiveram parte de sua história pouco registrada, devido à repressão cultural imposta pela escravidão.
“Quem tem sangue negro pouco sabe da história por motivos de escravidão mas a tecnologia tem nos ajudado a ir mais fundo nesse rio. O teste me mostrou que meus antepassados vieram de diversos lugares do continente africano… Congo, Nigéria, Senegal (incluindo Guiné-Bissau!)”. Gaby, no dia 13 de julho, publicou em seu perfil no Instagram, o resultado de um teste de DNA que fez por meio de um site, enquanto estava na Inglaterra, e afirmou estar surpresa com a multiplicidade de lugares de onde vieram os seus ancestrais. E revelou que sempre parava para refletir sobre seus ancestrais. “Outra descoberta foi sobre os parentes indígenas. Eu sempre imaginava de quais parte da Amazônia eles eram, mas a viagem foi além. Tem etnias da Venezuela, Colômbia, México e dos Andes”.
No fim dessa live Leona conta que seus dois últimos sucessos são alertas para a sociedade. O primeiro sobre as enchentes ‘Bem feito, você não tem respeito’, uma paródia de ‘Contatinho’, de Leo Santana. Já ‘Sem direito a nada’, uma versão de ‘Não sou Obrigada’, da Mc Pocah, fala sobre o respeito e o direitos dos idosos. “A ideia veio porque eu ando muito de ônibus e eu presencio sempre cena ridícula de idosos sendo desrespeitados pelos motoristas e passageiros. Uma falta de amor enorme”, conta. É a arte fazendo seu papel social. A atriz Dominique Jackson a icônica Elektra, da série Pose, do canal FX, começou a seguir e comentou o Instagram de Leona Vingativa.
Gaby conta que vai ter atraque pós-pandemia. “Eu estou produzindo um álbum novo, com direção musical do meu amigo e cantor Jaloo. Me aguarde que assim que acabar essa quarentena teremos uma grande novidades. Gaby Amarantos vai voltar tremendo tudo”, conta. E acrescenta: “Agora a minha energia é que a gente encontre logo uma vacina contra a Covid-19, porque as pessoas não estão ficando mais em casa, e que só a cura irá nos possibilitar estarmos juntos de novo”.
Para encerrar a conversa Gaby agradece quase 2 mil internautas e comenta que a live foi altamente educativa. “Vocês ainda aprenderam um monte de gírias novas, do Pará. ‘Piolho de Fresco’ – Homem que diz que não gosta, mas não sai de cima. Que ama as gays. ‘Atraque’ – chegar com força, tremendo tudo. ‘Frescar’ – Dar pinta”, explica. Pode cortar!
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