Quem espera sempre alcança e para o grupo musical Heavy Baile, formado pelo produtor Leo Justi, DJ Thai e Mc Tchelinho, a frase não poderia ser mais verdadeira. Depois de três anos em produção, o disco ‘’Carne de Pescoço’’ foi lançado em maio repleto de parcerias, como Tati Zaqui, Tati Quebra Barraco, Baiana System e Lia Clark, e, claro, muito funk e eletrônico, refletindo a união artística entre Justi e Tchelinho. ‘’Nós somos opostos em tudo, na nossa personalidade, na nossa cor, na nossa vivência. O Baiana System, por exemplo, é uma conexão mais com o meu background enquanto a Tati Zaqui, que é um funk mais pop, é uma coisa mais do Tchelinho. O funk é um ritmo muito amplo, então tem várias referências dele que eu não compartilho, mas no Heavy Baile nós achamos uma forma de condensar no produto novo que os dois acabam gostando’’, conta o produtor que vem de uma família de músicos eruditos.
Junto ao lançamento do disco, o coletivo presenteou os fãs com uma nova versão do clipe da música ‘’Catuaba’’, parceira com Tati Zaqui lançada em 2017. Com participação especial do ‘’Bonde das Maravilhas’’, o clipe mostra Tati se livrando de um homem que não aceita ser rejeitado na balada, trazendo, portanto, um posicionamento feminista para a música. ‘’A presença da Tati é muito forte assim como a música. A nossa sociedade é muito machista, então era importante falar sobre isso’’, diz. No entanto, apesar da luta feminista estar em pauta hoje em dia, não foi tão fácil criar um discurso a favor dela. ‘’A verdade é que hoje em dia estamos pisando muito em ovos com o que é ofensivo ou agressivo às minorias. Então, mesmo a proposta que a gente considera de luta, de posicionamento, de resistência, ainda é vista como ofensiva por algumas correntes. Está difícil demais achar um tom para expressar uma ideia de empoderamento e de liberdade’’, reflete o produtor, que teve recriar um clipe em menos de três dias por conta do abandono do diretor devido a alinhamento moral.
Mas isso não impede o coletivo de continuar colocando a boca no trombone. Por meio da musicalidade que carrega o funk cru da favela e letras com engajamento social, o Heavy Baile utiliza sua plataforma artística para fazer o público questionar pensamentos e atitudes sociais. Nesse álbum, além de levantar a bandeira feminista e a realidade da favela com a música ‘’Berro’’ – parceria com Tati Quebra Barraco e a drag queen Lia Clark -, o coletivo demonstrou, apesar da desaprovação de alguns parceiros, apoio à legalização da maconha na faixa ‘’Maconha e Pente’’. ‘’Outros artistas próximos falaram ‘não existe aparecer fumando maconha, não pode, vai destruir suas chances’, mas eu acho que tudo tem limite, as concessões tem limites. A proibição da maconha é um absurdo grande demais para você aceitar jogar segundo essas regras atuais. Então, a gente decidiu jogar tudo pro alto e fazer mesmo assim’’, conta.
Criado em 2013 no Rio de Janeiro, Heavy Baile começou a invadir o cenário musical carioca a partir de festas inicialmente realizadas nas favelas, criando uma relação com a comunidade. Hoje, com o sucesso da mistura entre a batida do funk e os sons da música eletrônica, Leo Justi e Tchelinho estão viajando o Brasil com um show que une a musicalidade e a dança periférica. ‘’Era muito focado em mim e no Tchelinho e agora cada vez mais estamos fazendo show com dançarinos. Isso está virando uma parte integrante da banda mesmo. É uma exposição mais completa do universo que queremos transmitir. A música é o fundamento e a dança é a manifestação disso, então é bom que agora esteja conseguindo fazer isso porque a gente sempre fez a festa de vitrine para que firmasse esse nosso formato e agora estamos colhendo o que queríamos’’, conta.
Além das festas, o coletivo também brilhou no Festival Bananada, realizado em maio e que acontece há 20 anos em Goiânia. Para o produtor, que já trabalhou com nomes nacionais e internacionais, como Rincon Sapiência na faixa ”Ponta de Lança” e M.I.A na faixa ”A.M.P”, o convite para se apresentar em um evento desse porte representa a expansão do funk e do discurso de resistência do ritmo na sociedade. ‘’Foi um processo longo. Nós começamos o coletivo e agora estamos nos apresentando no Bananada, um festival que eu nunca imaginei que estaria aberto a isso. Nós estamos em um momento no qual estilos musicais do gheto estão mexendo novamente nessa alternativa de luta, de resistência, que existe desde antigamente. Antes era reconhecido, mas não quanto agora, sabe? O funk é resistência só por ser funk e isso hoje está mais mastigado na cara das pessoas’’, afirma.
https://www.youtube.com/watch?v=wYp-XTUYxS0
Com o sucesso de intérpretes como Anitta e Ludmilla, o funk expandiu novamente para o exterior depois do boom que ocorreu em meados de 2006 quando cantores como Pitbull utilizaram batidas do ritmo em suas produções. Segundo levantamento realizada em 2016 pela plataforma de streaming ‘’Spotify’’, o aumento do consumo do gênero fora do Brasil foi de 3,421%, sendo Estados Unidos o maior consumidor. A partir do coletivo, Leo Justi pretende justamente internacionalizar ainda mais o funk, transformando-o em uma manifestação maior que o dance hall, estilo musical jamaicano nos anos 70. ‘’O Heavy Baile sempre teve a ideia de retomar essa expansão. Acho que agora está rolando bem mais, o funk está voltando a sair e vamos ver se o ele continua crescendo nessa proporção pra virar um ritmo latino, um ritmo de terceiro mundo que entre realmente na indústria. É pouco conhecido ainda, mas tem o interesse. Até a música nova da Jennifer Lopez tem uma batidinha de funk, apesar de discreta’’, diz Justi que atualmente está trabalhando com djs americanas que tocam produções de funk em festas de elite.
De acordo com a mesma pesquisa citada acima, uma das músicas mais tocadas lá fora em 2018 foi o hit de Mc Fioti, ‘’Bum Bum Tam Tam’’, que devido o sucesso internacional ganhou uma nova versão com a participação do colombiano J. Balvin e do americano Future. Já na história geral da plataforma, a artista que liderou globalmente foi Anitta, principalmente depois do lançamento de ‘’Vai Malandra’’. No entanto, para Leo, o trabalho da ex-MC não representa o essência do ritmo, excluindo o verdadeiro funk que está presente nas favelas e levando mais em consideração o sucesso de vendas. ‘’Anitta não é funk para mim, ela é pop. Todo mundo quer dinheiro, tudo o que querem nessa vida é dinheiro, então, elas vão até onde tem mais dinheiro, que nesse caso é o pop. A galera que está fazendo mais funk de favela, que é o que eu considero arte, são pessoas que estão levando muito mais em conta a diversão do que o dinheiro que vão ganhar. E mesmo quando querem ganhar dinheiro, a veia artística fala mais alto e a pessoa acaba fazendo uma parada inovadora porque o funk é movido a isso’’, declara.
Essa visão meramente lucrativa reflete diretamente na indústria audiovisual. De acordo com Leo Justi, grandes produtoras e empresários focam tanto no retorno financeiro que acabam, por fim, impedindo que o artista explore sua criatividade por medo de não resultar em um produto de grandes vendas. ‘’Para essas grandes empresas o que importa mais mesmo é a quantidade e não a qualidade do que é feito’’, diz. O produtor ainda completou criticando a rotatividade dessas produções. ‘’Tem sempre uma pressão do mercado hoje em dia para que você faça coisas novas e inéditas. O modelo hoje em dia é diferença de como era quando eu estava crescendo. A banda lançava um álbum e em média 3 ou 4 clipes no período de 12 a 15 meses. Hoje, por exemplo, o Livinho lançou 20 clipes no ano. Isso é bizarro’’, conta.
Em um período no qual a cultura brasileira sofre com falta de incentivo e valorização, o crescimento da musicalidade do funk é uma surpresa. De acordo com Justi, é exatamente esse mercado da indústria funkeira que permite que ele continue sobrevivendo apenas com o capital de empresas privadas. Para ele, o ritmo só precisa de liberdade política, que está ameaçada devido à proposta de lei – criada em 2015 pelo webdesigner Marcelo Alonso – na qual o funk será considerado crime. ‘’O funk é o lugar mais mercadológico da cultura. Se você pensar, na verdade, o funk é o que menos precisa desse incentivo. O funk só precisa ser deixado em paz, não ser proibido. Atualmente, é o que as pessoas mais querem, mais consomem e estão mais dispostas a consumir também. Então, o que mata o funk, o que sufoca ele, é a política, e não a falta de lei ou de incentivo”.
Apesar de todo o crescimento, o gênero ainda é visto por maus olhos por uma grande parte ainda conservadora do público, principalmente com relação às danças, cujo principal movimento é com o quadril e a pélvis, que são mostradas nos clipes e em apresentações. Nesse caso, se inserir na indústria internacional parece ser um caminho mais fácil do que superar os preconceitos da própria sociedade. ‘’A ignorância é imbatível. Por exemplo, quantas famílias conservadoras não vão ver uma mulher rebolando e achar que ela é piranha? Com isso, não há o que você fazer, você não vai conseguir mudar a ideia da galera conservadora e ignorante, porque ela já está cristalizada nessa coisa de que sexo é pecado, de que corpo é pecado e confundem tudo porque a malícia está na visão deles’’, conta.
Mesmo sem o financiamento tão grande quanto os de outros artistas do gênero, Heavy Baile planeja produzir mais clipes para o novo disco ‘’Carne de Pescoço’’ e seguir com as festas e apresentações, divulgando-as por meio das redes sociais – mas claro, sempre levando em consideração o perigo do algoritmo online. ‘’ Eu fico de olho pra ver como o facebook está sabotando a gente porque é um ambiente cruel. Os caras estão realmente acabando com a democracia na internet. O que era uma promessa de um lugar democrático, o facebook se tornou a nova Globo’’, brinca. Além de focar na divulgação do novo trabalho, Leo Justi, seja pelo Heavy Baile ou em produção solo, planeja criar um ambiente de incentivo para jovens artistas de comunidades a fim de inseri-los, eventualmente, no mercado musical do funk. ‘’Eu sempre vejo os trabalhos desses jovens. A parceria com a Mc Carol, por exemplo, eu fiz em parceria com produtores da favela. Pretendo continuar fazendo porque é muito talento. Eu trabalhei agora com um menino de 17 anos que fez um vídeo incrível e quis comprar o trabalho dele. O Heavy Baile está nesse movimento cultural que o jovem de 17 anos pode não estar, mas com essa ligação com a gente e com outras pessoas ele vai estar. Ainda não é exatamente o que eu gostaria de fazer, queria poder fomentar o funk de um jeito muito maior, mas isso é o começo. Quem sabe um dia vou ter um time bizarro, como um selo de gravadora mesmo. Essa é a minha visão’’, reflete. Viva o funk e os novos artistas!
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