*Por Simone Gondim
Os 65 anos da tradicional Festa do Peão de Barretos, que deveriam ter sido uma grande comemoração, ficaram marcados por uma live um tanto ou quanto melancólica, comandada por Gusttavo Lima, embaixador do evento. Marcada para as 21h de sábado (29), a transmissão começou com quase 30 minutos de atraso, aberta pelo locutor Cuiabano Lima com um discurso no estilo animador de auditório, que ficava ainda mais chato porque não havia plateia nas arquibancadas – por conta dos riscos relacionados à Covid-19, só estavam no Parque do Peão os artistas, os músicos e as equipes envolvidas na organização, produção e transmissão do show.
Em meio a fogos de artifício, luzes piscando e música eletrônica, aparece no palco um homem barbado, vestindo um paletó bordado estilo toureiro, usando chapéu e fazendo poses coreografadas. Uma gravação anuncia: “O embaixador chegou! Aaaaai, bebê!”. Houvesse público, provavelmente ouviríamos gritos, palmas e assovios, mas na falta dele dezenas de câmeras e dois drones de alta definição alternam imagens de perto e de longe da estrutura circular com seis palcos interligados e um sistema de iluminação no qual se destacam centenas de placas de LED.
Finalmente, a música eletrônica dá lugar aos violões que marcam a introdução de “Milu” e vem Gusttavo Lima, entrando em cena por uma plataforma que o faz surgir do chão, recurso já usado em seus DVDs. Ele mantém a postura e as pausas como se houvesse um público para vibrar e cantar junto – a encenação causa estranhamento a quem está em casa, porque a ausência de reação ao fundo enfatiza que o artista se apresenta para arquibancadas vazias. Usando de maneira cansativa os bordões “O embaixador chegou” e “ai, bebê”, o artista alterna sucessos de seu repertório, como “Apelido carinhoso”, “Balada”, “Final do fim”, “Carrinho na areia” e “Quem traiu levou”, e sertanejos gravados por vários cantores, como “Bebo pa carai”.
Nem a chegada dos convidados – o cantor Felipe Araújo e as duplas Rionegro & Solimões, Edson & Hudson e Matogrosso & Mathias – consegue amenizar a falta que faz uma plateia. O excesso de elogios trocados entre os artistas é outra coisa que incomoda, porque soa bastante forçado. Também atrapalharam as interrupções do locutor Cuiabano Lima, responsável por citar os patrocinadores e convocar a audiência a usar o celular para ler um dos QR Codes visíveis na tela e comprar um título de capitalização beneficente, concorrendo ao sorteio de dez automóveis, incluindo uma BMW. O resultado da premiação, aliás, só saiu no fim da live, que durou cerca de sete horas e meia.
Apesar de dizer, em vários momentos, que era solidário a quem sofreu de alguma forma com a Covid-19 e reforçar a importância das medidas preventivas, que incluem evitar aglomerações e contato físico, Gusttavo Lima mostrou ser adepto do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Abraçou efusivamente quase todas as pessoas que subiram ao palco, incluindo artistas, o locutor Cuiabano Lima e integrantes da organização da Festa do Peão de Barretos, como o presidente do clube Os Independentes, Jerônimo Muzetti, claramente do grupo de risco por conta da idade. Além disso, ninguém que aparecia na frente das câmeras usava máscara – em outras lives, por exemplo, músicos que não faziam vocal de apoio passaram o tempo quase todo com o rosto coberto. Ao ouvir o cantor Felipe Araújo contar que teve coronavírus, Gusttavo chegou a fazer uma brincadeira, emendando em seguida que se tratava de um assunto sério e dando a entender que ao menos parte dos envolvidos na live havia feito testes para detectar a doença.
Mas a grande demonstração de estranheza ainda estava por vir. Depois de Pedro Miguel Muzetti, filho de Jerônimo e diretor artístico do grupo Os Independentes, ser chamado ao palco junto com o pai, para que falassem da importância da festa, ressaltando as peculiaridades do momento difícil vivido no mundo em função da Covid-19 e aproveitando para anunciar Gusttavo Lima como embaixador do evento em 2021, foi exibido um vídeo enviado pelo presidente do Brasil, que desde os primeiros casos da doença se mostrou contrário isolamento social e ao “lockdown” para conter a disseminação do coronavírus. Em seu breve discurso, ele lamentava não estar lá e prometia desfilar a cavalo no próximo ano. Organizadores do evento, o locutor e a maioria dos artistas no palco fizeram questão de aplaudir ao fim do vídeo, mas Gusttavo foi além e soltou a frase: “Tamo junto. Abraço, presidente”.
Tanto Gusttavo quanto alguns dos convidados perderam grandes chances de ficarem calados ao fazerem comentários machistas e de duplo sentido, que não tinham a menor graça, mas provocavam risadas entre eles. Gusttavo, pelo visto, não aprendeu nada com as polêmicas em que se envolveu por causa de atitudes machistas. A mesma live do artista que gerou investigação do Conar por causa do consumo indiscriminado de bebidas alcoólicas, por exemplo, também foi duramente criticada em função de frases infelizes ditas por ele. Mas a grande pérola machista da noite saiu em uma dobradinha entre Gusttavo e Cuiabano. O apresentador falava do número de cavalos do motor da caminhonete de luxo que será dada como prêmio ao peão vencedor da prova de montaria em touro, quando o cantor perguntou se não havia éguas também. A resposta foi daquelas que a gente franze a testa e até volta um pedaço do vídeo, achando que não ouviu direito. “É só ganhar uma picape dessas que as éguas vêm todas atrás”, disse Cuiabano.
Para quem gosta do sertanejo que se aproxima mais do tradicional, as duplas Rionegro & Solimões, Edson & Hudson e Matogrosso & Mathias fizeram valer a noite. Músicas como “Ô de casa, ô de fora”, “De igual para igual”, “Boate azul”, “Porta-retrato”, “No fim desta estrada” e “Talismã” devem ter mexido com muita gente que assistia. Outro momento de emoção ficou por conta de “Galopeira”, na qual todos puderam soltar a voz. Quem surpreendeu foi Matogrosso, que ficou observando quietinho enquanto os mais jovens cantavam e, ao final, pediu licença para dizer que havia morado no Paraguai e mostrar, sozinho, a canção em sua versão original, em espanhol. Do alto de seus 70 anos, ele deixou todo mundo comendo poeira na arena de Barretos.
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