Grupo Especial das Escolas de Samba do Rio pede socorro aos céus e faz crítica social na Sapucaí


As 14 agremiações da elite carioca tiveram que driblar a falta de dinheiro e usar muita criatividade para não perder o brilho e fazer bonito da passarela do samba

*Por Rafael Moura

Carnaval e crítica social é uma dupla que dá muito samba, afinal, está na raiz do Maior Espetáculo da Terra. A festa em 2019 teve essa irreverência política muito bem aflorada. O público se acostumou com o luxo, riqueza e opulência, mas quando o dinheiro falta, a criatividade abre alas, sendo o grande envelope para levantar a taça na Quarta-Feira de Cinzas.

As 14 agremiações do Grupo Especial que passaram pela Passarela Professor Darcy Ribeiro pediram socorro, fizeram denuncias e até evocaram as bençãos do divino como enredo neste ano. Mas como todo carnaval tem seu fim, o que fica são as belas imagens, uma doce lembrança e ansiedade para conhecer a campeã de 2019.

A Império Serrano cortou a fita da Sapucaí fazendo uma reflexão sobre o sentido da vida com o enredo O que é o que é?, música de Gonzaguinha de 1982. A escola de Madureira que valoriza suas raízes, trouxe no abre alas um coração verde gigante, a força e a garra dos imperianos. Os membros da bateria vieram vestidos com estampas militares, para lembrar que a vida pode ser uma guerra, com a rainha Quitéria Chagas. O milagre da vida acontece mesmo na miséria. Afinal “que a vida devia ser bem melhor e será”.

A Viradouro, trouxe Paulo Barros depois de 11 anos e inventou uma fábula chamada “Viraviradouro” com direito a bruxas voadoras, livros encantados, motoqueiro fantasma, poções mágicas, príncipes, princesas e outros personagens das histórias infantis. Barros criou a história de um livro trazido pela avó para um neto com contos de fadas, mistérios, fantasias e maldições. O Mestre Ciça de Merlin estava incrível.

“Quem nunca? Que atire a primeira pedra” foi o tema escolhido Márcia Lage e Renato Lage, a dupla de carnavalescos da Grande Rio que pediram uma reflexão do público com um desfile descontraído sobre a falta de educação em diferentes aspectos da vida na sociedade. A comissão de frente tinha um Moisés tentando modernizar os dez mandamentos numa versão século XXI, com emojis, que saíam voando das cabeças dos dançarinos como drones, e de um grande tablet. Juliana Paes ganhou super likes na frente da bateria.

O Salgueiro fez uma prece a Xangô. Alex de Souza recontou a história do orixá da justiça, dos raios, do trovão e do fogo. A escola da Tijuca também falou sobre a (in)justiça no Brasil. O enredo também homenageou Júlio Machado (1939-2007). O Xangô do Salgueiro, como era chamado, desfilou por 39 anos na escola, sempre com o mesmo figurino. Vale destacar a volta do puxador Quinho ao lado de Emerson Dias. A rainha das rainhas Viviane Araújo como a Borboleta de Xangô. E a homenagem a Djalma Sabiá o único fundador vivo da agremiação. Várias alas trouxeram faixas com frases contra o preconceito.

A Beija-Flor compactou 70 anos de história em um pouco mais de uma hora na passarela do samba. A atual campeã fez uma retrospectiva da sua própria história com o enredo “Quem não viu vai ver as fábulas do beija-flor”. Cada ala remeteu a um pedacinho da vida da agremiação de Nilópolis – enredos biográficos, herança africana, sátiras políticas e histórias lúdicas e críticas sociais. A rainha Raíssa de Oliveira bateu recorde ao completar 17 carnavais. Pinah Ayoub, enredo de 1983, se emocionou ao ser homenageada em ala de passistas com 35 mulheres negras com a cabeça raspada.

A Imperatriz Leopoldinense estendeu um tapete dourado, verde e prata no Sambódromo com o enredo “Me dá um dinheiro aí” que falou sobre a ganância, a história do dinheiro e a relação do homem com a moeda. A comissão de frente trouxe um Robin Hood voador que jogava dinheiro (falso) na platéia. A dupla de carnavalescos Mário Monteiro e Kaká Monteiro abordou ainda o custo da vida, as moedas digitais, bitcoins… No fim uma homenagem ao dinheiro na cultura pop, teve o saudoso professor Raimundo, de Chico Anysio e seu bordão “e o salário ó”, e a peça “Deus lhe pague”.

A história do pão foi o tema da Unidos da Tijuca com o enredo “Cada macaco no seu galho. Ó meu pai, me dê o pão que eu não morro de fome!”. O alimento físico e espiritual foi o fio condutor para contar a história da humanidade. Considerado o samba mais lindo de 2019, a amarelo e azul da Tijuca fez um passeio pela Santa Ceia, a Revolução Francesa, a Revolução Russa, a fome, a escravidão e até a exploração dos trabalhadores. O trigo é um dos alimentos mais antigos do mundo.

Uma crítica ao modelo atual de fazer carnaval, foi a história que Jorge Luiz Silveira quis abordar no enredo “E o samba sambou”, que é uma reedição da apresentação da São Clemente, em 1990, quando conquistou o sexto lugar no Grupo Especial. “Uma aula de fazer escola de samba, leve e divertida. Toda em material barato, mas de confecção incrível”, disse Milton Cunha.

“Em nome do Pai, do Filho e dos Santos, a Vila canta a cidade de Pedro” foi o enredo que a Vila Isabel levou a Sapucaí pelas mãos de Edson Pereira. Uma homenagem a cidade de Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro. Um desfile luxuoso, com muito barroco e rococó. “Investimentooo Altérriiimo. Luxo, luxo, luxo, quanto luxo meu Deus”, destaca Milton Cunha. A bateria soltava fumaça dos chapéus representando as locomotivas e Sabrina Sato, a mãe da Zoe, vinha de maquinista. “Coroação de um trabalho de uma vida inteira. A minha vida e a da Vila se confundem”, conta orgulhoso Martinho da Vila.

A maquinista Sabrina Sato comandando a loucomotiva Vila Isabel (Agnews)

Rosa Magalhães misturou Madureira e Tarsila do Amaral para contar a história de Clara Nunes com o enredo “Na Madureira moderníssima, hei sempre de ouvir cantar uma Sabiá”. A Portela, já levou 22 títulos do carnaval carioca. “A escola que se encantou com a cantora e a cantora que se encantou com a escola”, conta a professora Rosa Magalhães. Na comissão de frente, assinada por Carlinhos de Jesus, as guerreiras de Iansã e com seus erufins foram varrendo as más energias do Templo Sagrado do Samba. Vimos três Claras ao longo do desfile: na Comissão de Frente, Marienne de Castro; a Porta Bandeira Lucinha Nobre; e Emanuelle Araújo, no último carro. A ala navy assinada por Jean Paul Gaultier representava a visita dos franceses a Madureira levados por Tarsila do Amaral. “Portela transformando a Sapucaí numa gira”, aponta Milton Cunha. “Foi um romance entre duas entidades: Clara e Portela”, finaliza Marlon Lamar, mestre sala da azul e branco.

A modelo Carol Trentini na Portela a convite de Jean Paul Gaultier

O Ceará foi tema de duas escolas União da Ilha com “A Peleja Poética entre Rachel e Alencar no Avarandado do Céu” e Paraíso do Tuiutí com “O Salvador da Pátria”. A Ilha mostrou uma disputa poética entre Rachel de Queiroz, representada por Cacau Protásio, e José de Alencar, que foi Seu Gonçalo, o Presidente da Academia Brasileira de Cordel. Já na Tuiutí, o Bode Ioiô, eletito vereador em Fortaleza, serviu de personagem para uma crítica forte a política brasileira. Na comissão de frente o povo foi usado como ponte para os políticos chegarem onde querem. (Qualquer semelhança é mera coincidência). O início da escola trouxe cores quentes representando a seca do Nordeste. O desfile fez referência ainda ao teatro popular, ao Auto da Paixão e a Litografia, a prensagem feita para produzir a literatura de codel.“Estamos defronte do realismo fantástico. É uma delícia, é um delírio. Isso é herdeiro de Joãozinho Trinta que sempre fez essa maionese”, reverencia Milton Cunha.

“O enredo da Mangueira conta a história de personagens importantes que não estão nas páginas do livros – índios, negros e populares. É uma grande crítica social”, conta Leandro Vieira, Carnavalesco da Escola. A Verde e Rosa usa a passarela do samba como uma sala de aula para ensinar e encenar “História pra ninar gente grande”, mostrando o Brasil que não está nos livros de história. Com 19 títulos a agremiação mostrou as “páginas ausentes” da nossa vida, criticando narrativas oficiais que foram ensinadas ao longo da construção do Brasil. “Tirando a poeria dos porões do abre-alas”. Hildegard Angel foi um dos destaques da escola. A jornalista perdeu o irmão, Stuart Jhones e mãe Zuzu Angel no período da ditadura. As paradinhas da Surdo Um com o timbal, eram de arrepiar. O desfile deixa uma pergunta: quem são Zumbi, Dandara, Teresa de Benguela, Jose Piolho, Esperança Garcia, Luiza Mahin, Luis Gama, Chico da Matilde, Alejadinho, Machado de Assis, Marielle, Lecy Brandão, Mussum? “Fizemos um carnaval pro povo. Precisamos brincar e compartilhar essa alegria, apesar de uma história dura”, conta emocionada Squel. “A Mangueira tem uma missão e um compromisso com a educação, a politização e a cultura do seu povo”, finaliza Alcione.

A Rainda de Bateria da Mangueira Evelyn Bastos representando Esperança Garcia

A Mocidade Independente de Padre Miguel encerrou o desfile das escolas de samba do Grupo de Especial falou sobre o tempo com o enredo “Eu sou o Tempo, Tempo é Vida”, do carnavalesco Alexandre Louzada. A comissão de frente trouxe cientistas e uma máquina do tempo. O abre-alas trouxe Elza Soares, como a estrela maior. A escola já declarou que a cantora terá sua história contada em 2020. “As cores ao amanhecer parecem irreais, um colorido denso. Alexandre aproveitou a luz do dia para explodir em cores”, conta impressionado Milton Cunha. A imagem futurista foi predominante e fez referências aos enredos “Trevas! Luz! A explosão do universo”, de Joãozinho Trinta e “Criador e Criatura”, de Renato Lage. O homem sempre tentou controlar o tempo, não é por acaso que estamos sempre tentando retardar o envelhecimento. “Muitos acreditam que tempo é dinheiro. Eu prefiro achar que é vida”, finaliza Fátima Bernardes.

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