Gabriel O Pensador, ainda com a dor pela morte do pai, retorna aos palcos: ‘O rap é poesia que traduz emoções’


O cantor, compositor e escritor que há quase 30 anos vem ‘recortando’ fatos do cotidiano e transformando em música, é considerado um grande cronista. O artista conversou com o site Heloisa Tolipan e falou sobre o sentimento de retornar aos palcos, a perda do pai durante esse período de pandemia, a retomada cultural, a interação entre gêneros musicais, livros e projeto futuros. “Acredito muito na importância e na valorização da cultura, e nessa retomada gradativa. Estamos gerando trabalho, vida e o encontro entre as pessoas. Que é o que estamos sentindo falta”, frisa

Gabriel O Pensador, ainda com a dor pela morte do pai, retorna aos palcos: 'O rap é poesia que traduz emoções'

Com quase 30 anos de carreira, Gabriel O Pensador é um dos grandes nomes da arte brasileira (Foto: Camila Mendes)

*Por Rafael Moura

“O rap é poesia. É livre. Estamos aí para traduzir as emoções que cada hora vem de um jeito”, conta Gabriel O Pensador, que podemos dizer, com certeza, que é um grande cronista da nossa vida cotidiana e das realidades duras que enfrentamos. Afinal, o cantor de rap, compositor, escritor e “solitário surfista”, como define nas redes sociais, há quase 30 anos, vem ‘recortando’ fatos diários e os eternizando em rap. O músico voltou aos palcos, depois de um ano e meio de isolamento social e uma dura perda nesse período: o pai, o oftalmologista Miguel Contino, morreu em abril depois de enfrentar graves problemas respiratórios. O pai guardava, carinhosamente, uma série de reportagens sobre o filho e, ainda com a dor da partida, lançou a faixa ‘A Cura Tá No Coração’, um feat com a cantora Cynthia Luz. ‘(…) Tô fugindo da loucura olhando pra janela/Não dormi a pandemia já deixou sequela//Poesia me procura e eu nunca fujo dela/Isolado mas nem tanto, ‘tô conectado’/ Mas me sinto abandonado como um náufrago na ilha deserta/Com saudade do calor de um abraço apertado (…)”.

Em julho, lançou ‘Patriota Comunista’, uma dura crítica às injustiças que ocorreram neste período de pandemia e à forma como o governo vem lidando com a crise, além de abordar angústias e decepções com aqueles que ainda apoiam políticos corruptos, situações de violência e humor mórbido. “O clipe foi gravado em Uberlândia e houve muita polêmica. Eu fui acusado de estar desrespeitando os mortos. Mas a ideia é o oposto. A música é uma homenagem aqueles que se foram e o vídeo é uma arte repleta de amor e seriedade. Cheguei até a sofrer intimidações antes de lançar a canção e o clipe no YouTube”, conta.

Gabriel O Pensador iniciou a carreira musical em 1992 ao lançar uma fita demo com a música ‘Tô Feliz (Matei o Presidente)’, como uma crítica ao governo Collor, e foi logo contratado pela Sony Music, engatando os álbuns ‘Gabriel o Pensador’, ‘Ainda É Só o Começo’, ‘Quebra-Cabeça’, ‘Nádegas a Declarar’, ‘Seja Você Mesmo (mas não Seja sempre o Mesmo)’, ‘MTV ao Vivo‘ e ‘Cavaleiro Andante’. Seu álbum mais recente, ‘Sem Crise’ (2012), foi lançado de forma independente. Esse período de isolamento foi de muita reflexão. “Aproveitei esse tempo fora da estrada para rever e organizar algumas ideias”. O artista, que em 2022 completa 30 anos de carreira, falou com o site Heloisa Tolipan sobre o sentimento de retornar aos palcos, a retomada cultural, a pandemia, a interação entre gêneros musicais, livros e projeto futuros desse carioca nascido em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio, e que ganhou o mundo. Confira abaixo a nossa conversa:

Heloisa Tolipan – Seu primeiro show nessa retomada cultural foi em Niterói, no Reserva Cultural, como parte integrante do ID: Rio Festival, evento multiplataformas que uniu moda, música, artes, capacitação e empreendedorismo. Como você sente essa sinergia?

Gabriel O Pensador – Acredito muito na importância e na valorização da cultura, e nessa retomada gradativa. Estamos gerando trabalho, vida e o encontro entre as pessoas. Que é o que estamos sentindo falta.

HT – E a ansiedade de poder voltar a encontrar o público?

GOP – Eu estava sem pressa, aguardando esse recomeço. E o primeiro show, no ID: Rio Festival, em Niterói, foi muito mais do que eu esperava. Um show que vai ficar marcado na minha lembrança. Uma energia incrível esse reencontro com o público. Cheguei a recusar uns convites, porque eu achei cedo demais. Mas estamos de volta.

Gabriel O Pensador depois de quase dois anos retorna aos palcos. “Estamos gerando vida’ (Foto: Camila Mendes)

HT – Como o Gabriel passou esses quase dois anos de isolamento social? 

GOP – Eu aproveitei para criar e organizar umas ideias. Lancei livros novos, o último em formato E-book,  ‘A Lâmpada queimada‘, lancei uns singles, um clipe. Durante a pandemia, estive muito presente pelas lives, no Facebook, Instagram, mas o contato com as pessoas é importante demais. E também no inicio, foi muito duro, porque tivemos um break na agenda e o falecimento do meu pai, que partiu no final de abril. Foi um momento de pensar na vida, de me conectar com outras atividades, porque, apesar de amar o que eu faço, a estrada consome muita energia e tempo. É tudo muito corrido e intenso.

HT Ao longo desses quase 30 anos de carreira você vem ‘recortando a sociedade’ para compor suas músicas. Como surgem essas narrativas que o inspiram?

GOP –  É difícil explicar o meu processo de composição. O gostoso é que cada música vem de uma maneira, algumas começam pela letra e, depois, vou adaptando para a música. Ou pego um beat e vou fazendo uma gravação brincando com melodias, flows, e ajustando a letra. Isso aconteceu muito no disco ‘Cavaleiro Andante‘ e ‘Seja Você Mesmo (mas não Seja sempre o Mesmo)’, que está fazendo 20 anos agora. Hoje em dia, eu gosto muito quando acordo de um sonho ou observo momentos inusitados, de inspirações. O que eu consigo detectar é que são abordagens de narrativas diferentes. Umas vão para um lado mais leve, com humor, outras mais profundas, com um desabafo, como a música que fiz pro meu pai, ‘Muito Orgulho, Meu Pai‘, ele ainda estava vivo. Tem muitas que mexem comigo, como ‘Até quando‘ e, outras mais divertidas como ‘Solitário surfista‘. O que eu gosto é dessa reunião de abordagens diferentes. Eu uso muito a sátira, ironia, humor e metáforas nas minhas músicas. Estou aí como um grande contestador social tentando romper com toda essa caretice.

HT – ‘Gabriel em estúdio’. O que você pode adiantar sobre o novo trabalho?

GOP – A gente fala assim: ‘eu estou em estúdio’. Porque, antigamente, parávamos tudo para gravar. Hoje em dia, eu não faço mais assim. Eu vou no estúdio gravo uma faixa, com um produtor, uma com outro, sem pressa e nem prazo para ter um disco pronto. Eu devo lançar mais algumas faixas em formato de single, ainda neste ano, como entrega antecipada de um futuro álbum. Ainda mais agora voltando os shows e vendo que a agenda está ficando cheia, não vou me pressionar a finalizar esse álbum por uma obrigação, vou deixar fluir.

(Foto: Camila Mendes)

HT – Você é um dos pioneiros na fusão/ união de estilos musicais, no Brasil, o que atualmente se tornou algo bem comum no nosso cenário musical. Como você enxerga essas diferentes ‘conversas’? 

GOP – Como sempre, estou aberto a fundir estilos. Fui um dos primeiros rappers a trazer essa mistura, no disco ‘Quebra-Cabeça‘, de 1997, que tem a música ‘A festa da música tupiniquim‘, com convidados como Lulu Santos, Barão Vermelho, Blitz e até samba. Hoje é comum esses feats, os artistas, tanto alternativos como renomados, usam muito esse encontro de ideias e olhares, o que é muito positivo para a nossa cultura. Eu tenho um projeto novo de fazer um disco só com convidados, chamado ‘Avalanche‘. Ainda não comecei, mas é uma ideia quem em breve vocês poderão conferir.

HT – Como você enxerga essa grande ‘festa da música brasileira’?

GOP – É engraçado você me perguntar isso, porque apesar de estarmos em um momento de esvaziamento cultural, pelo consumo rápido de ideias e falta de investimento temos muitos artistas surgindo e conseguindo ganhar o seu espaço. Uma ascensão pela arte, que tem um papel transformador. A arte por natureza é resistência e persistência, então, ela vai sempre existir, mesmo contra o gosto de alguns.

(Foto: Camila Mendes)

HT – Como o Gabriel se descobriu escritor? Você acredita que ter nascido na Terra de Noel Rosa, Martinho da Vila, Aldir Blanc e Braguinha despertou essa sua veia para as artes?

GOP – Como disse, o rap é um tipo de poesia. É livre. Estamos aí para traduzir as emoções, então isso foi um processo meio natural. Eu tenho um livro autobiográfico, ‘Diário Noturno‘, e os infantis, ‘Um Garoto Chamado Rorbeto‘ e ‘Meu Pequeno Rubro-Negro‘, ‘Nada Demais‘, uma coautoria com Laura Malin e o mais recente em e-book, ‘A Lâmpada queimada‘, que o link está na minha bio do Instagram. Sobre ter nascido no mesmo bairro que esses mestres/ gênios, nunca pensei sobre isso. Mas quem sabe não acabei sendo abençoado pela energia dessa turma da melhor qualidade. É uma grande honra ter nascido no mesmo local que esses e tantos outros grandes nomes importantes para a nossa cultura.

“O rap é um tipo de poesia, é livre. Estamos ai para traduzir as emoções”, diz Gabriel O Pensador (Foto: Camila Mendes)