*Por Felipe Rebouças
Pernambucana, filha de pais separados e crescida entre a Olinda do manguebeat e a região da Zona da Mata, em Palmares, terra do poeta Ascenso Ferreira, a cantora afrofuturista Doralyce respira contracultura na veia. “Me expresso através da música para emancipar corpos negros e destruir o patriarcado”, dispara. Ela conta que aos 18 anos “descobriu seu cabelo como é” e aceitou a “coroa natural” que nasce da sua cabeça. “Somente com essa idade percebi o que é ser preta dentro da classe média”, afirma, ao revelar que até então utilizava chapinha por influência da mãe, bastante religiosa.
“A igreja não aceita cabelo grande, solto, e é uma afronta para a religião cristã-ocidental”, pontua a artista. Em ‘Miss Beleza Universal’, primeiro sucesso que alavancou sua carreira, lançado no final de 2017, Doralyce canta: “Foda-se o padrão!”. “A história de Jesus é um exemplo de eugenia cultural. Afinal de contas Jesus Cristo é palestino e a imagem vendida é de um homem branco, de olho azul”, comenta a artista.
Para travar essa “batalha contra o poder hegemônico”, a cantora recorre à arte. “É meu instrumento de emancipação do corpo das mulheres pretas, indígenas, latinas, trans, fora do padrão, mães. E tudo que esteja à margem do capital”, explica. Seu desejo de mudar as coisas sempre foi motor de criação. Compositora desde os sete anos de idade, Doralyce diz que a música permite o estalo, o (re)start. O mesmo que sentiu ao aceitar seu cabelo.
Para justificar o tom efusivo e autêntico de seu discurso, a cantora argumenta que “é difícil adotar uma postura doce e afetuosa quando a sociedade oprime e violenta sua existência”. “Quero, com o meu trabalho, transformar dor e luto em afeto e luta”, diz. Em primeira mão ao site Heloisa Tolipan, Doralyce revela que vai lançar, ainda este ano, um disco e um livro batizados Dassalu.
O projeto consiste em produzir um manual de sobrevivência para pessoas em condição de vulnerabilidade, além de trazer tecnologias de um “pensamento descolonizado”, com abordagens que “superam o que foi construído no imaginário coletivo, através da televisão, das revistas, da mídia”. “Eu vejo um trabalho intelectual e artístico a caminho”, afirma.
Para ela, hoje se vive uma guerra de narrativas, um vai ou racha. “Estamos sendo soterradas, sufocas, asfixiadas. Estamos travando uma guerra de independência ou morte a cada declaração, a cada apresentação”, declara. Segundo a cantora, a arte é um lugar estratégico desta disputa pois “é o único espaço que confere protagonismo aos pretos” e que agora é o momento de decidir “em qual lado lutar”.
“Disseram que o lugar da mulher era na cozinha, nos espaços subalternos. O que tenho para dizer é que nossa carne não é mais a carne mais barata do mercado. Nosso lugar é onde a gente quiser. A gente precisa cantar junto, sonhar junto, caminhar junto. Eleger mais pessoas pretas, indígenas. A diversidade é o que nos identifica como população brasileira. Precisamos estar nesses espaços de poder para pautar nossa vida, nossa luta. Preciso de mais gente no legislativo, no judiciário, nas universidades. Precisamos nos conectar aos artistas que estão na rede de mãos dadas com essas demandas”, afirma Doralyce.
Lançamento de single
No último dia 20, a cantora ainda lançou o single ‘Festa Boa’. Com uma pegada humorada e doses de discernimento social, a letra traz uma campanha contra o assédio ao mesmo tempo que sugere a alternância de poder e um lugar de destaque para as figuras femininas – como abordado com a cantora nesta matéria. Para Doralyce, “’Festa Boa’ é para mexer o corpo e a mente juntos e só acontece no lugar onde a diversidade se sente acolhida e representada”.
Produzido pelo DJ baiano Felipe Pomar e composto pela cantora, o single traz a sonoridade pop do brega-funk, com a cara do Nordeste brasileiro. No elenco do clipe, dirigido por Henrique Alqualo, estão nomes como as cantoras Majur, Bia Ferreira, Janamô, Késia Estácio e os influenciadores Gab Hebling e Rodrigo França. “Uma galera que convive e luta junto comigo”, diz a artista.
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