‘Existe abismo entre espiritualidade e prática da religião’, diz Larissa Conforto que lança projeto musical ÀIYÉ


A cantora lançou recentemente o single “Terreiro” que faz parte do seu novo EP “Gratitrevas”. “Nessa música, eu busquei trazer uma atmosfera ritualística. Quando menciono o terreiro em uma música, quero falar desse lugar de autoconhecimento. De reconhecer a identidade brasileira e nos conectarmos com isso. Muitas pessoas criam preconceitos ou certezas baseadas em suposições e às vezes, basta entrar em contato com essa história de ancestralidade e perceber que vai muito além de religião”, afirma

*Por Domênica Soares

Misturando claves de Son de los diablos (um ritmo afro peruano de resistência), com um beat em compasso composto, Larissa Conforto lança o single “Terreiro” do  novo EP “Gratitrevas”, parte do projeto musical ÀIYÉ. A conta que terreiro é a “casa que recebe a luz, o chão sagrado onde dançam seus ancestrais e também o lugar onde os espíritos vêem a terra para prestar caridade para a humanidade”. Segundo Larissa, o Brasil é a terra do sincretismo, que conta com uma ancestralidade muito forte e diversa, o que reflete diretamente a nossa cultura.

Portanto, somos fruto da história de diversos povos indígenas, nações africanas e também da vinda de imigrantes europeus, asiáticos, entre outros. Um local com uma história proveniente de uma colonização de muito sangue, sofrimento, ódio e medo. Contudo, há também uma história linda de resiliência. “Nessa música busquei trazer uma atmosfera ritualística. Quando menciono o terreiro em uma música, quero falar desse lugar de autoconhecimento. De reconhecer a identidade brasileira e nos conectarmos com isso. Muitas pessoas criam preconceitos ou certezas baseadas em suposições e às vezes, basta entrar em contato com essa história de ancestralidade e perceber que vai muito além de religião”, afirma.

Em entrevista exclusiva ao site Heloisa Tolipan, Larissa explica que o projeto ÀIYÉ, significa terra em orubá, indo além dos aspectos materiais. Ela diz que ÀIYÉ é o mundo físico no qual as diferenças coexistem, sendo importante ressaltar esse teor de resistência e sincretismo existente no projeto. Para a cantora, essa ideia também é um lugar de busca e pesquisa constante, no qual ainda está estudando os melhores sons e timbres que sejam capazes de representar ainda mais nossa cultura.

A artista ainda cita que acompanhando todas essas ideias ainda pretende levar uma perspectiva futurista para essas composições. “Misturo sons de tambor e que remetem à rituais. Tem impressões que coletei pessoalmente. Tento unir a música eletrônica e do futuro com o passado”. Na opinião de Larissa, a história do país está sendo apagada, como por exemplo, com o Museu Nacional que pegou foto, a questão da Amazônia, problemas das barragens, óleo nas praias entre outros. O país ainda conta com a perseguição a negros e indígenas e processos de criminalização da pobreza.

E, com tudo isso, a intenção de Larissa é contar um pouco dessa história através da percepção dos sons, falando da coexistência e da diversidade da sociedade poder se tolerar e habitar o planeta de uma forma unida. 

Larissa Conforto fala sobre religião e sociedade (Rodrigo Tinoco)

Por mais que seu encontro com a umbanda seja extremamente forte, Larissa explica que conheceu a religião recentemente. Ela diz que é filha de uma mãe cientista social e um pai cientista político e que nunca teve referências religiosas em casa, não foi batizada, e nunca festejou Natal, Páscoa e outras datas comemorativas. Contudo, em paralelo, acabou crescendo em um mundo altamente questionador e desenvolveu muito cedo uma questão política com o mundo e que só depois de um tempo começou a entender melhor e se relacionar com a espiritualidade.

Sua primeira relação com a religião foi através da música e mais tarde se conectou com a história através de um curso de fundamentos da umbanda e tempo depois se uniu diretamente aos orixás. “Ao meu ver existe um abismo imenso entre a espiritualidade e a prática da religião. É muito delicado falar desse tema nesse momento atual brasileiro, porque temos um pensamento que representa um recorte da sociedade que é racista, homofóbica, machista e com as muitas tendências fascistas esse recorte está se alastrando pela política”, pondera. 

Além das dificuldades que enfrenta em discutir sobre a religião, a cantora conta também como é ser uma mulher umbandista e que, além disso, está inserida no cena musical. Para Larissa, ser mulher é algo desafiador, mas é muito bom quando entende-se a plenitude. A artista frisa que é grata ao universo por ter encontrado a religião e ter a chance de conversar com seus guias espirituais que a ajudam nesse universo tão machista e masculinizado da música.

“A maioria dos cargos na música são ocupados por homens, mas isso já vem mudando. Estar no mundo nesse determinado momento é um desafio, mas me inspiro em minhas amigas, exemplos de mulheres fortes e determinadas, de todas as raças e credos. Estamos formando uma corrente muito forte e vamos quebrar esses muros e paradigmas para que as próximas gerações não precisem passar pelo que estamos passando agora”, argumenta. 

Artista conta sobre sua ligação com a umbanda e a música (Rodrigo Tinoco)

Larissa conta que é formada em produção fonográfica e que já fez trabalhos em duas gravadoras quando estava com a banda Ventre. Atualmente é artista independente e isso fez parte de sua escolha no mundo musical que com a tecnologia vem ganhando cada vez mais opções de disseminação de conteúdo. Para ela, a ideia do “Do It Yourself”, que começou nos anos 90, passou por uma repaginada, principalmente após a evolução das redes sociais. “Temos agora o ’Do It Together’. Antes o raciocínio era baseado no faça você mesmo, hoje em dia o fazer em conjunto vem ganhando muito mais força. Estamos na cultura do compartilhamento e também do alto fluxo de informações. Hoje em dia, por exemplo, em relação ao lançamento de álbuns, existe uma pulverização. O que eu vejo como positivo, porque nossa cultura consegue ficar mais diversificada e as pessoas são capazes de ter acesso a muito mais conteúdo”.

Além disso, ela cita que até mesmo a relação das pessoas com a música mudou. Atualmente o público tende a valorizar mais o som e toda a hierarquia existente no passado com as gravadoras e CDs físicos vem diminuindo. Dessa forma, a visão da artista é muito positiva, porque parte da ideia da horizontalização da música, levando ainda mais possibilidades para os músicos. 

Capa do single “Terreiro”

Sempre conectada ao mundo da música e com alto astral elevado, Larissa Conforto revela que seu maior sonho nesse momento é ter cada vez mais saúde para estar viva e presenciar todas as reviravoltas que o mundo vai ganhar. “Quero ver o patriarcado cair, porque isso não faz mais o menor sentido. Quero ver mulheres, homens, pessoas não binárias e de todos os gêneros, credos e etnias se colocando e aceitando, podendo desfrutar do mundo de uma forma igual. Tenho para mim que depois desse caos alguma coisa vai acontecer e que vamos conseguir despertar o afeto no final desse processo todo. Quero estar viva para ver essa evolução. E enquanto isso, desejo fazer com que a arte e tecnologia sejam cada vez mais relevantes e despertem as pessoas, trazendo mais clareza do convívio em sociedade”.