No último sábado, dia que apresentou o line-up mais eclético da edição comemorativa de Rock In Rio, a beninense Angelique Kidjo levou toda a glória de sua cultura africana para o Palco Sunset do festival, onde fez uma performance memorável, baseada no ritmo de seus tambores e em uma voz incrível, que contagiou todos os presentes e terminou em festa no palco, com convidados dançando ao lado da artista. HT sentou-se com a cantora para um papo sobre sua conexão com os fãs brasileiros, o ponto de encontro entre todos os gêneros musicais, a importância de reforçar as raízes afrodescendentes no Brasil e sobre ter cantado, na véspera do festival, em um evento da ONU, no qual a Embaixadora da Boa Vontade da UNICEF fez bonito com um discurso sobre igualdade de gêneros.
No palco, Angelique Kidjo parece mais uma força da natureza do que uma simples cantora, movimentando-se por toda a extensão do Sunset e demonstrando uma expressão corporal tão ampla quanto um ser invertebrado. A voz, um atributo que merece atenção por si só, ainda foi potencializada pela parceria com o baixista Richard Bona, que soube muito bem como lidar com a energia da artista. Algo similar ao que ela já havia apresentado em março durante o festival Back2Black (como mostramos aqui), mas aumentado.
Mas Angelique, aos 55 anos, sabe muito bem que o seu papel como cantora vencedora do Grammy vai muito além de colocar o público para dançar. Durante uma conversa com HT, ela fala sobre como a cultura africana é a raiz de toda a população, mesmo que muitos façam força para se esquecerem disso. Ela também mostra uma consciência global sobre temas como mudanças climáticas e pobreza que lhe conferem mais propriedade ainda como Embaixadora da Boa Vontade da UNICEF. E, mais, ela mostra um genuíno interesse em ajudar o próximo, como fica claro ao descrever sua primeira vinda ao Brasil, ainda na década de 1990. Abaixo, você confere a entrevista completa:
HT: Você já se apresentou várias vezes no Brasil. Qual a diferença de subir ao palco do Rock In Rio para um público tão amplo e diverso assim?
AK: Eu amo esse festival pela maneira como ele tem a mente aberta. Porque nos outros festivais que você vai, os conceitos são muito fechados. E não é assim, todos os tipos de música devem ser bem-vindos. Esse é um festival que, sim, ama o rock, mas todos os gêneros são bem-vindos, e isso dá uma outra dimensão. Porque nem todo mundo no Brasil gosta de rock’n roll. E ainda acredito que o Rock In Rio esteja de acordo com os nossos tempos, porque somos vivemos em uma vila global, e isso precisa ser representado.
HT: Durante o seu show, muitos jovens gritavam “Eu te amo” e se emocionaram quando você desceu do palco. Como foi a construção dessa relação com o público brasileiro?
AK: Eu venho ao Brasil há mais de 20 anos. Minha primeira visita foi durante o Carnaval da Bahia, que se parece muito com o próprio Carnaval que nós temos em Benim. A comida, o cheiro… Tudo em Salvador parece muito familiar com a minha casa. Meu primeiro trabalho por aqui foi com crianças de rua, uma parceria com um garoto de 19 anos que acreditava poder mudar o mundo com o poder da música. Eu me lembro muito bem de um menininho que era muito tímido e calado, que vinha de uma família abusiva e estava acostumado a apanhar em casa, mas quando você colocava duas palhetas de bateria nas mãos dele, ele se tornava outra pessoa.
HT: É o poder transformador da música, né?
AK: Exatamente! E eu amo ver isso. Mas essa memória se tornou muito forte para mim em relação ao Brasil, porque depois eu tive a chance de conhecer várias outras cidades como São Paulo, Porto Alegre etc., e todas são muito diferentes entre si. Esse é um país muito específico e a música no norte não é igual à do sul. Me interessei muito nisso.
HT: Ao longo do show você também disse algo muito interessante que, na música africana, todos os ritmos se encontram, é dali que nasceu até o rock’n roll. Para você, como é trazer essa cultura africana a um país que traz tantas semelhanças e heranças com isso quanto o Brasil?
AK: Esse festival não existiria e o próprio rock’n roll jamais existiria sem os africanos. O rock vem do blues e ele vem dos escravos. Durante a minha jornada como artista, eu aprendi isso. Não há um lugar no mundo em que eu estive que não possa ser relacionado com a África. Nenhum! Não há ritmo assim. E é assim porque todos somos africanos. Nós continuamos esquecendo que nossos ancestrais vieram da África. E nós não pensamos nisso. Com a música é o mesmo: a salsa, o samba, o pagode, tudo você pode relacionar à cultura africana. É algo que está nas suas veias.
HT: Você cantou ontem em um evento da ONU, que ainda tinha a Shakira e o Papa presentes. Como é o seu trabalho como embaixadora da UNICEF e como você vê a importância de usar sua voz para chamar atenção para problemas sociais?
AK: Ontem foi um evento em que eles votaram sobre todas as formas de manter o mundo com objetivos sustentáveis pelos próximos 20 anos. Nós falamos sobre pobreza, fome, desigualdade de gênero, sustentabilidade, direitos humanos, energia sustentável… Tudo o que precisamos. E, se nós não fizermos algo para mudar o cenário atual, perderemos tudo. Os líderes que estavam lá entendem que o mundo como nós conhecemos está à beira de um colapso. O capitalismo vai ruir se ninguém consumir. Nós só temos um ecossistema, se ele desaparecer, não haverá eu ou você. E isso não é uma questão de cor e nem eu dizer o que precisa ser feito. É uma realidade, que precisa ser aceita e mudada.
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