Dona Vilani, mãe de Kleber Cavalcante Gomes, ainda faxineira, escutava muito Agnaldo Rayol, Raul Seixas, Elis Regina e Clara Nunes. E foi essa a educação musical de seu filho, hoje aos 40 anos. O nome dele é que mudou, o Brasil – e parte do mundo – o conheceram como Criolo Doido. Dona Vilani também passou por transformações – hoje é professora autodidata. Mas tem coisas que não mudam. O Seu Cleon Gomes, metalúrgico, pai de Criolo, ainda sofre preconceito por causa do sotaque nordestino. Dia desses aliás, acharam que ele roubaria um produto em um supermercado porque ele é…negro. A família foi tentar a vida em São Paulo e começou a história morando de favor em um porão. Hoje, a cena é outra. Criolo, que subiu pela primeira vez num palco aos 12 anos, agora faz turnê pela Europa, coleciona álbuns e recentemente deu nova vida ao seu primeiro sucesso, o “Ainda há tempo”. O motivo? “O desejo era de fazer algo para celebrar os 10 anos desse disco. Quando ele foi lançado, não tínhamos como fazer nada: foram feitas 500 cópias, depois mais 500 cópias, e só isso”. HT conversou com o cara que criou a rinha dos MC’s – uma espécie de duelo de repentistas e trovadores do século XXI -, com o cara apontado por Caetano Veloso e Milton Nascimento como o grande novo nome da Música Popular Brasileira, e com o cara que usa o suas rimas para, ao seu modo, buscando uma linearidade poética – sem querer – no discurso, narrar sua história e de outros tantos. Vá em frente. Ouvir Criolo sempre vale a pena.
HT: Você subiu em um palco pela primeira vez aos 12 anos e hoje tem 40. Fazendo uma auto análise, o que mudou de lá para cá?
Criolo: A emoção é sempre a mesma. Estou sempre me descobrindo, redescobrindo, descobrindo o outro. Quando estou no palco, sou tomado por uma emoção que não é racional. Mas mudei no sentido de, depois de tantos palcos, tantas histórias, tantos ensinamentos, fui aglutinando isso e levando para a vida.
HT: A impressão que eu tenho é que, quando você está no palco, é outra pessoa, parece tomado por algo…
Criolo: Eu sou a mesma, mas tomado de muita gratidão pela oportunidade de cantar. Isso é para mim é muito importante.
HT: Em “Ainda há tempo” você canta que “as pessoas se olham e não se falam, se esbarram na rua e se maltratam, usam a desculpa de que nem Cristo agradou”. Nossa sociedade deu errado, então, né?
Criolo: Mas eu também canto, na sequência, o verso: “As pessoas não são más, elas só estão perdidas. Ainda há tempo”.
HT: Mas aí não é um positivismo exagerado? Que tempo é esse?
Criolo: Talvez seja um exagero você, de alguma forma, ter contato com o mundo real que o cerca e, mesmo assim, fechar os olhos para ele.
HT: E você quer abrir esses olhos?
Criolo: Eu tento. São muitas vendas que são oferecidas para nós.
HT: Eu quero saber qual venda ainda há tempo, na sua opinião, como você canta, de tirar?
Criolo: Olha, eu tive passagens na minha infância e na minha adolescência que ainda se repetem. Por exemplo: tiram sarro dos meus pais por causa do sotaque nordestino. Mês passado meu pai foi ao mercado e uma pessoa meio que ficou achando que ele iria roubar um produto porque ele é um homem negro. As lutas por melhorias nos extremos, nas bordas das grandes metrópoles continuam sendo as mesmas. São tantas vertentes que ainda podem e têm potencial para serem mudadas…
HT: Quando você vê então que seu pai ainda é julgado pela forma como a voz dele sai e pela cor da pele, o que você sente, o que se passa aí dentro ?
(Criolo faz uma pausa).
Criolo: Eu acho que a gente tem que ter um tanto de força interior, de compreender que é possível o crescimento de todo mundo junto, que é possível apresentar uma outra forma de se enxergar o que está ao nosso redor. Uma forma mais solidária e real de encontro com as pessoas.
HT: Você acabou de falar de “crescer junto” e lembrei que você foi arte-educador, né. A gente sabe que a educação do país é cheia de problemas. Mas uma coisa é saber e outra completamente diferente são vivê-los. O que você viu naquele período?
Criolo: Olha, onde tiver desigualdades vão existir problemas gritantes. É o caso do mundo. Eu sou esse garoto que viu a importância de ter uma oficina cultural no bairro, que precisou muito de ações. Mas tem coisas que eu não consegui entender enquanto criança e não consigo entender até hoje: como é que a nossa escola, que o professor que a gente ama, como todas as pessoas ligadas àquele ambiente escolar são tão desvalorizadas? Uma pessoa que faz a sua comida, a comida para o seu filho no horário do lanche, como que aquele professor e aquela coordenadora pedagógica são tão ridicularizados, menosprezados? Eu não entendo. Não dá.
HT: Eu sei que tentar achar culpados dessa cadeira aí parece pedante e confortável, mas por que então continuamos nessa situação, já que o problema é tão antigo?
Criolo: Essa pergunta se junta à minha. A culpa é de quem tem o poder nas mãos e a chance de fazer uma mudança real, mas não faz.
HT: São várias as pessoas que têm esse poder nas mãos…
Criolo: Na realidade, não. São algumas e tem os que vão atrás porque não são bobos.
HT: Já que o assunto caminho para esse verve, afinal de contas, dentro dessa polaridade política, de qual lado você está?
Criolo: O que eu posso te falar é que eu sou filho de nordestinos que fugiram da seca para tentar dias melhores em São Paulo. Meu pai foi metalúrgico a vida toda e minha mãe foi faxineira, depois professora. Nós crescemos em um ambiente de luta para não nos deixar sermos engolidos por todo o ódio e rancor que se cria quando se larga o ambiente a sua própria sorte. Aos 11 anos eu vi um amigo fazer uma rima e achei aquilo maravilhoso. Aos 12 eu escutei uma música chamada rap, que descrevia tudo que acontecia no meu bairro. Eu passei a me sentir emocionado ao ponto de escrever um texto para falar das desigualdades e de como somos capazes de vencê-las. Temos sim, condição, de criar um ambiente melhor. Todo brasileiro, quando tem percepção de sua realidade e de como ele é tratado com dignidade e respeito, todo brasileiro, quando ele se percebe nesse processo, e continua levando uma vida de dignidade, acha que essa manifestação é diária. Muito se fala, mas é muito duro crescer num ambiente onde o mundo inteiro diz que nada é para você. Quando somos pequenos, crianças, tiram sarro da gente dizendo que vamos morrer de subnutrição. Depois, você sai da infância e falam que você vai morrer de violência urbana. Mas aí a gente vai, termina o ginásio,quer ir para o colégio. Aí a gente ousa também ir para uma universidade. E aí eles vão sucateando o professor. Como o ambiente de auto extermínio não foi eficaz, eles vão tentando nos destruir de outra forma. Não é só de corpo. Você tem alma, pensamento, sonho. Existem mil possibilidades na cabeça de um homem. Ao mesmo tempo em que você cresce em um ambiente hostil que lhe é oferecido, dentro desse ambiente existem tantos pontos de luz de cada Dona Maria, de cada cidadão brasileiro que quer justamente o contrário: que quer te dar bom exemplo, estender a mão, te incentivar.
HT: Nesse final você não fala na primeira pessoa. Estamos falando da sua história também?
Criolo: Minha primeira casa foi um porão, de favor. Eu e minha família choramos de felicidade quando tivemos um barraco no Jardim das Embuias. Nós passamos por alguns problemas. Mas o que a gente teve de amor, de solidariedade, de bons exemplos de cara morador do nosso bairro, do bom professor que me apoiou, que disse que sim, iríamos crescer na vida…E tem aquilo de perguntar para a criança o que ela vai ser quando crescer. Você também está dizendo para ela, que ela não é nada. Cada um desses equívocos tem um porquê.
HT: E você usa o rap, então, para ligar essa sirene, colocar dedo nessa ferida, falar desses tais equívocos…
Criolo: De modo muito natural, assim como todas as expressões de arte, o rap te permite entrar em contato com algumas energias que até então você não acreditava que tinha. E como é bom se sentir alguém, vivo, parte de algo. Isso por si só já é uma grande revolução. A partir daí muitas construções podem nascer. No rap não é diferente. Mas, tanto o rap, quanto a fotografia, quando o cinema, quanto a escultura, ela vai ter um tanto da energia que você carrega. Então, é como se você pegasse um metal bruto na terra e, nele, você pode fazer um instrumento que ajude um cirurgião a salvar tantas vidas. Mas você também pode fazer uma arma de fogo, não pode? Essa coisa bruta que te visita, que te emociona, e que se chama de arte em todas as suas vertentes, vai ter um pouco do que você carrega. Se é de você falar determinadas coisas porque seu coração pede, isso vai acontecer de modo natural.
HT: O que você ainda quer muito fazer na sua vida?
Criolo: Eu quero muito cuidar dos meus pais. Meu pai completou 66 anos agora e minha mãe vai fazer mês que vem. Quero ter a felicidade de estar muito perto deles todos os dias que eu puder da minha vida. Dar amor, carinho, agradecer por tudo o que fizeram por mim e meus irmãos.
HT: O que eles pensam do menino que viveu de favor num porão e hoje faz turnê pela Europa?
Criolo: Minha mãe fala: ‘Meu filho, nós somos tão pequenos que precisamos de um palco para sermos vistos, né?’.
HT: E por que tirou o “Doido” do nome artístico?
Criolo: Porque, pegando como referência tudo o que minha mãe passou e viveu, de luta, por arte e cultura no meu bairro, eu não fiz nada para receber esse elogio.
HT: Você compõe e canta, então deveria ser ressarcido por ambas atividades. Mas sabemos que os valores repassados são bem inferiores aos que deveriam ser. Há até um grupo, o Procure Saber, que encabeça essa luta por direitos autorias e de reprodução. Qual sua posição sobre esse tema?
Criolo: Quando eu vi que existiam outras coisas ao redor da música, isso tudo foi muito louco. Venho de uma arte tão linda chamada rap, que é nossa vontade de adolescente era dividir nossas ideias com as pessoas. Venho de um lance em que não tinha essa preocupação com o mercado, o que dirá sobreviver disso. Faço meu som, jogo na rede, participo das coisas que acho interessante. E assim vou levando na vida. Acho que tudo é importante, é uma questão importante. Mas estou te falando de um antes. Para mim, é muito louco porque eu tenho 40 anos e com 34 eu ainda dependia da solidariedade dos meus pais para ter um quartinho para dormir, algo para comer e um banho. É tudo muito louco. Vivi seis, cinco anos muito intensos. Ao mesmo tempo é tudo muito novo.
HT: Nesses cinco anos intensos, você virou celebridade, tem voz ativa, muitos seguidores nas redes sociais. Como é para o menino do Grajaú ter virado um produto da indústria?
Criolo: Eu sou aquilo que seu olho enxerga de mim. Você me torna um tanto daquilo que acredita que eu seja. As pessoas têm que ter essa liberdade de fazerem a construção que tiverem vontade de fazer. Eu estava conversando com o Rael e lembramos de um dia em que ele estava muito doente, com pneumonia. Fui na casa dele, e falei que a gente ia passar por aquilo. Foi uma semana que eu compus várias músicas, inclusive o “Ainda há tempo”. Lembro que falei que ele tinha muita luz própria, muito talento e que era para ficar tranquilo. E agora vamos cantar no mesmo evento pela primeira vez (a entrevista foi realizada antes de uma das edições do Conexão Sampa-VV). É isso que a gente leva. É isso, nessa história toda de música, de carreira, de fama, que a gente leva. Apenas.
HT: Utilizando do título do seu próprio álbum: quando você tem que convocar seu próprio Buda?
Criolo: O ambiente em que eu cresci é rodeado de amor, mas essa nossa sociedade equivocada nos testa todos os dias. Então esse Buda de paz e equilíbrio tem que se fazer presente diariamente.
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