“Quatro polícias na viatura, na madruga, resolvem invadir uma favela, na fissura. Não pensaram no pior. (…) Já chegaram prontos para atirar”. A frase que você acabou de ler poderia ter sido extraída de algum jornal da última semana. Mas não. São os versos que abrem “Incursão policial”, a primeira faixa do EP “Contemporâneo”, o novo lançamento do rapper MV Bill que, após 20 anos de carreira como um dos principais representantes do rap nacional, não se cansa de lutar contra as injustiçar sociais usando suas rimas como forma de protesto e denúncia. E é esse um dos principais tópicos da longa conversa que HT teve com Alex Pereira Barbosa, o poeta da Cidade de Deus.
“Na época, eu fiz pensando no garoto de 10 anos que morreu no Complexo do Alemão. Ele serviu de inspiração para a vítima (da música), que desencadeia toda a confusão. Enquanto eu estava terminando a faixa, isso (o assassinato de inocentes) foi acontecendo de várias formas, com jovens que estavam carregando skate, macaco para trocar pneu e ate guarda-chuva. Todos os casos foram parecidos, por terem gerado uma revolta tanto popular quanto da comunidade, e não só em questão de passeatas. Isso se reverte em mais violência, então coloquei aquela senhora e aquela criança mortas no ônibus como consequências. Quis botar, dentro dessa música, para mostrar que protestar com violência não é benéfico para ninguém”, comenta MV Bill sobre a faixa citada acima.
O garoto de 10 anos ao qual ele se refere é Eduardo de Jesus Ferreira, uma criança de 10 anos que foi assassinada no Complexo do Alemão em abril deste ano, quando uma incursão policial na comunidade, que terminou “matando um inocente e protagonizando o caos”, como continuam os versos de MV Bill. O caos, no caso, foi uma revolta popular que rodou as redes sociais após um vídeo do ocorrido ter viralizado. Mas isso foi há oito meses e, hoje, no cotidiano caótico da urbe-maravilha, Eduardo já virou história para muitos, enquanto o novo crime a chocar a população aconteceu no último domingo, pela mira da mesma instituição.
Roberto de Souza Penha (16), Carlos Eduardo da Silva de Souza (16), Cleiton Correa de Souza (18), Wilton Esteves Domingos Junior (20) e Wesley Castro Rodrigues (25). São esses os cinco jovens que, na madrugada do último sábado, tiveram suas vidas interrompidas por 111 tiros disparados pela polícia. Na ocasião, eles estavam comemorando o primeiro salário de Roberto como Jovem Aprendiz.
“Foram 100 tiros, cara! Nunca vi isso na minha vida! Não faz sentido! Eu olho para os jovens que foram mortos, e eles são parecidos com os filhos do meu sobrinho, do meu produtor, do meu amigo, que não são bandidos. Aquele é o perfil do jovem da favela! Ninguém posta hashtag ‘somos todos alvos’, ninguém muda o avatar, e nem a porra do hip hop tem a capacidade de se indignar! São poucos os que usam a música para mostrar a sua indignação. E é triste você ver aquilo que foi uma ferramenta de luta ignorar esse tipo de ação”, comenta MV Bill. Aqui, a voz do rapper perde o tom calmo que manteve durante toda a entrevista e assume o desespero, o mesmo sentimento que ronda a vida de milhares dos habitantes da periferia.
O papo com MV Bill agora segue pelos novos caminhos do hip hop, um gênero historicamente conhecido por denunciar mazelas sociais e que, nos últimos anos, tem se tornado um dos principais produtos da máquina capitalista, gerando uma parcela de artistas genéricos que se apropriam dessa herança e apelo culturais para se lançarem no mercado. “Não tenho nada contra quem fala de outros temas, mas o rap já foi utilizado como muitas ferramentas. É aquilo que já aconteceu nos Estados Unidos: o hip hop foi consumido pela máquina pop. Por aqui, ele ainda continua underground, com uma cena mais latente, mesmo entrando no mainstream. Mesmo que a nossa caminhada tenha sido de denúncia, hoje temos diversidade de rap, que pode falar do cara que tem a melhor maconha do mundo, da festa, do gelo no uísque… Então são poucos os grupos que ainda falam dessa temática (social). Eu tenho um programa na rádio e outro na TV, e ambos são especializados em rap nacional, nos quais eu toco de tudo. Mas, para uma edição especial, eu quis usar músicas que abordassem o racismo e tive que usar faixas basicamente antigas. É muito complicado achar esse assunto nos raps atuais”, analisa o artista.
Mas na discografia de MV Bill, desde o início com “Soldado do morro”, lançada em 1999, a temática social não deixa de protagonizar seus versos. Por mais que incomode, ele não se intimida nem por críticas e nem pelo mercado, e sempre retrata um cotidiano que, na maioria dos casos, é ignorado pela mídia e pela população. Temas complexos, como a incursão policial, a forma como as crianças nas favelas são empurradas para o tráfico e por aí vai. Mas colocar o dedo na ferida teve um preço: em seus dois últimos trabalhos, o rapper se lançou como artista independente, sem o apoio de gravadoras, como estava acostumado em seus discos anteriores.
“Eu assumi uma nova forma de trabalhar. Cheguei a recusar o convite de uma gravadora, que até queria ajudar a projetar mais o meu trabalho, mas também queria mexer na minha forma de agir e na minha temática, dizendo qual música eu iria divulgar mais ou não. Eu não estou acostumado com isso, porque não faço música para tocar na rádio. Faço o que tenho vontade. Foi assim que fiz o EP anterior, ‘Vitória pra quem acordou agora e vida longa pra quem nunca dormiu’ (2014), mas já o lancei pensando no que viria à frente”, explica, frisando que sua liberdade criativa é o que move sua carreira.
Mas a forma de trabalho independente é, para MV Bill, mais uma forma de afirmar seu posicionamento em relação à sociedade, ao mercado fonográfico e à máquina capitalista. Aos 41 anos, ele já não vê necessidade de se expor na mídia tradicional e usa a internet como um de seus principais amplificadores. “Recuso muitos convites para participar em programas de TV, porque não vão me acrescentar nada. Alguém quer escolher a música que eu vou tocar ali, então prefiro seguir de forma independente, principalmente se a gente tem um pouco mais de pedra para quebrar”, conta, talvez fazendo referência ao episódio em que participou de um programa de auditório e, ao apresentar a música “Só Deus pode me julgar”, criticou a própria emissora, para o desespero do apresentador, que ficou aturdido e tentando censurar sem sucesso os versos do rapper.
“Mesmo com uma estrutura menor, a liberdade para fazer a sua arte não tem preço. E a TV aberta está muito careta, na minha opinião. Poucos programas têm ousadia de debater assuntos espinhosos, mais profundos. E musicalmente também está muito limitado. Só temos três ritmos: o funk carioca, o pagode e o sertanejo. Desses três, não temos a raiz do movimento, quem tem algo a dizer, frequentando a televisão. É só o que tem de fuleiro em todos”, critica, dando voz a um pensamento coletivo que invade as redes sociais quase diariamente. “A gente tem essa negativa de mão dupla com TV e rádio, mas, por outro lado, temos uma galera que está interessada e não é bitolada no que é imposto. E, também, foi-se o tempo que a rádio determinava o que fazia sucesso”, analisa, citando a parceria com o Spotify como uma grande ajuda na divulgação de suas músicas. “Antes, as pessoas nem sabiam que eu tinha lançado algo novo!”.
Mas nem tudo são flores no vasto campo da internet. Para MV Bill, ao mesmo tempo que a rede pode trazer benefícios como o fácil acesso à informação, ela também facilita a anonimidade de quem quer se esconder por pseudônimos para praticar atos de violência verbal, seja através de ataques racistas, machistas, homofóbicos ou o que seja. Inevitavelmente, o papo chega aos recentes casos de Taís Araújo e Maju Coutinho. “Acho que, na internet, tem dos dois tipos: quem se manifesta positivamente para combater; e os reacionários, escondidos atrás de um perfil e que se encorajam para falar besteiras. No caso das meninas que são famosas, até quem quer se manifestar parece que tem um motivo a mais porque está entrando meio que numa campanha ‘de embalo’. Já falar de cinco jovens pretos, pobres e anônimos da periferia é mais difícil, a pessoa tem que sentir aquilo de verdade. No caso de alguns artistas pretos (e aqui eu incluo os jogadores de futebol e todos os outros), quando sofrem o racismo na rede social, talvez seja o momento de percebermos que eles são pretos. Às vezes eles mesmos esquecem e é preciso sofrer um pouco de injúria para lembrarem disso”, opina.
Apesar de “Contemporâneo” ter poucas semanas de lançamento, MV Bill já está trabalhando no próximo EP com quatro músicas inéditas, que deve ser lançado em julho do próximo ano, logo após a quarta parte de “Estilo Vagabundo”, música que retrata uma briga de casal e é uma das preferidas de seus fãs, que pediram por uma continuação. “Essa sai em fevereiro. Eu estou em um momento de composição solitária. Tenho recebido muitos convites de outros MCs que estão despertando para a realidade do Rio. Agradeço a todos, mas componho muito sozinho. Também não vou lançar música para o resto da vida. Talvez essas sejam minhas últimas gravações, então estou tentando colocar todo o meu sentimento humano nisso, que hoje está muito aflorado em relação à política social, partidária e de engajamento”, explica o rapper, que ainda toca um programa de rádio, “A voz das periferias”, apresenta o “Hip Hop Brazil”, no canal Music Box Brazil, toca seu projeto social com a Central Única das Favelas (CUFA) e ainda pretende escrever um novo livro.
Nossa conversa vai chegando ao fim e, ao ser questionado sobre qual o segredo para se manter tão relevante por mais de duas décadas, MV Bill para, reflete e responde: “Meu grande desafio foi fazer mais do mesmo, mas de forma diferente.Nunca parei, nunca tirei férias. Não ter um hiato na minha carreira fez com que eu continuasse me comunicando com as diferentes gerações. Hoje, uma das maiores satisfações que eu tenho é receber no camarim um cara da minha idade e outro de vinte anos, que começou a me ouvir porque o irmão mais velho ou pai mostraram a minha música”, explica satisfeito, repetindo o orgulho que já havia demonstrado antes. E, como se estivesse começando agora, completa com humildade: “Acho que o que está sempre junto comigo é a inquietação. Não me sentir confortável demais, em um lugar onde as pessoas me aplaudem”. E o público brasileiro só tem a agradecer pelo rapper manter esse fogo aceso.
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