* Por João Ker
O inconsciente coletivo é algo no mínimo curioso. No mesmo dia em que os estúdios da Walt Disney liberam o primeiro trailer do já tão aguardado remake em live action de dirigido por Kenneth Brannagh, Jay Vaquer estreia seu musical levemente inspirado no conto de “Rhodopis” – antigo relato egípcio que originou o conto de fadas da princesa. Nele, o músico que começou como um fenômeno da MTV no início dos anos 2000, aparece como roteirista, diretor, idealizador e compositor de todas as músicas apresentadas, naquela vibe meio Woody Allen, de quem curte fazer de tudo. Após uma apresentação durante a Festa Internacional de Teatro de Angra – FITA, o espetáculo teve um pré-début no palco da Fundição Progresso durante a noite desta quarta-feira (19/11) – a primeira produção teatral a tomar conta do espaço – antes de começar oficialmente a sua temporada em janeiro de 2015, ainda sem lugar determinado.
Falar que o roteiro é levemente inspirado em “Rhodopis” – ou “Cinderela” – significa ressaltar que os arquétipos dos personagens clássicos existem. Mas, com a pitada rock ‘n roll de Jay, que já começa no figurino repleto de preto, couro, tachas e maquiagem pesada, viajando no clima dark até no cenário, o conto toma uma forma bem mais depravada e crítica do que a fábula habitual – ou pelo menos a versão imortalizada pela Disney. Repleta de palavrões pesados que aparecem a cada duas ou três falas – isso não é um exagero -, as personagens clássicas surgem reinventadas como maníacas sexuais, cães filosóficos (como é o caso de Paulinho Serra), príncipes afeminados, princesas revoltadas e madrastas sadomasoquistas. Tudo isso acompanhado por uma metralhadora repleta de mágoas que sai atirando para todos os lados da sociedade, das relações interpessoais e até dos próprios contos de fadas, sempre com um pronto xingamento encaixado aqui e ali. É muito mais chocante do que que qualquer coisa que comparecido numa fairy tale, à exceção talvez da bizarrice contida nas quase macabras histórias escritas pelo francês Charles Perrault. Mas, apesar disso, chocar nem sempre é sinônimo de algo necessariamente proveitoso ou profundo e, a partir de um certo momento, este recurso começa a se tornar um artifício banal dentro do contexto geral e merecia ser revisto pelo autor.
Fotos: Zeca Santos
íntimo do universo teatral, no mínimo, desde quando se formou ainda jovem na Escola Superior de Artes Célia Helena, em São Paulo, Jay Vaquer conta que sempre foi um apaixonado por musicais: “Eu finalmente consegui conciliar o meu tempo e me entregar a esse projeto. Não pretendo largar a carreira de cantor, mas também quero seguir escrevendo mais musicais daqui para a frente”, conta o músico, que sexta e sábado já sobe ao palco do Teatro Rival para se apresentar.
Ao explicar a porção mais substancial da história, que acompanha “C” (Gabriella Di Grecco) e sua jornada pela “busca de um significado”, o diretor e roteirista comenta a psiquê por trás desse viés: “É uma angústia que permeia todos nós, mas uns lidam com isso de forma melhor que outros. Envolve morte, Deus, as injustiças e sacanagens da vida. No que acreditar e não acreditar? E ela, uma pessoa subjugada, foi em busca disso. Eu também passo por esse tipo de questionamento, todos nós somos ‘neurotiquinhos'”, comenta, indo além na explicação psicológica e afirmando que a princesa é delirante.
Apesar de estrear o palco da Fundição com um espetáculo teatral, Jay afirma que o local não é o mais apropriado para esse tipo de espetáculo. “Começando pelas cadeiras de plástico que são um pouco desconfortáveis e o fato de que não existe um design de som específico para a peça. Os microfones também não são os que a gente queria, então estamos fazendo tudo na raça”.
Esse problema técnico no áudio não conseguiu ser salvo nem pelo exímio treinamento vocal oferecido por Jane Duboc, mãe do diretor que já trabalhou com ele em inúmeros projetos. “O ventilador faz um barulho enorme, além da reverberação das paredes de cimento. Vai tudo no desejo mesmo, nós somos loucos!”, brinca a cantora. Ao longo da noite, alguns microfones falharam em meio às músicas, as quais são essenciais para o entendimento da trama, pegando os atores de surpresa. Mas, o que seria pecado imperdoável na Broadway, é tolerável pela imensa base de fãs de Vaquer, que dispõe de poderosa influência nas mídias sociais.
Fotos: Zeca Santos
É preciso, porém, ressaltar que o elenco comparece preparado para enfrentar esse tipo de adversidade, mantendo com garra o jogo de cintura, como verdadeiros veteranos dos palcos. Também são os atores que dão um brilho extra aos spikes da montagem, com destaque especial para Bukassa Kabengele na pele do conselheiro real e Raquel Keller como a diabólica madrasta. Enquanto o primeiro impressiona pelo tempo cômico e os passos de dança espalhafatosos, a atriz oferece performance atormentadora, vibrando de energia a cada frase de deboche ou indagação que pronuncia. Gabriella Di Grecco, que consegue se alternar entre a doçura e a revolta, revela sua identificação com o personagem Jeremias, o cão vivido por Paulinho Serra que serve como um porta-voz da psiquê de “C” (Cinderella): “Ele fala aquelas verdades que as pessoas não estão preparadas para ouvir, mas, ao mesmo tempo, todo mundo sabe que é fato”, explica. A maioria dessas afirmações, por sinal, é distribuída enquanto o cão se atraca com a madrasta, resultado de um mútuo ódio entre as figuras e uma equivalência de ótimas performances entre os intérpretes.
No mais, por mais que a trilha sonora se apresente difícil para alguns atores (que escorregam nas notas aqui e ali), é impossível não perceber as características de Jay Vaquer na composição, carregada de guitarras, alguns gritos agudos e uma letra dramática. E é dessa forma que o cantor consegue mascarar, entre palavrões e melodias, forte ataque às normas, costumes e absurdos dos tempos atuais, como convém a um verdadeiro rock star. “Todas as palavras que estão ali não são por acaso. O Jay tem muito disso isso, né? Do mesmo modo que ele compõe uma música, o roteiro também tem esse cuidado com os diálogos. O que mais me encanta nessa peça é a vontade de dizer algo: você não senta, é entretido e vai embora”, observa Gabriella.
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