Em tarde de sol mais ameno na Cidade do Rock, o Palco Sunset teve mais um dia de temperaturas altas e animação em nível máximo no Rock in Rio. Ontem, apesar de a cidade ter vivido um dia triste e violento por causa dos conflitos na comunidade da Rocinha, a música foi a válvula de escape para aqueles cariocas mais preocupados. Inclusive em cima do palco. No line-up, o vocalista da banda Sinara, Luthuli Ayodele, morador da Rocinha, e Elba Ramalho, que se apresentou no Grande Encontro ao lado de Geraldo Azevedo e Alceu Valença e é moradora de São Conrado, comentaram a preocupação com a situação da cidade. Mas, se o clima também foi um pouco mais delicado por causa dos riscos que cercam a cidade do Rio de Janeiro, a euforia também tomou conta na energia que contagia a Cidade do Rock. Além da banda Sinara, que recebeu Matheus Aleluia como convidado, e do encontro de três grandes potencias da nossa música brasileira, o Palco Sunset ainda teve o enérgico show do Baiana System com a angolana Titica e a esperada mistura de Ney Matogrosso e Nação Zumbi.
Ney Matogrosso e Nação Zumbi
E é por esse show que vamos começar. Uma das maiores expectativas para o conceito de encontros do Palco Sunset, Ney Matogrosso entoou seus clássicos ao lado do Nação Zumbi ontem à noite. Na apresentação que fechou os trabalhos por lá, o repertório foi costurado por diversos hinos consagrados dos dois lados do palco – com pitadas de Secos & Molhados – , como “Sangue Latino”, “Rosa Hiroshima”, “Maracatu Atômico” e “Quando a Maré Encher”.
Aguardado por boa parte do público, o encontro do Palco Sunset também reuniu diversos artistas na frente do palco. Com Ney Matogrosso e Nação Zumbi protagonizando uma das raras misturas do festival, ninguém quis saber de camarote ou Área VIP e correram para assistir a essa combinação bem perto do público do festival. Por lá, flagramos Ingrid Guimarães, Lúcio Mauro Filho, Viviane Pasmanter, Serjão Loroza, Bárbara Paz e Alexandre Nero.
No engajamento, os artistas falaram a mesma língua. Em mais um show que não negou a verve política nesta edição do Rock in Rio, o tradicional “Fora Temer”, que já virou parte do repertório do festival, foi ouvido pela massa antes da música “Tem Gente Com Fome”.
Grande Encontro
Juntos, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo e Alceu Valença reforçaram a potência da música brasileira e a riqueza de todo o nosso Nordeste tupiniquim. No Grande Encontro, como ficou conhecida essa combinação dos três artistas – que na primeira formação, há 20 anos, ainda tinha Zé Ramalho –, a ideia é fazer uma ode à música de nossa raiz. E, claro, deu super certo. Com clássicos como “Anunciação” no repertório, que ganhou coro empolgado do público do Rock in Rio, Elba, Geraldo e Alceu fizeram um lindo show que foi colorido por dezenas de bandeiras do estado de Pernambuco pelos quatro cantos da Cidade do Rock. “É um fenômeno. A gente ainda fica surpreendido em ver como depois de 20 anos as pessoas curtem. Hoje a gente percebe que os pais que não nos assistiram no passado estão aproveitando a oportunidade e ainda trazendo os filhos”, contou animada Elba Ramalho.
E neste encontro 20 anos depois da primeira formação, a sonoridade também sofreu mudança. Se Zé Ramalho foi uma peça que ficou de fora dessa nova mistura, os instrumentos conquistaram espaço e formaram uma super banda para acompanhar a potente trinca no Palco Sunset. “A gente não seguiu a fórmula do primeiro Grande Encontro porque desta vez não temos Zé Ramalho. Outra diferença é que na primeira oportunidade fizemos tudo acústico e, agora, temos uma super banda nos acompanhando”, destacou Elba que comentou a força e a importância do Grande Encontro para ela e para a cultura brasileira. “É a história de cada um. Nós temos três artistas que são extremamente emblemáticos e pontuais na música brasileira. Nesse Grande Encontro, a gente une as diferentes histórias e carreiras em um contexto só. E o mais legal é ver que hoje, a gente só sobrevive depois desses 20 anos, porque temos muita verdade”, disse.
Sendo assim, desta vez ao lado de Alceu Valença e Geraldo Azevedo, Elba Ramalho carimbou mais uma edição do Rock in Rio em sua carreira. Presente desde a primeira edição do festival, em 1985, a cantora contou de sua experiência pelos palcos do evento. “Quando eu fiz a primeira vez o Rock in Rio, em 1985, eu quase morri de tremor nas pernas. Na minha frente tinha o James Taylor me perguntando se eu estava nervosa e do meu lado, George Benson. Eu lembro que naquele dia, eles me perguntaram como estava me sentindo para cantar e eu estava, simplesmente, sem ar e sem saliva. Foi assustadoramente tenso”, lembrou aos risos Elba que, hoje, mais de 30 anos depois, confessou que não sente mais tanto medo e tensão do público do festival. “Eu não tenho nem mais tempo para ficar nervosa. Muito menos para achar que não vai dar certo. Então, quando eu subo no palco, minha preocupação é só me divertir”, disse.
O problema ontem foi conseguir subir no palco. Moradora de São Conrado, Elba Ramalho se atrasou para a apresentação no Palco Sunset por causa dos conflitos na comunidade da Rocinha. Sem que isso prejudicasse a programação do Rock in Rio, a cantora lamentou a situação de guerra na cidade. “Eu sou moradora de São Conrado e estou a menos de um quilômetro da Rocinha. É lamentável. A gente olha e vê que isso o que estamos vivendo é a miséria humana e a degradação da nossa raça. As pessoas se manifestam pela ignorância, poder e dinheiro. Por isso, precisamos acordar e saber escolher os nossos representantes”, avaliou Elba que no show não escondeu seu posicionamento e puxou a manifestação contra o atual presidente do Brasil. “O que mais me entristece é o descaso dos políticos. Na televisão, eles só aparecem se promovendo e falando que fizeram isso ou aquilo. Isso dá uma tristeza de ver o quanto estamos à deriva. É como se tivesse um maremoto rolando e os brasileiros sem timoneiro”, completou.
Porém, para piorar, como a cantora disse, este não é o único problema que vem assolando os brasileiros. Além do caos na política nacional e dos conflitos sociais, ainda temos nossas florestas sendo negociadas e os rios poluídos, como destacou Elba sobre as consequências do decreto presidencial que visa liberar uma reserva na Amazônia para a exploração mineral. “Quando a gente mata a fauna e a flora, matamos também o povo que habita nela. Só que a gente tem tantos problemas para se discutir nesse momento, que eu não sei nem por onde começar”, afirmou a cantora que acreditava que em 2017 estaríamos vivendo tempos mais evoluídos. “Eu achei que a humanidade fosse estar esperando essas mudanças como algo iluminado e do despertar da consciência. Porém, eu estou vendo que muitas poucas pessoas alcançaram essa dimensão de sabedoria. E é preciso ter luz para iluminar as trevas”, completou Elba Ramalho.
Baiana System convida Titica
Fenômeno de Salvador que já conquistou o Brasil inteiro e hoje, é uma das bandas mais emblemáticas da nova geração, o Baiana System esquentou – e muito – a Cidade do Rock ontem à tarde. Em uma mistura de sons e ritmos, eles trouxeram o calor engajado do Pelô para uma apresentação que teve como cereja do bolo uma força especial direto da Angola. Musa trans do país africano, Titica foi a responsável por potencializar o clima de festa levantado pelo Baiana System no Palco Sunset. O resultado dessa mistura? Um sucesso que tirou o público do chão. E a cantora angolana também. “A banda é muito conhecida e tem a mente super vasta. Eu aprendi muito com eles e vou levar esse intercâmbio Angola-Brasil para o resto da minha vida. Além de bons na música, o Baiana é maravilhoso e muito humano”, disse.
Desta mistura de kuduro, axé e rap, Titica contou que vai levar muito mais do que lembranças do Rio de Janeiro para a Angola. Convidada por Russo Passopusso e seus companheiros para o show no Rock in Rio, a africana comemorou a oportunidade de trazer sua arte para um país tão potente musicalmente como o Brasil. “Eles acompanhavam o meu trabalho através das minhas músicas e, quando me convidaram para um show no Rock in Rio, achei extremamente benéfico também para mim. Esse é um dos festivais mais importantes do mundo e não deixa de ser um carimbo importante na minha carreira”, revelou Titica que não escondeu a tensão pré-show na Cidade do Rock. “Eu fico sempre com medo e frio na barriga. Mas o brasileiro é um povo muito receptivo e eu amei essa energia que senti do palco. Depois de hoje, eu espero voltar mais vezes e continuar fazendo uma boa música para agradar meus fãs da Angola e, agora, do Brasil”, comemorou.
Mais do que música, Titica também levou uma mensagem cada vez mais consistente para o Palco Sunset. Trans, a musa africana reforçou o discurso que Pabllo Vittar, nossa representante drag brasileira, já havia começado quando foi escolhida por Fergie para se apresentar no Palco Mundo na semana passada. “Eu acho que a gente consegue mostrar que mesmo sendo diferentes, nós conseguimos alegrar as pessoas. A nossa sexualidade não atrapalha a nossa arte. Nós somos seres-humanos que ficamos alegres, tristes, choramos e sentimos dor. Ser trans não é doença e ser diferente não é um absurdo. Quando a gente nasce, não escolhemos os parentes ou nossos destinos. O importante é o amor”, defendeu Titica. E nós assinamos embaixo!
Sinara convida Matheus Aleluia
Axé! Este foi o clima e a mistura gostosa que abriu os trabalhos no Palco Sunset ontem à tarde. Do encontro da jovialidade dos músicos da Sinara com a maestria de Matheus Aleluia, o resultado foi o show leve que contagiou quem chegava para a Cidade do Rock. E esta mensagem de paz que sentimos nesta apresentação foi passada nas entrelinhas das canções, no branco que pintou as roupas dos músicos no palco e no sentimento que transitava entre aqueles que tiveram a responsabilidade de começar o dia de shows no Rock in Rio. “Foi uma realização para a gente em diferentes sentidos. Estar no Palco Sunset do Rock in Rio, que é um espaço que sempre admiramos e acompanhamos, foi uma sensação de sonho realizado. Poder dividir esse momento com um artista como Matheus Aleluia foi ainda mais especial”, disse Francisco Gil.
Aliás, este não é o único representante da família Gil nos integrantes da Sinara. Entre filhos e netos de um dos maiores nomes da cultura brasileira, a banda tem mais dois integrantes ligados a Gilberto Gil: José e João. “A banda é uma família e isso não é só pelo sangue que une parte de nós. Quando o Matheus começou a conviver com a gente, estabelecemos uma relação ainda mais especial. Ele nos ensinou muito. Foram décadas de aprendizado resumidas em alguns dias de ensaio. Então, não tem como descrever. Para nós foi só alegria”, disse Francisco sobre a experiência como atração do maior festival de música do mundo.
No entanto, apesar de o clima ser de festa e realização pessoal e profissional entre os integrantes da Sinara, a preocupação de Luthuli Ayodele era evidente. Morador da Rocinha, o vocalista da banda contou que precisou se desligar de toda a tensão do dia de conflitos na comunidade para se concentrar para o show e a grande oportunidade no Rock in Rio. Mas engana-se quem pensa que esta foi uma tarefa simples. Com toda a família e os amigos presos em suas casas com medo dos tiroteios que foram frequentes ontem na Rocinha, Luthuli se emocionou ao revelar a dor que dividia espaço com a alegria depois do show. “ É muito difícil. A minha família toda mora lá. Agora eu estou em um momento de empolgação pós-show, mas não dá para esquecer. Eu tento abstrair. Só que é algo que está o tempo todo na minha cabeça. Tem um peso muito forte que dói”, disse o vocalista que era alimentado por notícias pelo pai, o único que conseguiu sair da comunidade para assistir ao momento de conquista do músico. “Eu deixei para o palco o que eu tinha para falar e agora, por alguns momentos de alegria, eu quero esquecer dessa realidade e me divertir um pouco. Depois, eu vou ter que encarar todos os problemas, cuidar da minha família e ver como estão todas as pessoas que eu amo”, completou Luthuli Ayodele que, depois disso, pediu para tomar uma água e curtir a boa energia do Baiana System. Força!
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