Aos 77 anos, Martinho da Vila continua com o fôlego todo. Com inúmeras composições já eternizadas no imaginário popular, o artista atualmente se prepara para exercer três de suas facetas ao longo dos próximos meses. Hoje, ele participa da FLUPP – Festa Literária das Periferias, na qual falará sobre ‘carioquice’, assunto que conhece bem. No próximo mês, será homenageado na FLIT- Festa Literária da Serra, em Bom Jardim. E, nos próximos meses, prepara-se para o Carnaval 2016, onde concorrerá ao título mais uma vez ao lado do G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel, para a qual ajudou a compor o samba-enredo. Em entrevista exclusiva ao Site HT, o mestre comenta sobre todos esses projetos e a vontade de continuar criando, como você lê abaixo.
“A carioquice é esse jeito nosso de fazer as coisas, de não conhecer as pessoas e sair falando com elas. É uma palavra que ainda não está muito definida, nem no dicionário. É uma paixão, uma atitude que alguém, de outro lugar, toma e tem um jeito carioca”, explica Martinho sobre o tema que pretende apresentar no evento, mas ainda não ensaiou, porque não gosta de “fazer palestra lendo tudo direitinho”. O artista vê a FLUPP como um evento importante, como de fato o é.
O propósito da Festa Literária é, além de levar debates e conversas sobre arte para o Complexo da Babilônia, no Morro do Chapéu Mangueira, também lançar uma reflexão sobre a ideia de “Cidade Partida”, o conceito que divide o Rio de Janeiro entre ‘morro’ e ‘asfalto’. Durante o papo, Martinho estará acompanhado do escritor Fausto Fawcett, e comenta que “toda conversa nesse sentido é importante”. “O Rio carregou, por muito tempo, o conceito de duas cidades: a cidade alta, com suas leis, suas normas e sem interferência do poder; e a cidade dita como baixa. Até me lembro que antigamente as pessoas falavam que quando você saía do morro, estava indo ‘para a cidade'”, conta o sambista.
Para ele, a importância de unir essas duas esferas de uma mesma capital é “conseguir fazer uma cidade única, e esse processo já está sendo realizado”. E, quanto a quem pensa que o Rio deveria mesmo continuar como Cidade Partida, ele diz: “Essa ideia é muito reacionária. É baseada no apartheid e não cabe mais na nossa realidade atual”.
Em agosto, Martinho da Vila será homenageado por sua obra literária durante a FLIT, de Bom Jardim. Com bastante bom-humor, ele conta entre risos que as pessoas sempre se assustam quando descobrem seu lado escritor, já com sete livros pulicados. “Isso é muito interessante, porque existe um certo preconceito de que ‘o fulano é dessa área, o outro é daquela’. Um ator não pode cantar, um compositor não pode escrever livros, um artista não pode representar… Sempre acontece um lance desse, de alguém se espantar como ‘o Martinho da Vila também é escritor?!'”.
Pois é. Escritor e um dos maiores compositores de samba e MPB do país. Ao lado da Unidos da Vila isabel, onde está desde 1965, Martinho da Vila já compôs inúmeros sambas-enredo para a Escola, e ganhou seu último título em 2010, quando escreveu sobre Noel Rosa e anunciou que não iria mais se envolver nas composições para o Carnaval. Agora, cinco anos depois, ele volta ao consagrado posto, assinando o tema “Memórias de um pai arraia, um sonho pernambucano, um legado brasileiro”, que homenageia o centenário do ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes.
“Ah, a gente sempre fala que não vai fazer mais, mas quando chega próximo da data e o assunto entra em voga, acaba se empolgando e fazendo. O pessoal da Vila Isabel convidou e eu aceitei”, comenta Martinho sobre a volta ao Carnaval. “Não vamos falar de ideologia política, e sim da cultura popular, que foi a área mais atuante dele. Sempre gostamos de fazer enredos que tenham uma mensagem, então acho que esse é um bom tema para a escola, embora tenha que ter muita coragem para falar de política”, declara. “Mas a gente fala assim mesmo”.
Essa vontade de fazer a diferença, seja na quadra de samba, na periferia ou em qualquer outra esfera da cultura popular, parece inerente a Martinho da Vila. Quando é perguntado sobre o atual estado do samba e os novos cantores que vêm de gerações mais jovens, ele não desanima e comenta que “o Brasil é um país de artistas. Precisamos é de novas portas se abrindo, mas temos muita fé”. E, mesmo já tendo dedicado mais de cinco décadas à cultura, não tem nenhuma previsão de parar sua carreira. “Já pensei nisso muitas vezes. Sempre falo que agora já foi, já estou trabalhando há muito tempo, mas sempre me envolvo e acabo ficando”, conclui rindo, sempre de bem com a vida.
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