*por Vítor Antunes
O rock de bom humor que precedeu a crítica ferina e social nos anos 1980. No ano passado, 2023, portanto, completou 40 anos do lançamento de “Cantando no Banheiro“, álbum que seria uma das magnum opus de Eduardo Dussek, 66 anos. Além da sua inteligência, prova que a perspicácia que sempre o acompanhou durante a vida, permanece. Seguem o bom humor, e a joie de vivre, que acabam por se sobrepor ao Mal de Parkinson, do qual o cantor trata há uma década. Agora, em uma das terapias a qual o cantor trata da saúde, descobriu-se pintor. “Descobriu-se” é um modo dizer. Seu pai era gravurista e artista plástico, e ele próprio já havia passado por essa experiência na juventude. “Estudei pintura quando era rapaz. Cheguei a achar que seria arquiteto ou pintor. Estudei muito com meu pai, mas a vida acabou me levando à musica popular”. A última aparição pública de Dussek foi no show de Leo Jaime, no fim do ano passado, em que o cantor celebrou seus 40 anos de carreira – e sobre o qual falou com o Site Heloisa Tolipan.
Sobre a terapia que vem trabalhando para lidar com o Parkinson, Dussek ressalta que “na pandemia eu fazia shows, mas me faltou saúde e começou a degenerar as células, a me dar cansaço. Quando tive o diagnóstico do Parkinson, eu decidi que não iria dialogar com doença. Optei por compreender que ela para mim seria um fator de iluminação. Um dos médicos que me acompanham me trouxe uma informação que me fez diferença que fazer algo que me trouxesse prazer faria regenerar minhas células. Voltei a pintar, desenvolvi meu estilo e isso me faz bem”.
Em 1986, Dussek já destilava críticas duras, ainda que inteligentes – ou, segundo suas próprias falas, “marca do meu estilo categórico” – sobre o mercado musical brasileiro, tanto no que diz respeito aos direitos autorais, como à própria feira das vaidades a qual se revelava a cena musical daquele período. “A MPB virou um concurso de miss“, declarou à Revista Manchete. Ainda hoje mantém algumas opiniões críticas sobre esse assunto, que inclusive valeram um requerimento mais contundente ao ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). “O direito autoral passa por tanta mãos e raízes, que é exaustivo buscar o tempo todo sobre como são feitos os pagamentos. Os critérios mudam muito, e mudam a bel-prazer. Acho que deveria ser algo como o PIS/PASEP (Programa de Integração Social e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, respectivamente) em que se deposita um valor e se recebe através do uso de um cartão bancário”.
Entrei com uma representação pelo ECAD por cerca de R$ 200.000,00 e o que recebi não chegou a um quinto disto, por conta de uma música em abertura de novela. O valor foi pago de maneira errônea, e pedi ao escritório que mostrasse a verdadeira cotação disso e pagasse a diferença, mas… [não deu certo] – Eduardo Dussek
Ainda neste ano, Eduardo será homenageado com um musical solo apresentado pela atriz Bia Sion. O espetáculo terá o nome “Oba!”, e contará com 14 músicas do cantor. O projeto deve estrear em abril e revisitará estilos teatrais pelos quais Dussek transitou pela vida, especialmente o Besteirol, gênero marcante dos anos 1980, e do qual Eduardo esteve no elenco de montagens memoráveis como “Classificados Desclassificados“, de 1984. “Oba!” abordará “os dissabores de um ator, as humilhações, os testes de sofá, as puxadas de tapete e não apenas isso. Mas como os artistas brasileiros negam-se em ser populares”.
Montagem que exercitará a comunicação através da metalinguagem, a personagem que Bia Sion interpretará estará substituindo a própria Bia, que não conseguirá chegar ao teatro. “A tal substituta estudou em Nova York, Paris e não queria fazer uma peça sobre Eduardo Dussek por ser ele um cantor popular, mas ela acaba se rendendo e seu último número musical é um teatro de revista”, explica Márcio Azevedo, o diretor da encenação.
Esse bom humor é o DNA do brasileiro. Por isso a peça chama “Oba!”. Ela visita o Besteirol, mergulha em uma Copacabana escaldante dos anos 1980 e faz saber que nós, brasileiros, somos mais ‘torta na cara’ do que um ‘teatro certinho’ – Márcio Azevedo, diretor
A VIDA É CHEIA DE TANGOS E TRAGÉDIAS
Para falar sobre os diversos tons que a vida se/lhe impõem, Dussek usa desta frase, “A vida é cheia de tangos e tragédias”, que, em 1984, batizou um espetáculo gaúcho apresentado por Nico Nicolaiewski (1957-2014) e Hique Gomez. Um dos exemplos que dá é do que o levou a estrear como ator de novela, em 1996, na extinta TV Manchete, em “Xica da Silva“, dirigido pelo mãos-de-ferro Walter Avancini (1935-2001).
O début em novelas deu-se após o fracasso de um disco lançado em 1991, “Contatos”, e um período mais introspectivo da vida, no início dos anos 90, que, como forma de reinventar-se, adicionou mais uma letra “s” ao sobrenome – que não existe na grafia original. “Fui desafiado àquilo de fazer novela. Tive de compor uma coisa que não sabia fazer, mas fiz. Eu e Avancini ficamos amigos no fim da novela, ainda que ele me tratasse como a um cachorro que precisa ser domado. Brigavamos às 6 da manhã, e brigas homéricas, e, depois, quando nos encontrávamos falávamos italiano entre nós. Ele foi me fazendo um bom ator e me deu uma aula de interpretação. Aprendi a ser ator na marra”. Dussek saía da Gávea, bairro onde morava, e ia até Maricá – uma distância de 66 km, onde a novela era gravada. E, descontraidamente, diz que “ia maquinando formas de como matar o diretor “, diverte-se.
Avancini era tão intenso que agia como um Santo-daime da Arte. Ele me transformou – Eduardo Dussek
Dussek prossegue dizendo que “A Xica fez a Manchete subir muito e parecer bem estruturada, ainda que tivesse dificuldades. Tanto que uma vez eles tiveram um problema para fazer uma marcação de luz num programa musical e eu sugeri que marcassem o chão com uma fita crepe. Não havia uma. Mas, de qualquer maneira, eu gostava da coragem da emissora que fazia tudo com muita vontade e o que ia para o ar tinha uma qualidade exemplar. O Avancini se mostrou um gênio. Ele me pegou nesse laço, queria que entrasse naquele mood do personagem, um vilão mau mesmo. Eu tomava banho de sal grosso depois das cenas e chegava a levar bolsada no supermercado. Uma senhora me chamou de racista uma vez e me ameaçou dizendo saber onde eu morava”, devido ao personagem.
Além deste, outro trabalho que teve sabor agridoce foi “Galvez, o Imperador do Acre“, de 1984. A peça foi um retumbante fracasso. “Vera Setta e o Miguel Falabella resolveram fazer o livro do Márcio de Souza no palco e houve problemas de produção, nada ali dava liga, virou uma colcha de retalhos que não pegou, ainda que as músicas fossem lindas, mas não deu certo e nem todo mundo entendeu. Mas o que houve também foi a glória de o Brasil poder prosseguir fazendo teatro musical, algo que já vinha sendo feito em “As 1001 Encarnações de Pompeu Loredo“‘, de 1980.
Além disso, a turma na qual Dussek estava inserido, e que incluía esse pessoal do Besteirol – Falabella, Karam, Mauro Rasi e companhia – teve fundamental importância para a cena artística brasileira. “O pessoal da Travessa Pepe [rua onde Miguel morava nos anos 1980, em Botafogo], teve uma formação cultural que me modificou, aprendi muito com todos. Eram atores muito bons e, sobretudo, havia neles uma necessidade de colocar o deboche fortemente para se abrir as portas da Censura e um contraponto ao tempo em que só se fazia músicas de protesto. O Besteirol foi uma reação a isso, uma reação de humor, de debochar dos ricos e dos pobres. Era necessário ter um estofo cultural para entender, o Besteirol não era uma bobagem”.
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UM BRECHÓ POP
Dussek é parente de Zsa Zsa Gabor (1917- 2016). A atriz era aparentada à avó do cantor, cuja família é húngara. “Uma parte da família foi para o Canadá e outra para o Brasil e não se davam, não se frequentavam. Meus familiares viam os de Zsa-Zsa como carreiristas à cata de marido rico”. Dussek diz que seus parentes usavam da frase “ela conseguiu vencer em Hollywoood” de uma forma um tanto lacônica.
“Quando acabou a guerra alguns soldados húngaros ficaram presos na Rússia e um dos meus primos, Áron Gabor, foi condenado e escreveu um livro sobre a URSS que o Stalin não gostou, chamado “Ao Leste do Homem“. Quando foi lançado em Nova York, Zsa Zsa apareceu à porta e gritou “Meu Pobre Primo”. Minha avó achou achou um absurdo, dizendo que a atriz queria publicidade – tanto que saiu uma foto dela chorando ao lado de Áron. Por fim, Zsa Zsa acabou provando nosso parentesco”. O nome do meio de Eduardo Dussek é Gabor. Eis aí mais uma História que é a cara do Besteirol!
No ano passado, “Cantando no Banheiro” completou 40 anos. Dussek olha para este álbum de forma equilibrada. “Ele tem uma linguagem universal e foi bem sacado. Levantava-se a hipocrisia da época – do contraste entre os hippies e os yuppies – e nesse ponto eu acho ele legal, mas num todo creio ser datado, tanto por revisitar os anos 1950 como pelo discurso dos anos 1980. Aliás, ele era intencionalmente datado”. Um nome que Eduardo Dussek destaca como fundamental para o sucesso do disco é Léo Jaime. “Leo foi muito importante por saber equilibrar a parte de música popular dele com a minha e a gente caiu de boca no rock’n’roll”.
Marca dos anos 1960 até 1985, ano em que aconteceu pela última vez, os Festivais da Canção são frutos de uma época e não dariam certo hoje, ao ver de Eduardo: “Aquela situação de todo o Brasil torcendo por uma música, um evento, uma coisa em comum, nem a Copa do Mundo tem mais. O descrédito é importante para se acabar uma época e começar outra”. E o artista estende esse olhar para as questões políticas. O sentido de Pátria está jogado fora, subaproveitado. Aquela igualdade como ideal, acabou. Agora é um pega pra capar geral, no qual a gente espera ter o mínimo de dignidade”.
Acho que aquele sentido de turminha, de unir forças para fazer uma música vingar, aparecer, especialmente depois dos períodos eleitorais onde a polarização direita-esquerda parece definir os discursos com violência. Estamos com um quinto do século preenchido e não há uma música que contemple a todo mundo. MPB é tudo. tem coisas boas e ruins, assim como a Internet que projeta coisas boas e muita porcaria que faz sucesso. Hoje vivemos um grande brechó. Sinto falta de mais ousadia – Eduardo Dussek
O artista segue dizendo que “hoje não há critério de qualidade que havia antigamente, mesmo em músicas fora do circuito, um meio saudável. Hoje em dia não há mais. O que o Google classifica com milhões de acessos é tido como um sucesso e não há mais discussão artística. Toda arte tem que ter uma discussão, um propósito, uma vivacidade, uma vitalidade de filosofia de vida”.
Eu curti bastante o período de portas abertas, ainda que eu não seja muito radiofônico. Havia muita mídia sobre mim, mas por culpa minha eu fugia dos holofotes, queria levar uma vida normal, nunca fui porra-louca ainda que tenha sido taxado assim – Eduardo Dussek
Ainda que não seja “muito radifônico”, como diz Dussek, hoje suas canções continuam tocando nas rádios ou são bem acessadas nas plataformas de streaming, especialmente “Aventura” e “Cabelos Negros”. Os que viveram a éoca dos festivais lembram-se dele de fraque e cueca samba-canção na apresentação do MPB-80. Uma delas é Márcio Azevedo, diretor de “Oba!” , que cristalizou o talento de Dussek e que o traz de volta no musical, que terá figurinos de Cláudio Tovar. “Minha arte é cria do Besteirol, do Miguel Falabella, do Vicente Pereira, do Luiz Carlos Góes (1945-2014), do Mauro Rasi. Por todas as razões e mais algumas, precisamos falar sobre e fazer Dussek”.
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