* Por Junior de Paula
Com Ana Cañas é assim: me dá um bolero que eu traço, um clássico da chanson française, eu despedaço, uma música ícone da MPB que eu engulo sem dó nem piedade, uma canção de minha autoria para fazer todo mundo cantar junto, eu também entrego.
Quer que eu toque guitarra? Dá uma aí. Agora um violão? Traz que eu faço bonito. Quer que eu cante com minha alma? Senta e veja. Quer que eu te faça me querer comer no palco? Abre bem os olhos e os ouvidos. Quer que eu te faça achar que sou louca? Santa? Fofa? Vingativa? Faço o que você quiser, mas do jeito que eu quiser.
Foi mais ou menos assim o show de lançamento do DVD Coração Inevitável, dirigido por Ney Matogrosso, que rolou na noite quente de um Teatro Oi Casa Grande gelado, segunda-feira. Na temperatura do ar condicionado, diga-se de passagem, já que na plateia e no palco, o clima esquentou. No melhor dos sentidos.
Desde o momento em que colocou seus pés descalços no palco do teatro, por volta das 22h, até meia-noite, quando ela fez todo mundo ir embora cantando os versos de Esconderijo, um de seus maiores hits, Ana mostrou que ali estava uma artista madura, com vontade de apresentar seu trabalho da forma mais verdadeira possível e com um desejo aparente de deixar de uma vez por todas a imagem de desequilíbrio que ela tinha no início da sua carreira, marcada por algumas loucurinhas etílicas no palco.
Agora, nesta nova fase contratada pela Som Livre, depois de seus primeiros discos terem sido lançados pela Sony, Ana bebe água no palco, recita poemas viscerais com força e sensibilidade, tem domínio vocal perfeito para mostrar que é uma das vozes mais poderosas e ecléticas surgidas na nova MPB. Seus momentos de maluca beleza, desta vez, como quando se descabela e faz suas dancinhas desconexas, servem à sua música, ao seu show, de fato, e não a arroubos emocionais potencializados pela bebida. Uma delícia de se ver.
O repertório é um dos trunfos do show, que, em um set list com mais de 20 músicas, permite a artista mostrar todo o seu potencial. Desde as lindas e pouco reverentes, no bom sentido, versões de clássicos como Retrato em Branco e Preto, Codinome Beija-Flor, Blues da Piedade, La Vie en Rose, Escândalo e No Quiero Tus Besos, até seus hits como Para Você Guardei o Amor e as inéditas Traidor, que Ana dedicou ao seu ex-namorado, e Te Ver Feliz, composta por ela “para dizer coisas simples que eu não tive a oportunidade de dizer para o meu pai antes de falecer em decorrência do alcoolismo”, tudo funciona bem.
Isso sem falar na mais do que competente banda que a acompanha e um figurino que incluía um vestido longo de costas nuas e outro, dramático, com uma cauda que funcionava quase como um tapete vermelho e que revelava seus seios sob a transparência. Dispensáveis, entretanto, as projeções no telão como um casal de patos, uma sucessão de pés, uma lua disforme e Ana nua se contorcendo no chão tapando os seus seios e o sexo, que tentavam, sem sucesso, tirar o foco da presença magnética de uma artista que não tem vergonha de se mostrar inteira, de assumir fragilidades e arriscar.
Ao final, agradeceu a todos e “em especial a Ney Matogrosso, que com sua generosidade e talento estelar me estendeu a mão quando eu mais precisei”, emocionou-se, emocionando a todos. Ney, da plateia, mandou um beijo e um sorriso que refletia a certeza de que sua pupila tinha acabado de fazer um belíssimo trabalho. Opinião, aliás, compartilhada por outros nomes importantes que também estavam por lá, como Maria Gadú, que sabia todas as letras e se contorcia na cadeira em êxtase a cada música, Nelson Motta, acompanhado de sua filha Nina Morena, Jorge Bispo, Nathália Dill e mais uma turma.
* Junior de Paula é jornalista, trabalhou com alguns dos maiores nomes do jornalismo de moda e cultura do Brasil, como Joyce Pascowitch e Erika Palomino, e foi editor da coluna de Heloisa Tolipan, no Jornal do Brasil. Apaixonado por viagens, é dono do site Viajante Aleatório, e, mais recentemente, vem se dedicando à dramaturgia teatral e à literatura.
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