*Por Brunna Condini
‘Vai na fé’, trama do horário das sete da Globo, vem fazendo história. A novela já acumula uma média geral superior à sua antecessora, e em paralelo aos números, vem derrubando estereótipos e exorcizando preconceitos, inclusive no que diz respeito à diversidade de fés. Buscando retratar cada vez mais em sua dramaturgia as transformações sociais, o que inclui também as religiosas, a emissora foi assertiva ao propor uma história que não é sobre religião, mas coloca sua protagonista como uma mulher de fé, de fé evangélica, dentre outras características. Golaço até aqui, já que sair das ‘bolhas sociais’ facilita nossa evolução e movimentar-se para isso é preciso! É com esse intuito, que o pastor e cantor gospel Kleber Lucas emplacou duas músicas na trilha do folhetim – ‘Deus Cuida de Mim’, repaginada por ele e Caetano Veloso, e ‘Quatro Estações’.
“A novela é um espetáculo, porque vê o evangelho como um setor de espaços culturais e o movimento evangélico como uma realidade no Brasil. Acho que a sociedade e a política como um todo têm olhado para os evangélicos com mais empatia. Especialmente dentro do contexto do espaço democrático e do ambiente laico. Fico feliz de perceber que a minha música tem alcançado muitas casas no Brasil”, diz Kleber, que fará show ao lado de Leonardo Gonçalves no Vivo Rio, em 10 de junho. “Quero juntar Deus, arte e gente”. Nesta entrevista, ele fala de fé, dos estigmas, de política e religião e de como a espiritualidade deveria abraçar a diversidade. Refletir junto é enriquecedor. E divino!
Ser evangélico… primeiro é ter uma conexão com o sagrado, com o criador e uma experiência que é legítima e precisa ser respeitada. Em segundo lugar, é saber que essa experiência precisa emanar nas relações. No trato, na justiça, no amor, na partilha e no respeito. O evangelho é para isso – Kleber Lucas
Mas uma grande fatia de grupos evangélicos não apoia a diversidade humana, de gênero, orientação sexual…”Existe uma ala evangélica que cresce muito, que são os evangélicos progressistas no Brasil e estão fazendo releituras a partir do seu tempo, a partir da demanda do seu próprio contexto. Não que não houvesse isso nos dias de Jesus, mas hoje, uma vez que esse debate emerge na sociedade como um todo, é muito bom perceber que existem evangélicos que são a favor da inclusão, do diálogo, do debate, das conversas e dos espaços democráticos e possíveis, até dentro dos seus próprios templos. Muitos pastores e pastoras têm sido – e eu me incluo – importantes nas falas sobre a inclusão, o direito, os espaços, a religião, não apenas como uma construção humana, mas sobretudo a experiência do sujeito. Temos de entender que nenhuma religião que se propõe a dizer o que é a partir do seu único código, é capaz de entender e respeitar a experiência do sujeito”.
E cada sujeito histórico precisa ouvir e ser ouvido, ser incluído, isso também dentro da comunidade LGBTI+. Faço parte de um movimento cristão (Igreja Batista Soul) que acolhe. Hoje, no Brasil e no mundo, existe uma abertura muito grande para esses espaços compartilhados. Como a voz das mulheres, a ordenação das mulheres, os direitos dos trabalhadores, os direitos dos cidadãos – Kleber Lucas
O cantor, um dos maiores nomes da música gospel no país, ganhou destaque recentemente ao apoiar o presidente Lula em sua eleição. Ao tomar posicionamento contrário à ‘maré’ de boa parte dos evangélicos na ocasião, ele declarou que os danos foram grandes. “O Brasil estava totalmente dividido. Essa ideia do bolsonarismo é uma coisa que divide mesas e familiares. Conseguiu estremecer relações históricas, amizades fraternas. No meu caso, perdi amigos que passaram pelo inferno comigo e estiveram do meu lado sempre. No entanto, diante dessa liberdade de expressão política, foram incapazes de manter os laços, porque estavam completamente inebriados por ideias de fundamentalismo religioso”.
E acrescenta: “É lamentável dizer isso e sentir no meu coração, profundamente, que perdi amigos porque estavam tomados por essas ideias fundamentalistas, de centralização religiosa no Brasil, de um governo que dizia valorizar os cristãos, mas foi incapaz de fazer movimento em direção à vacina, que negou a ciência, democracia e incitava o ódio. Um desmando de poder que silenciava diante das atrocidades que vivemos nesses últimos tempos. Me entristece saber que perdi amigos porque o ódio religioso e a hostilidade foram mais fortes no coração deles, do que um mandamento do Senhor que diz: “ame uns aos outros”. Também perdi membros da minha igreja, pessoas queridas que estavam comigo há nove anos”.
E como tem lidado com isso? “É difícil lidar com pessoas que te rejeitam porque você pensa diferente delas. Que não entendem que mais importante que ter um país evangélico, é viver num país justo e democrático para todas e todos. É comida na mesa dos mais pobres, não negar a ciência, respeitar a cultura. Não consigo lidar ainda, faço terapia. Já fazia, mas intensifiquei pra tentar resolver essas questões de ódio que pairam sobre o Brasil. Todo dia tenho de conviver com o ódio de pessoas por minhas escolhas. Votei no Lula pelo seu olhar social. É um tempo de resgate democrático, de esperança. Não votei nele por outra razão, senão por acreditar que tem essa força de resgatar aos brasileiros vulneráveis o lugar dentro do espaço, de dignidade”.
Como você vê o uso político da religião e o uso da política por religiosos? “Bem, você vê um extremo, que tem como exemplo o governo derrotado ano passado. Nele, vemos uma política feita a partir de pautas de ódio, de exclusão de setores sociais como, por exemplo, um espaço LGBTQI+. Não podemos esquecer o seguinte: a política é para todo mundo, inclusive para lideranças religiosas, que têm direito de reivindicar seus direitos e seus projetos. O que não podemos ter é um afã de achar que temos a resposta para o Brasil e que o nosso viés religioso é o que vai dar sentido pra sociedade e para a nação. Mas o fato de lideranças, e chamo atenção para a esquerda no Brasil, de que negar a presença e a relevância da Igreja Evangélica no Brasil é não entender o Brasil. Em uma conversa com Caetano Veloso, ele olha e fala: “Não conhece o Brasil quem não reconhece os pentecostais. Esse espaço precisa ser compartilhado, ter vozes, precisam ser ouvidos, mas tudo isso, dentro de uma régua chamada Estado Democrático de Direito. O contrário disso será uma luta pelo projeto de poder altamente alienante e perigoso para a democracia no Brasil como foi nesses últimos anos”.
Conexão com a espiritualidade
Kleber fala ainda, sobre o conceito do show ‘Religare’. “Queremos nos conectar, nos religar ao que há de mais essencial na nossa vida: com a espiritualidade de cada um, seja ela qual for, através de uma música de convergência que nos aproxima uns dos outros”. Também comenta a importância da apresentação de dois cantores gospel de esquerda, em uma casa de shows pop e badalada. “Em primeiro lugar, esse show representa essa ponte que tem sido construída na direção daqueles que lutam pela democracia. O Vivo Rio é um templo da democracia, sobretudo da arte. É um templo da cultura. Estamos ali, para marcar o nosso espaço e a nossa voz, como daqueles que lutam em pé de igualdade pelos direitos e pelo Estado Democrático de Direito”, diz.
E acrescenta sobre ‘furar a bolha’ do gospel e ampliar visões. “Acredito que toda bolha se propõe a sustentar um único viés de pensamento. Ela não é democrática, a partir do momento em que se fecha para outros olhares. Acredito sim, em um movimento religioso progressista, que é evangélico, protestante no Brasil, que é contra uma política antidemocrática, contra à intolerância religiosa e contra esse fundamentalismo religioso que incita o ódio. Então, se você tem um discurso que se alia a outras vozes de outros setores sociais, que lutam pelo Espaço Democrático de Direito e pela democracia, essa ‘bolha’ precisa furar. A sociedade precisa fazer, inclusive, uma autocrítica. Porque, pela falta de autocrítica, nós quase perdemos a eleição em 2022. Sendo que existem muitos evangélicos que são contra e que na hora de depositarem seus votos nas urnas, agiram a favor da democracia, pela liberdade religiosa, pela liberdade dos espaços, pelo laicismo. Essa ‘bolha’ precisa ser furada, para que possamos nos ver e nos reconhecer em outros setores que não são os nossos”.
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