* Por Carlos Lima Costa
Um novo talento na música brasileira. No final de maio, Brune vai lançar o EP Ametista. Mas o primeiro single, Estrelas de Neón, já está disponível. Com seu tom suave, entoa a canção autoral, uma catarse. Ela utiliza poesia e melodia para retratar um momento ruim e voar rumo ao sucesso com seu trabalho que mescla ritmos como MPB, pop, R&B e soul. “Eu vivi uma relação muito abusiva e falo sobre isso, a partir do momento que saio dela. E que me fez sofrer. A música retrata o momento que saímos da relação e mesmo sabendo que faz mal, ainda queremos aquilo. A gente costuma ter muito esse tipo de sentimento”, explica ela, que assina o roteiro e a direção de arte do clipe.
A artista trans não-binária mostra que o tema permeia outras composições tocando em fases subsequentes da narrativa. “Quando eu estava lá, no meio daquilo, era a Tormenta. Esta é uma música do meio que mostra esclarecimento, que após chover e o céu ficar cinza, ele fica claro. Aí começo a falar sobre descobrir os caminhos da canção em mim. E, então, vem a música Vênus Peregrina (um dueto com o irmão, Matheus Motta), um pagode do amor próprio sobre escolher cantar em vez de me enfiar em relações tóxicas e aí termina com a música homônima ao título do EP”, revela um pouco sobre o repertório do EP que terá mais seis canções.
E não foi a toa que escolheu ‘Ametista’ para batizar o trabalho. “Demorei tanto tempo para ver que eu podia cantar a minha música. Ametista é um cristal de transmutação, é quando a gente transmuta aquela ideia. Eu não acreditava em mim, mas agora, quero acreditar e me coloco sobre isso nessa canção muito linda também”, explica.
A artista de 26 anos fala mais sobre a relação negativa que se transformou em inspiração positiva. “Foi um abuso psicológico, em 2018, começo de 2019. Era uma relação complicada. Não foi no sentido físico, embora eu já tenha sofrido agressão em outro relacionamento quando era mais jovem, perto dos 17 anos, do meu crush, que era músico. Ainda não tinha percebido, mas no meu inconsciente, eu ficava perto das pessoas que faziam música, mas não me colocava nos papos. Ele tinha questões mentais, de vícios, aí eu tentava ajudar, porque me preocupava. Na época, eu era jovem, muito boazinha. Não sei se sou ainda, vou ficando calejada. Foi questão de traição, de não falar a verdade, de alimentar expectativas que não podia cumprir”, diz.
Esse episódio também serviu de força e impulso na vida. “Teve uma questão da música envolvida, de separar bandas e eu estava começando, aí tive que parar, fiquei chateada e decidi que aprenderia tocar violão e fazer tudo sozinha. Me lasquei, treinava cinco horas por dia, para não precisar de ninguém. Aprendi rapidinho e comecei a compor”, lembra.
Antes de lançar o EP, em 25 de maio, ela vai disponibilizar nos streamings, outro single, Medusa (Dar Pé), no dia 7. No final de 2020, a artista já tinha apresentado o single Lua Azul (que não integra o EP), no qual aborda a destruição ambiental. Ela se preocupa com essa questão. “Sim, eu só ando de bicicleta, fiquei sem comer carne e derivados durante seis anos, daí agora voltei, mas consumo consciente. Tento não comprar objetos de plástico, ando com a minha garrafinha sempre, para não comprar nem garrafinha de água. São várias atitudes pequenas, que a gente tenta ter para reduzir o impacto, mesmo que o maior deles venha de empresas”, cita.
Sua inspiração vem desses relacionamentos abusivos e amorosos, da vivência enquanto pessoa não-binária, do processo de autoconhecimento e da melhora de sua autoestima, além da experiência de viagens que fez pelo Uruguai, Argentina e Bolívia ou mesmo por cidades brasileiras. “Escrevo e componho a partir das minhas vivências. Então é importante que as pessoas conheçam quem eu sou. Durante a vida eu quero ir tirando todas as máscaras, todos os pesos para encontrar comigo mesma”, afirma.
“Vou falar a partir da minha perspectiva, porque eu acho que principalmente o lugar de ser não-binária ainda é como se fosse um termo guarda-chuva, que a gente diz assim, abriga outros termos, como gênero fluido. As pessoas não binárias são trans, que não se identificam com o seu gênero de nascimento. Eu, por exemplo, nasci com vagina e não me identifico como mulher. Sou uma pessoa trans não-binária, mas não me identifico com nenhum dos dois gêneros o tempo todo. Às vezes, com um, noutras, com o outro, e, às vezes, com nenhum. Então, pra mim ser não-binária é a oportunidade de me refazer fora dos moldes, e poder fluir entre essas duas pontas, às vezes, estando mais perto do masculino e, em outras vezes, do feminino, às vezes, no meio”, revela.
E prossegue: “Eu tento ressignificar o meu corpo, porque é uma questão muito profunda para mim. Muitas vezes até eu senti que tinha posturas que ocupavam como se fossem de lugares que não eram meus. Por exemplo, eu era uma mulher que viajava sozinha, as pessoas me viam como uma mulher viajando sozinha, mas eu não me via assim. Sofro com a misoginia dentro da sociedade, então, tenho assim esses dois lugares. Sofro com assédios, mas já sofri muito também dentro de relacionamento, mas hoje em dia mais com sair na rua. Eu prefiro sair com roupa larga, porque não gosto de ter alguém olhando pra mim só pelo fato de teoricamente eu ser mulher. Isso sempre foi um incômodo grande, porque parece que cerca a liberdade de existir”, diz.
Este foi, inclusive, um dos assuntos abordados no Erótico Sarau, evento produzido por Brune. “Tem dias que eu performo a masculinidade. Só que aí que a gente usa feminino para mulher. Por que não pode ter um homem feminino? Ou uma pessoa não-binária feminina? Me colocar como pessoa não-binária é justamente questionar esse lugar de que mulher tem que ser feminina. A gente pode ser quem a gente quer. E eu posso inclusive misturar as duas coisas, sabe, pegar o melhor de cada gênero, digamos assim”, observa.
“O masculino, ele é guerreiro, mas claro que existem mulheres guerreiras, assim como homens sensíveis. Então, é sobre desconstruir cada um da sua maneira, mas para tentar ficar mais leve para todo mundo e todos se encontrarem consigo mesmo. Esse é o objetivo final. A alma não tem gênero, nem tem cor. Eu me identifico como bissexual. Eu apenas sinto. E me relaciono com pessoas. Mas vai fazer uns três anos que não tenho uma relação mais profunda. Fiz sexo algumas vezes, mas não tenho uma relacionamento afetivo”, explica.
Sua primeira vez não foi com um homem. “Foi com mulher, eu devia ter uns 16 anos. Com homem também foi por essa idade. São prazeres diferentes, mas sempre senti atração por homens e mulheres”, revela. “Mas demorei a entender as questões. Eu sentia uma angústia por isso. Aí quando li na internet essa discussão sobre o não-binário, percebi que me sentia daquele jeito mesmo. Foi no início da pandemia. Aquilo parece que me abraçou nesse lugar e me fez entender que existiam pessoas que se sentiam como eu. Antes eu me classificava como mulher bissexual. Tive um namorado homem, o resto foi mais fluído mesmo. Mas hoje em dia estou querendo alguém, talvez namorar mesmo, para abraçar no fim do mundo”, diz.
Brune gosta de usar roupa masculina, peças que ganha de amigos ou que pega do irmão. “Saio de homem, mas continuo sendo eu. Tenho esse meu jeitinho que não muda. Amigos meus já me falaram que eu parecia um homem gay, então, tenho um pouco esse jeito meio afetado, mas que eu não acho que é de mulher. E algumas pessoas falam que sou fofa, mas não gosto. Várias pessoas me colocam nesse lugar da meiguice, e eu falo: ‘Tenho dois piercings na cara, olha o que eu estou vestindo.’ Mas aí falando isso eu já sou meiga. É uma dualidade muito louca”, reflete.
Bruna Motta é o nome de batismo de Brune. “Escolhi esse, porque achava que o Bruna atendia só para o feminino. O ‘A’ designa gênero feminino no português e aí eu preferi o Brune, porque já dá essa conotação do gênero neutro. Eu comecei a me chamar e pedi que me chamassem assim há um ano”, justifica. Por isso, ao falar que não acredita que exista roupa de homem ou de mulher, brinquedo de menina e de menino, em algumas palavras ela troca a letra A pela E.
“Para mim existe roupa e brinquedo. E me assumir como ‘não-binárie’ é ter a liberdade para ser quem eu quiser, porque acredito que essas categorias nos limitam e eu posso ser uma infinidade de coisas. Somos seres muito mais complexos do que isso. E aí, nessa mesma linha, sobre ser feminino ou masculino. Eu sou ‘múltiple’. Tem dias que acordo mais de um jeito, tem dias que de outro, e dias que misturo tudo, porque estou nesse caminho de me descobrir, me libertar das amarras sociais. Se sou mulher, não posso fazer isso e aquilo. Se sou homem não posso fazer isso e aquilo. Por isso que sou apenas eu. Quero experimentar, viver, descobrir, sem as normas e as imposições sociais. Sou pessoa não-binária gênero fluído, porque eu fluo entre os dois gêneros”, realça.
Esse jeito já acarretou situações desagradáveis. “A mais forte foi uma vez que tentaram me bater. Eu estava no trânsito, na minha bicicleta, aí passou um cara me xingando, mostrando o dedo do meio e eu sou um pouco esquentada. Poderia ter ficado quieta. Hoje em dia, faço isso, para não arriscar perder minha vida. Naquele dia, ainda não tinha tido esse amadurecimento. Então, quando o cara passou me xingando, eu xinguei também, ele desceu do carro e veio para cima de mim com o discurso de que ia me fazer virar mulher e eu estava de cabelo raspado, máquina zero”, realça. Mas pegou a bicicleta e fugiu na contramão. Tudo aconteceu em frente a uma panificadora. Ela voltou para ver se tinha uma câmera que desse para ver a placa do carro. E eles falaram que viram o que tinha acontecido, mas haviam achado que ele era meu namorado. Ou seja, foram dois preconceitos em um, porque como mulher, ali na visão dos donos da padaria, briga de marido e mulher não se mete a colher. O cara estava vindo violentamente para cima de mim e ninguém fez nada .Pra mim, foi um ato de transfobia, mas tem isso também de Curitiba ser um lugar muito conservador”, recorda.
Brune vai se lançar também como autora, em breve, com o livro Sei Que Nada Disso É Real, Mas Não Suportaria A Verdade, da Editora Urutau, onde aborda questões que uma mulher vive na sociedade. “Porque sendo ou não binária, sou mulher. Eu fico pensando nesse lugar, o que vai vir depois, será que vai sair algo tão bom, como vai ser e se não sair nada?”, questiona.
Outro dia até uma amiga me perguntou o motivo pelo qual eu não gravo um vídeo, no IGTV, falando da questão da não binaridade. Não estou a fim, quero é cantar. Quando a gente canta, faz arte, fala sobre tudo, a gente parte do nosso íntimo para alcançar homens, mulheres. É isso assim, a arte chega para cada pessoa também a partir do seu coração, da sua vivência de mundo”, diz.
Os pais de Brune se separaram quando ela tinha uns dez anos e a artista ficou com a mãe. “Desde muito nova eu já não queria ficar perto dele, porque me fazia muito mal. E ele não aceita a minha carreira, não aceita nada. Mas minha mãe (Silviane Ganz) já é bem mais cabeça aberta. Ela é bem jovem, tem 44 anos”, conta.
Mas demorou para revelar para a mãe que gostava de homens e mulheres. “Meu irmão primeiro se assumiu gay. Eu não sentia vontade de falar, também saí de casa com 20 anos, já tinha o meu próprio caminho, não precisava dar satisfação de quem eu trazia para casa ou não. Um dia, pensei sobre isso e percebi que pelo fato de não contar, eu mesma estava fazendo bifobia comigo. Quando contei, ela ficou meio em choque, depois foi absorvendo e aí ficou de boa, até conversa bastante, é bem aberta”, diz ela.
Brune nasceu e mora em Curitiba. Mas desde 2015, começou a viajar bastante. “Me apresentava como artista de rua, nos ônibus e metrôs ou vendia muito fanzine, livros artesanais de poesia”, diz. Gostava de cantar músicas de artistas como Vinicius de Moraes (1913-1980) e Tim Maia (1942-1998). Chegou a trabalhar uns três anos como artista de rua. Também dava aula particular de português, literatura, espanhol, redação para adolescentes, trabalhava como garçonete. E produzia eventos culturais. O Constelar Sarau, de poesia, e o Erótico Sarau, para falar de sexualidade não baseada no padrão. Eram muitos corpos a margem.
Agora, na pandemia, realizou algumas edições de Erótico Sarau virtual. Em 2015, esteve durante seis meses viajando por Uruguai, Argentina e Bolívia. Seu mais recente tour foi por Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, em 2019/2020, início da pandemia. Tinha ido morar no Recife, porque gosta da cultura local. “Tinha recém terminado a faculdade, me formado em Licenciatura em Letras e já estava cansada daqui de Curitiba mesmo, achando um pouco limitadas as possibilidades”, recorda.
Lá, tinha conseguido um trabalho em um restaurante, mas com a pandemia o restaurante fechou e teve que retornar para a casa da mãe. E teve amparo também de amigos. “Além da rua, também cantava em bares daqui de Curitiba, mas como intérprete, nunca tinha colocado a minha voz autoral. Eu tinha um problema com autoestima, ainda tenho um pouco. E eu me boicotava, porque eu escrevia poesia, cantava músicas que eu gostava. O clique veio nessa nessa viagem de 2019 pra começo de 2020”, cita.
Em Salvador, esteve na Igreja do Bonfim, onde disse que desejava começar a ter coragem de cantar as próprias criações e aí desde então foram acontecendo várias situações que a possibilitaram gravar o EP. “O universo mesmo foi dando um jeito. Fiz um financiamento coletivo também para arcar com os custos e as pessoas ajudaram bastante. Por isso que eu digo que o universo sempre ajudou”, conclui.
Artigos relacionados