Um profundo questionamento sobre as normas sociais que enclausuram a existência humana a partir do olhar em direção aos últimos anos do dramaturgo Oscar Wilde (1854-1900) é o ponto de partida para Marco Nanini levantar a própria fragilidade da vida diante da submissão dessas condutas que aparam a expressão do afeto em “Beije minha lápide”, peça escrita por Jô Bilac que mistura realidade com ficção. O espetáculo, que estreou nesta noite passada (29/8) no Centro Cultural dos Correios, no Rio, tem direção de Bel Garcia e contagiou o público, que se viu diante de mais uma interpretação visceral do ator.
No texto, o protagonista Bala (Nanini) é um escritor que encontra-se preso por ter destruído o invólucro de vidro que protege o túmulo do poeta inglês dos danos causados pelos fãs no emblemático cemitério Père Lachaise, em Paris, onde repousam seus restos. De fato, a tal redoma de vidro realmente existe (para impedir a erosão causada pelo batom das pessoas que beijam sua lápide) e é em cima dessa premissa que o autor constrói a narrativa, que lida com a questão do aprisionamento do homem através dos códigos de comportamento. Assim, a história do personagem que é fã do ícone britânico se mistura com a própria vida deste, considerando que tanto um quanto o outro se encontram diante do dilema de não se render àquilo que sociedade obriga.
Para Nanini, “assim como Oscar Wilde se recusou a se enquadrar no rígido estatuto social que imperava na Inglaterra vitoriana, se negando a negligenciar seus impulsos afetivos mesmo sob acusação de sodomia, Bala não se intimida com a redoma de vidro que envolve o jazigo do seu ídolo e a destrói, já que se recusa a aceitar a impossibilidade de prestar uma homenagem ao primeiro, sendo preso”. As semelhanças entre os dois escritores – o real e o ficcional – residem aí e, dessa forma, o protagonista bissexual acaba se tornando uma espécie de alter ego do inglês, que levou até o fim da vida o envolvimento com rapazes. Dessa forma, o texto inteligente interpretado pelos quatro atores em cena se mescla às diversas máximas do irônico escritor vitoriano, fazendo com que, muitas vezes, aquilo que saiu da boca de Wilde soe com extrema naturalidade ao ser proferido por Nanini, parecendo atual como nunca.
Ao longo da peça, amarras autoimpostas por outros três tipos com quem Bala contracena também servem pra mostrar que, na vida, não são apenas as imposições culturais que limitam a condição humana, mas também os aprisionamentos internos de cada um, já que, na contramão de Wilde (e do protagonista), é possível sucumbir a toda uma variedade de medos que transformam a trajetória pessoal do indivíduo em um cárcere. Assim, o ser humano pode escolher viver além da sua própria caixa de vidro ou esse fim é inevitável? Para Nanini, “É permitido fazer escolhas para não se resumir às imposições através de alegrias, ímpetos e toda a sorte de possibilidades, ainda que a pressão social seja intensa”. Mesmo assim, a obra procura revelar que, mesmo com todos os avanços afetivos e sexuais da revolução de costumes ao longo dos últimos 100 anos, ainda prevalece muito preconceito. Para Jô Bilac, “essas barreiras invisíveis nas grandes cidades impedem a espontaneidade do afeto e, ao lado da assepsia crescente do mundo virtual, faz com o que o sistema perca o tato”.
Em pé de igualdade com Marco Nanini estão Carolina Pismel, Júlia Marini e Paulo Verlings, os três da Cia. Teatro Independente. Verlings, que se destaca no papel do carcereiro do artista, enfatiza que “a prisão exercida por ele mesmo no sentido de se privar de seus desejos é tão violenta quanto a caixa de vidro que impede os fãs de demonstrarem sua homenagem ao poeta morto em Paris, assim como alguns atos de violência que o guarda projeta em cena representam o poder. Para tanto, a cenógrafa e diretora de arte Daniela Thomas concebeu uma caixa de vidro dentro da qual Nanini atua durante toda a peça, enquanto os demais personagens transitam ao redor, demonstrando que, fora da prisão, todos são também prisioneiros. Assim, ela funciona como suporte para uma série de projeções intimistas que colaboram no sentido de dar o tom de cada cena e criar a ambiência necessária para sublinhar aquilo que os personagens estão sentindo, criando certa inquietação na plateia.
No âmbito geral, o vigoroso resultado do espetáculo pode se resumir em uma famosa frase de Wilde: “Há duas tragédias na vida: uma a de não satisfazermos os nossos desejos, a outra a de os satisfazermos”.
Fotos: Zeca Santos
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