Artistas símbolo da música gaúcha dos 80’s, Kleiton & Kledir anunciam novo álbum e falam das perdas na tragédia do Sul


Os irmãos que trouxeram a capital e a musicalidade gaúcha para o centro artístico brasileiro revelam como estão lidando com as tragédias pelas quais o estado do Rio Grande do Sul, onde nasceram, está passando e eles próprios, já que, no fim de maio, a mãe dos cantores morreu. Os artistas chegaram a ter uma casa inundada em Pelotas. Ícones dos anos 1980, os irmãos seguem cantando em prol do Rio Grande do Sul e estão alinhavando um álbum de inéditas

*por Vítor Antunes

Os cantores e irmãos Kleiton e Kledir, ícones simbólicos de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul – que tanto exaltaram em inúmeras músicas -, acreditam que o maior sucesso nacional da dupla, “Deu pra ti” hoje parece um canto de urgência, quando pede um “basta” para o baixo astral. Ou melhor, quando diz “deu pra ti, baixo astral”, em bom gauchês. Um mês e alguns dias depois da maior catástrofe climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, a dupla de irmãos que trouxe a capital e a musicalidade gaúcha para o centro artístico brasileiro fala sobre como está lidando com as transformações pelas quais está passando o estado e eles próprios, já que no fim de maio a mãe dos cantores morreu. “Nossa mãe partiu, teve uma vida longa, viveu 98 anos e teve uma vida bonita com netos, bisnetos e foi amada por todos”. E, recentemente, os irmãos se apresentaram juntos com Alceu Valença e Lenine no Teatro Qualistage com um espetáculo destinado às vítimas do Sul.

Quando desta entrevista, Kledir estava doente, com uma virose, e não pôde ser entrevistado, tal como não esteve na gravação do programa “Altas Horas“, da Globo, do dia 18 de maio. Deste modo, a pedido de Kleiton, as respostas têm a anuência e serão referenciadas como sendo a fala de ambos. “Nós sempre fazemos as coisas em conjunto, o que eu falar não estará representando a mim, mas à dupla, e os convidados foram informados de que compartilhamos nosso pensamento coletivamente e costumamos deixar tudo conversado”. Agora, no mês de junho, a dupla fará três shows no Blue Note, no Rio.

Os irmãos também antecipam o lançamento de um novo álbum com músicas inéditas, e lastimam que haja tão pouca discussão sobre o pagamento de direitos autorais e conexos no streaming “Pagamentos de direitos conexos nem existiam antigamente, não se pagava. Foi um avanço justo. Porém, infelizmente, no Brasil, os direitos autorais e compositores e arranjadores são mal pagos e não chegam devidamente às nossas mãos. É um serviço muito deficitário. Deveria haver um recebimento. As plataformas têm que pagar melhor as pessoas e se reverter mais positivamente. A música rende um grande dinheiro para as gravadoras. O artista é geralmente o último a se beneficiar, bem como a cadeia produtiva. Isso é complexo e econômico. Lutamos para melhorar essas questões. Há uma queda brusca da época dos CDs e das rádios para hoje nas plataformas. É uma luta longa essa”.

Kleiton e Kledir estiveram recentemente no Rio Grande do Sul e testemunharam a devastação causada pela enchente no estado (Foto: Divulgação)

 

FONTE DA SAUDADE

Por anos, quando se falava em Porto Alegre, pensava-se também, na alegria – ainda que com um tom de saudade – dos irmãos gaúchos que diziam “deu pra ti, baixo astral”. Hoje, contudo, muito mais se dialoga com o verso inicial a música que encerra a peça “Bailei na Curva“, de Júlio Conte: “Há muito tempo que ando nas ruas de um porto não muito alegre”. Um mês e tanto dias de lágrimas e chuva, acabou reduzindo o Sul brasileiro a um grande terreno alagadiço. “É uma coisa assustadora. Eu estava em Canoas e sobrevoei o estado. Vi as regiões muito alagadas. Familiares nossos estão construindo cidades de lona, uma coisa gigantesca, isso sem noção de quanto tempo vai levar para recuperar a região, se são meses ou anos”.

Esperamos que todos, inclusive as autoridades, sejam responsáveis nesse momento e deixem a politicagem de lado. A capacidade de emergencialmente ajudar o sul é talvez a maior tragédia, e muita gente vai ter que se unir para ajudar – Kleiton Ramil

“Estamos fazendo o possível e fazendo o que podemos, mas é grave. Nossa família está protegida, mas correndo riscos. Tenho família em Porto Alegre e Canoas e estão todos protegidos em regiões altas, mas temos uma casa em Praia do Laranjal (localizada em Pelotas) que praticamente foi submersa, por estar ao lado da Lagoa dos Patos, ela alagou. É um caos tão grande que um conhecido que só pôde ser tirado pelo telhado. Tem outra família que perdeu tudo em Canoas, próximo ao estuário do Guaíba, que encheu muito.

Além a saudade de uma cidade que ficou na memória que antecedeu a tragédia, os irmãos também tiveram de lidar com uma perda inestimável, porém não relacionada com a inundação. A mãe deles, Dalva, faleceu de causas naturais aos 98 anos. “Partiu com música, amor e gratidão a ela e a todos os que a amavam. Ficam a saudade e as lembranças e a importância da nossa vida. Estamos sofrendo, tristes, mas com a consciência de que há muitas coisas positivas e que ela teve uma vida bonita”.

Dalva, mãe de Kleiton, Kledir e Vítor Ramil (Foto: Reprodução/Instagram)

CORAÇÃO NAVEGADOR

Quando a dupla surgiu no cenário musical brasileiro, um crítico do Rio fez um comentário preconceituoso que “Kleiton e Kledir pareciam uma dupla de ingleses que canta numa língua que lembra o português”. Segundo ele, as expressões, “tiurma”, “as guria” e “Bah”, eram ofuscadas em favor das gírias cariocas ou paulistas. E, seguindo com as expressões gauchescas, eles deixaram cair os butiá do bolso: milhões de discos vendidos, gravações com grandes nomes do cancioneiro popular e diversas músicas em novelas daquela década. Momento muito diferente do atual, segundo a dupla: “O mercado está mais difícil para quem começa e a internet é imprevisível, funciona muito mais com efeitos bombásticos do que realmente com música de qualidade. Quem bomba é quem faz música comercial apelativa ou que foge ao controle. Aos artistas novos, eu aconselho a conhecerem e fazerem editais de cultura. Nos Anos 80, fomos protegidos pela Ariola, que contratou os grandes nomes da MPB e investia muito em divulgação. No rádio, tocava nossa música no Brasil inteiro e nos promoviam. Hoje, os artistas novos dificilmente teriam isso.”

Para este ano, querem lançar um disco de músicas inéditas. “O “Par ou Ímpar” é um sonho realizado, um dos melhores trabalhos e está disponível no YouTube da Biscoito Fino e do Grupo Tholl. Estamos empolgados com o disco novo, um passo adiante, e produzido pelo Yan Ranil, que ganhou um Grammy Latino e que está na estrada há muito tempo, com uma visão moderna na estética sonora e no repertório. E, apesar de já sermos do período jurássico e sermos dinossauros da música popular, procuramos estar atualizados com a tecnologia. Convidei o Yan para isso, com sangue novo e ideias novas. Tenho o espetáculo “Casa Ramil”, onde a família toda está junta. É a oportunidade de recarregar as turbinas com essa geração mais nova, temos que rejuvenescer para acompanhá-los”.

Sei que ainda que não estejamos tanto na grande mídia, temos um público consolidado. Tivemos a felicidade de fazer muito sucesso nos anos 80, e teve uma vez que fizemos 137 shows, um show a cada dois dias. Aquele trabalho foi uma plataforma de lançamento que sobrevive até hoje. Temos um público gigante e é difícil manter para sempre. O sucesso de três, quatro anos nos permitiu manter nossa carreira – Kleiton e Kledir

Quando lançaram seu primeiro álbum, os cantores conseguiram estourar uma música já na trilha da novela das 20h, “Baila Comigo“, tema do protagonista João Victor (Tony Ramos). No ano seguinte, emplacaram outra música, desta vez na abertura, de uma novela também do Manoel Carlos, “Sol de Verão“, cantada por Simone. Fora estas, canções em “As Três Marias” e “Guerra dos Sexos“, da Globo, e “Sabor de Mel“, na Band. Que papel as novelas tiveram e que papel a TV tem hoje para um cantor, num momento em que elas parecem ter perdido o protagonismo de telespectadores: “TV é um grande poder de divulgação. Há muita força nas novelas porque ainda é um canal de divulgação importante quando é música de personagem. A TV é fundamental e o rádio ainda também. Hoje temos as plataformas na música, temos que procurar estar sempre ocupando os espaços possíveis de divulgação”, dizem eles.

Capa do primeiro disco dos irmãos cantores, de 1981 (Foto: Reprodução)

Presentes nos festivais de música, comum nos anos 1980, os artistas lamentam que não haja hoje algo semelhante com o que havia no passado, para o lançamento de jovens atores. “Os festivais de música seriam bons movimentos à parte do que acontece hoje. As gravadoras, mais do que no passado, miram nos artistas descartáveis que ganham dinheiro e ninguém lembra depois. Minha geração teve os festivais de colégios universitários e os festivais da Globo e das emissoras, que eram nacionais e davam prestígio. Os artistas mais novos têm dificuldade de se mostrar, mas eles existem”. Com ma sólida carreira construída lentamente, com o andamento de uma Maria Fumaça que se dizia devagar quase parada, Kleiton e Kledir passaram da estação de Pedro Osório, foram além dos trilhos da RFFSA, chegaram aos canais da TV em pleno Sol de Verão e navegaram com a galera da “tiurma” do Bonfim, e um certo Capitão Rodrigo, rumo à história. E, no venga hablar de penas: Enquanto o mundo gira, eles brincam.