*Por Rafael Moura
Uma amizade que nasceu num grupo de WhatsApp e que, agora, virou disco. O rapper O Limce acaba de lançar, em todas as plataformas digitais, o EP ‘Outra Dimensão’, que reúne cinco músicas gravadas em parceria com DKetu. O Limce e DKetu se conheceram em 2015 estreitaram laços, trocaram ideia, e. algum tempo depois, gravaram a primeira parceria: a música ‘Eu resisti’. Esse beat foi tão intenso que rendeu esse novo trabalho que traz como tema um assunto não muito comum no meio do rap: a espiritualidade, mas muito abordado em meio à pandemia causada pelo novo coronavírus.
“O rap tem em sua essência o protesto, e as mazelas sociais, mas nessa parceria com Dketu trouxemos a ancestralidade e a espiritualidade como inspirações, conceitos muito importantes para esse momento em que estamos vivendo”, diz O Limce.
Junto com o disco também chega ao YouTube o clipe de “3.ª e 4.ª D”, principal faixa do álbum. Gravado antes da pandemia, no início de 2020, na província do Quebec, no Canadá, o vídeo traz imagens da gélida cidade de Gatineau, ressaltando os enigmáticos versos da música, que tratam de outras dimensões e de projeção e elevação espiritual. “O encontro com o DKetu, que é um profundamente interessado na energia e nos estudos da consciência, gerou uma cumplicidade muito inspiradora”, explica. Todas as letras do disco são profundas, abordam o ser, a consciência humana, o autoconhecimento, o amor, a religião e dimensões. “O rap saiu dos guetos e, de alguma forma, o que vemos nas letras, esse incômodo, essa preocupação de salvar um amigo perdido, eu vejo como espiritualidade. Essas ações, para mim, são humanitárias e espirituais”, enfatiza.
Segundo o rapper, a arte é a única expressão capaz o suficiente de unir a humanidade, um pensamento nietzschiano que é altamente verídico. “A arte permite você voar, imaginar, prever o futuro, desenhar as próximas cenas e as próximas amostras. E deixamos de lado toda essa exigência do dia a dia, esse sentimento maçante da conquista. De ter a melhor postura, de ter a melhor pele, o melhor cabelo. Acabamos perdendo um pouco dessa sensibilidade por conta das exigências dos padrões sociais. A arte traz a visão da alma, principalmente num momento de reclusão”, reflete.
Para o cantor essa interminável quarentena tem sido bastante irritante: “Ficar preso e longe de todo mundo, mas tento ocupar o tempo trabalhando em casa no meu estúdio. E o que tem me salvado mesmo é a arte. Eu tenho produzido muito, estou escrevendo bastante, nesse período, fiz 14 músicas sobre a quarentena, que vou lançar em breve num novo disco, e algumas poesias que foram gravadas em áudio. Esse mergulho na minha arte salva um pouco dessa irritação toda e violência trocada pela internet”.
E quando a necessidade de ficar em casa é interrompida pelo destino? Foi o que aconteceu com DKetu, na segunda quinzena de maio. Morador de Campo Grande, Zona Oeste, do Rio de Janeiro, teve parte de sua residência destruída após um curto circuito elétrico, causado provavelmente por uma sobrecarga na sua geladeira, que provocou um incêndio de grandes proporções e muitas perdas materiais. O artista e sua família não se feriram, mas perderam móveis, eletrodomésticos, e parte da casa que precisa de uma grande reforma. Aos poucos, o rapper está reconstruindo sua vida, e faz um apelo solidário a quem quiser e puder colaborar lançando uma vaquinha virtual até 15 de julho. “Na vida, a gente se esbarra e a gente se encontra. O meu encontro com O Limce trouxe muitas coisas boas. Aprendi com a bagagem poética dele e achei uma forma de externar tudo o que eu sempre me questionei e quis colocar sobre espiritualidade, um tema que me acompanha desde criança”, revela Dketu.
A internet se tornou a nossa grande plataforma de comunicação e entretenimento. Para o cantor esse ambiente é altamente fértil para a criatividade e a divulgação do seu trabalho. “Nas redes sociais, eu procuro me relacionar, de fato, com as pessoas. Tenho conversas profundas ao ponto de encontrar depois, desenvolver uma amizade real, com alento presencial, ajudando. Para mim é um local de relações próximas. Até a minha amizade com o DKetu, por exemplo, com quem lanço o disco agora, começou assim. E também reencontrei algumas pessoas do passado pela internet. As redes sociais não têm pra mim só o sentido literal, elas também são uma fonte de informação que podemos ter e adquirir, inclusive sobre a arte.
Outra Dimensão
O primeiro single, que chega com o clipe, ‘3.ª e 4.ª D’, fala sobre transcender, sobre a possibilidade de cruzar dimensões. O início da música é um relato pessoal do rapper DKetu, que, desde criança, vive intensas experiências espirituais, ‘Desconectado da matéria/ Longe de toda a referência daquilo que eu conheço como tempo/ Visitei um lugar que em meu consciente julgava desconhecido”. “DKetu e eu nos tornamos amigos muito rapidamente e quando ele sugeriu a ideia de gravar músicas sobre espiritualidade, eu já tinha alguns escritos e fui trazendo outros durante o processo. Apesar de não nos conhecermos profundamente na época, a energia fluiu muito bem, e em pouco tempo, já estávamos com cinco músicas prontas e uma amizade de eras”, explica O Limce.
O rapper conta ainda que neste novo trabalho há diversas vertentes do tema espiritualidade. “Normalmente, a espiritualidade é ensinada pela religião. Então, há uma confusão sobre isso. Mas espiritualidade não tem nada a ver com religião, e sim com o próprio ser, com o espírito”.
Na canção ‘Anseio’, o amor é o tema de destaque. Já em ‘Muros e Pontes’, O Limce se inspirou na vida diária e no cotidiano dos trabalhadores para trazer versos como: ‘Alimento para alma é aquele que ansiamos, por isso nos apetece/ Mesmo que a morte te afronte, mande um recado à Caronte/ Eu procuro vida em abundância, eu mesmo fiz o caminho, vou construindo a minha ponte/ Quem vai à luta, quer vencer, e procura a nascente matando direto nela a sua sede e fome”.
A música ‘Casa Pequena”, os atabaques e as referências a religiões de matrizes africanas trazem a história ancestral do rapper. “Essa é a música que traz o lado religioso do disco, me inspirei na minha avó e na herança africana da nossa família, na fé, e no lugar de onde eu vim”, conta. Fechando álbum a faixa ‘Corre’, que traz versos sobre olhar para dentro: ‘No íntimo do coração é onde a vida inteira começa/ É o lugar mais terrível ou o lugar mais belo e claro da terra./ O que procura, tá bem dentro de você./ O amor próprio e mais profundo que ainda não pode entender./ Esteja atento a si mesmo e permaneça alerta./ Liberte-se da prisão, porque a porta sempre esteve aberta’.
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