Depois de um hiato de quase quatro anos sem lançar discos, Maria Gadú surpreendeu a todos com seu “Guelã”, parido em maio do ano passado. Foram tempos difíceis para a cantora paulistana, que precisou se reinventar musicalmente e até psicologicamente através do encontro transformador com seu retorno de Saturno. Mas isso são águas passadas. Agora, com uma forcinha dos astros e do talento incontestável da artista, Gadú está prontíssima para lançar o terceiro DVD ao vivo de sua carreira, batizado com o mesmo nome do álbum que parece ter fechado um período de seca na vida dela. “Esse registro fecha um ciclo, uma etapa. Foi um passo importante para o caminho que quero traçar baseado no que posso aprender, degustar e assim externalizar em palavras e sons. Venho me questionando e colocando à prova todo o conhecimento adquirido ao longos dos meus 30 anos. ‘Guelã’ é mutação. o registro serve pra explicitar o quanto poderei mudar hoje e amanhã”, explicou a cantora. A gravação do trabalho ocorreu em São Paulo, mais precisamente no Centro Cultural São Paulo, no dia 11 de agosto deste ano.
Além do show, que conta com direção geral de Gadú e Lua Leça, sua mulher, o DVD também apresenta uma espécie de documentário que mostra o difícil processo de gravação do álbum e do espetáculo de uma forma geral. “O show foi realizado na minha terra natal, juntamente com um doc sobre o processo criativo que intitulamos ‘A Terceira Asa’ e um videoclipe da canção ‘Trovoa’. A ideia e concepção das formas e cores foram dirigidas por mim e Lua desde o início, quando ainda em nossa casa arquitetávamos esse voo. Lua veio, ao longo de quatro anos, registrando informalmente nosso dia a dia e resolvemos compilar essas imagens pra contar a história desse trabalho”, explicou ela, comentando também sobre a música escolhida como single. “O clipe é uma ideia que tive pra aproximar em imagem o que sinto pela canção, homenageando o amor, a musa, a complexidade e a cumplicidade. O retorno de Saturno me trouxe um universo inteiro, onde pude e posso navegar sem medo. Ao longo de dois anos, preparei o corpo e a mente pra dar vida ao que chamo de ‘feliz nova era'”, explicou Gadú, revelando um lado mítico pouco conhecido do público.
A cantora, compositora e multi-instrumentista também assina a direção musical, toca guitarra e surdo na banda formada pelos músicos Federico Puppi (cello), Lancaster Pinto (baixo) e Felipe Roseno (bateria e percussão). Apresentando assim um novo clã de companheiros musicais. “Um dia eu tinha que sair de casa, porque eles, Cesinha, Caneca, Doga, Maycon, Gastão – a banda com quem eu caminhei até aqui – são a minha casa sonora e com eles eu aprendi que podia ser musicista. Eu quis ser musicista, tocar bem, transar as coisas. Não existe despedida. Eu estive viajando por aí, ouvindo música, fumando cigarrinho, bebendo vinho. Descobrindo a leveza do meu corpo, descobrindo o peso do meu corpo. E a gente encontra e faz amigos pelo mundo e eles têm folclores diferentes do nosso, escutam, fazem outras músicas, enchem a gente de insegurança. Porque ser do mundo é ser plural. E há de não se ter amarras”, refletiu.
Mas tantos sabores, descobertas e noites regadas a diversão prejudicaram o desempenho vocal de Maria Gadú, que precisou se recolher um tempo para colocar as ideias e os abjetivos no lugar. “Minha voz estava castigada por conta das biritas e dos fumos. Tudo bem, né? Eu só tinha vivido até aqui. Pelo menos eu carregava alguma coisa comigo. Teve que rolar um silêncio cármico depois de toda a maravilha do Bituca, do Gil, do Caetano, do Lenine, do Tony Bennett, da Alicia Keys, do Caneca, do Cesinha, Gastão. Eu fugi no mundo, depois eu me aninhei no mato. Tava fodida, sem voz, sem ideia. A minha imagem, fora do meu corpo, era maior do que eu. Aí eu voltei lá, na minha canção de ninar. No mar da ilha. Parei de fumar e não enlouqueci”, recordou ela, em tom de vitória.
E, parece que essa troca de hábitos fez com que uma nova Gadú ressurgisse, cheia de inspirações e apetite de criar e se deliciar novas canções. A ideia inicial, segundo ela, foi se resguardar dentro de si para criar um novo olhar para o mundo. “Eu pintei meio Ganesha numa tela, comprei uma guitarra e meia dúzia de pedais. Troquei o fumo pelo livro e comecei a ler compulsivamente de tudo. Compulsivamente. As coisas vão ficando exuberantemente claras quando o silêncio rola. Tudo é bonito e feio, é vivo e morto. Aí já tava resolvido, Eu faria um álbum meu. Tosco, bonito e feio. Real”, comentou ao falar sobre “Guelã”. “Minha casa virou um parque de diversões. Ao mesmo tempo em que a gente se divertia inventando coisas e descobrindo sons, vinha medo, insegurança, angústia. Tentando aprender a lidar com os novos brinquedos, saber das manhas, das jogadas. Foi bom. Eu e o Doga gastamos dias, tardes, noites ali. o Renan trazia café, a Lua fazia comida, a Giovana e as crianças traziam alegria, os amigos pintavam”, recordou sobre o processo.
A transição parece ter sido dolorosa, porém, muito criativa. Ainda se recuperando vocalmente, a cantora se disse encantada com as novas composições que fizeram parte do CD e integram o novo DVD. “Passou pela minha cabeça chamar o álbum de ‘Terceira Asa’. Era um rascunho de caminho, que as músicas não tinham nem nome ainda. Quando chegou a hora do estúdio, eu chamei o Puppi pra compartilhar essa parte da elaboração. A gente sempre junto fazendo as coisas com paixão à beça. O Puppi é meu brinde interurbano. A gente queria voar. Nessa época, minha voz estava ruim à beça ainda. Foi difícil e doeu muito gravar esse disco. Foi um desafio. Não fiquei satisfeita, não. mas eu deixei como tava. Não tinha nenhum ímpeto mentiroso. Ia ficar do jeito que tivesse que ficar. E as coisas foram acontecendo, a gente foi construindo”, recordou ela sobre o período que passou no estúdio no ano passado.
Agora, no final das contas, o mais importante para Maria Gadú tem sido o fato de a vida estar sempre mostrando caminhos diferentes do que previsto para o futuro. E o ditado de que “Deus escreve certo por linhas tortas” tem se mostrado muito presente em sua vida. “Tudo é motivo pra ficar junto, pra dar risada, pra chorar, pra ficar vivo. Tudo o que você imagina vai se moldando pra os lugares que você chega. A energia que rola no lugar, pra necessidade no ar do lugar. Essa parte é a mais legal. Tanto que a gente tentou registrar esse show no festival de Montreux, na Suíça, mas não deu certo. As coisas não dão certo às vezes e isso é maravilhoso. Ia ser um DVD, chique e tudo. E assim foi, onde tinha que ser”, completou.
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