“Ao contar um episódio de racismo, a pessoa preta visita um lugar de trauma”, desabafa Rico Dalasam


Precursor do queer rap, o artista lança o EP “Dolores Dala, o guardião do alívio” e comenta a questão do racismo estrutural no Brasil. “O que presenciamos todos os dias são episódios nos quais não só é negada a humanidade do corpo preto, mas são exemplos de que está em curso e a todo vapor um desejo extremamente colonial de negar as nossas humanidades, de colocar-nos mais do que no lugar de corpos específicos, mas também de exterminar qualquer possibilidade de acontecimento positivo relacionado a corpos pretos. Seja destruindo nossas inteligências e nossos saberes, apagando a história, ou a carne mesmo”, afirma

*Por Simone Gondim

Dor e conforto são as palavras que dão a tônica do novo EP de Rico Dalasam, precursor do queer rap. Batizado de “Dolores Dala, o guardião do alívio”, o trabalho marca uma mudança de estilo do artista. “Trabalhei sem parar durante três anos, junto com minha equipe. Paramos para cuidar um pouco de nós, da nossa saúde, porque se déssemos mais um passo talvez entrássemos em esgotamento artístico”, conta ele. “Nesse processo, a gente entendeu que precisava tratar de dualidades: dor e alívio. Esse disco vem como se fosse uma obra literária e as músicas são a sua trilha. ‘Dolores Dala, o guardião do alívio’ é uma fábula”, acrescenta.

Além das dores particulares, que vinham sendo atropeladas pelo excesso de trabalho, existem as dores coletivas. Uma delas é o caso do menino Miguel Otávio, de 5 anos, morto ao cair de um prédio de luxo no Recife depois que a patroa de sua mãe deixou a criança sozinha no elevador e apertou o botão da cobertura. “Morre um menino e morre um pouquinho da gente, também. O que presenciamos todos os dias são episódios nos quais não só é negada a humanidade do corpo preto, mas exemplos de que está em curso e a todo vapor um desejo extremamente colonial de negar as nossas humanidades, de colocar-nos no lugar de corpos específicos, mas também de exterminar qualquer possibilidade de acontecimento positivo relacionado a corpos pretos. Seja destruindo nossas inteligências e nossos saberes, apagando a história, ou acabando com a carne mesmo”, afirma Rico.

“Reivindiquei esse lugar no rap de pessoa LGBT preta, que até então não existia”, diz Rico (Foto: Reprodução Instagram)

Rico enfatiza que o racismo estrutural existente no Brasil é herança do período colonial e faz parte de um projeto de reduzir a qualquer custo a humanidade do povo negro. “Ao contar um episódio de racismo, a pessoa preta visita um lugar de trauma que serve para a humanização das pessoas brancas. Elas se humanizam ao ouvir uma história triste”, diz o artista. “O processo é sempre esse: a pessoa ouve uma história triste e se coloca no lugar de alguém muito compadecido, só que está muito longe de qualquer prática e atividade antirracista. Isso serve para humanizar o próprio opressor”, ressalta.

Outro ponto levantado pelo rapper é o fato de o povo negro não ser visto como universal, mas sempre específico. “A grande herança da escravidão é tornar nossos corpos específicos. Tudo para a gente é específico: tem um dia para comemorar tal coisa, matérias sobre nós são especiais, há questões que precisam estar inflamadas para que a gente seja pautado para uma série de discussões, entrevistas, trabalhos publicitários etc. Nunca pela natureza universal das nossas humanidades, como acontece com a branquitude”, lamenta. “Mais do que eu saber sobre a minha negritude e mais do que pessoas brancas entenderem o que é ser negro, a gente está em um movimento, e as ações que podem ser feitas nesse instante estão muito mais ligadas a pessoas brancas entenderem a sua branquitude, tudo que isso carrega e o quanto o mundo já é preparado e movido para beneficiá-las em toda e qualquer circunstância. Daí as noções de dominação, conquista e todos os desdobramentos que nos levam ao ponto em que estamos”, completa.

“Pessoas brancas precisam entender a sua branquitude, tudo que isso carrega e o quanto o mundo já é preparado e movido para beneficiá-las em toda e qualquer circunstância”, afirma Rico (Foto: Larissa Zaidan)

Quando começou na música, em 2015, Rico Dalasam foi bem-sucedido ao conquistar seu lugar no rap. Homossexual assumido, ele abriu espaço para o queer rap. “Reivindiquei esse lugar no rap de pessoa LGBT preta, que até então não existia. A partir daí, comecei a flertar com o universo pop. Isso me abriu caminhos e passei a compor para outros artistas, que têm demandas muito maiores do que as minhas. Eu estava dentro dessas demandas também, porque precisava produzir coisas para entregar e cumprir prazos”, lembra. “Chegou uma hora em que eu e minha equipe vimos que precisávamos acessar um lugar de alívio em nós mesmos, porque todo mundo estava saturado”, confessa.

O artista frisa que, no começo, não entendia a profundidade de ser o que ele define como uma bicha no rap. “Eu só queria fazer as músicas com a batida que eu gosto, mas dizendo coisas que não tinham no rap. Foi a primeira vez que apareceram. Hoje é mágico, porque eu consigo fazer uma playlist só com bichas que rimam. Foi importante porque eu, de alguma maneira, humanizei o assunto, o contexto e o gênero. No fim das contas, ainda estou falando de masculinidade, porque sou um homem, mas dando sugestões de novas masculinidades, algo que também é uma pauta desse tempo”, conta.

(Foto: Reprodução Instagram)

O EP “Dolores Dala, o guardião do alívio” traz cinco faixas que dão um aspecto lúdico a sentimentos despertados por episódios vividos pelo artista. Enquanto “Braille”, por exemplo, traz rimas embaladas pelo pandeiro para descrever um relacionamento inter-racial, o afropop “Mudou como?” mostra os trágicos efeitos da ordem colonial. Em ambas as músicas, o alívio chega após um longo tempo de dor. Já a melodia mineira de “Vividir” fala da volta a um lugar geográfico que já não existe mais. “O ponto de partida é o lugar onde nossos alívios e a nossa parte em forma mais pura existem ou existiram. Foi com esse intuito que a gente fez esse trajeto de tratar questões que estão, na verdade, falando de afetos pretos, de afetos de um corpo preto no sul da América. Como a gente ama, como a gente não ama, como esse amor é dado e como ele é negado, ou como isso se desdobra”, descreve o artista.

A pandemia causada pelo novo coronavírus adiou os planos de lançamento da turnê de “Dolores Dala, o guardião do alívio”. “A gente vinha desse exercício de um lugar de prática de ausência. Íamos experimentar o Dolores Dala no palco, tínhamos a primeira rodada de shows marcada. Mas caiu tudo”, observa Rico. “Vale muito mais a gente falar sobre nossas subjetividades e resgatá-las por meio desse som, dessas letras, dessas coisas, e levar a pessoa de um modo mais universal. Mesmo que não seja o pop farofa, com acabamentos populares. No sentido musical, trazemos mensagens que fazem sentido”, garante ele.

A capa do EP “Dolores Dala, o guardião do alívio” (Arte: Oga Mendonça)

O novo EP apresenta um Rico Dalasam com um visual que não lembra em nada a ousadia de “Balanga raba”, época em que ele vestiu um macacão preto justíssimo e saltos altos, entre outros looks. “Estamos em um universo lúdico e ele tem outra construção. Ainda que existam camadas que são do diálogo de moda atual, há o imaginário vegetal, como se fosse uma fábula. Aí, as outras coisas não fazem mais sentido, assim com as músicas. E eu também amadureci. As coisas que fiz no fim da adolescência para cá, e agora mais adulto, foram incríveis, mas tenho outros desejos”, explica.

Em relação a influências, “Dolores Dala” traz sobriedade e um toque afrodiaspórico. “É uma África oriental, essa coisa mais para o tuaregue, o negro do deserto. A gente cruza isso com o urbano, que é a moda feita na Europa. As influências de agora estão muito mais no comportamento, com toque de Brasil, África e Oriente Médio”, fala Rico.

Por falar em comportamento, será que Rico sempre lidou bem com a sua sexualidade? “A construção de identidade de raça veio muito antes da identidade de sexualidade. Quando cheguei em casa e falei que ia namorar um menino, na outra semana o menino já estava lá. Foi tranquilo, tenho uma irmã gay que é 15 anos mais velha do que eu. Ela já trouxe uma série de questões, assuntos e entendimentos”, revela. “Achei que minha mãe não iria saber muito ser mãe de gay, mas no meu primeiro término de namoro ela já se mostrou uma pessoa incrível, muito sábia. É um lugar de acolhimento para mim. Em grande parte dos casos, a situação é muito difícil. Sei que tenho algo especial”, conclui.