Anttónia: arte, canção sobre bipolaridade e primeira turnê. A caleidoscópica artista que vai além da família famosa


Cantora, compositora, atriz e apresentadora. Diante de tantas habilidades, Anttónia decidiu migrar objetivamente para a música. Lançou singles neste ano, está preparando a turnê do quarteto que montou com o pai, Orlando Morais, e as irmãs, Cléo e Ana, e quer dar à sua arte a sua assinatura em turnê solo também. Nas letras de suas músicas, ela fala de si e desnuda a bipolaridade e os relacionamentos abusivos. “‘Suas Mentiras’ é um single que traz as experiências que passei e que meus amigos passaram em seus relacionamentos abusivos. Era algo que as pessoas podiam se identificar. Quis escrever de forma a mostrar como superar as decepções e dar a volta por cima”, frisa

* por Vítor Antunes

Além de ser mãe, quero ser amiga. E um amigo cuida do outro amigo“. Em 1996, quando Antônia estava com três anos, sua mãe, Glória Pires tratava assim sobre a relação que queria estabelecer entre ela as suas, então, duas filhas. Com o tempo, vieram outros dois, Ana e Bento. Assim como o tempo trouxe a necessidade de afirmação de Anttónia, cujo nome agora tem consoantes dobradas e acento agudo na letra “o” – antes assinava Antonia Morais. Aos 30 anos, a artista quer colocar-se ainda mais solar e iluminada, afirmativa, assertiva – e leonina, importante ressaltar. Projeta sua luz própria para além de estereótipos. Anttónia não nega suas origens, mas quer assinar não apenas a sua arte, mas ganhar o mundo com ela. Mudou de nome, de estilo, e tal qual diz a música dos Secos e Molhados, “rompeu tratados e traiu os ritos”. Após algumas novelas, ela mergulha cada vez mais e decididamente em sua carreira musical. Neste ano lançou “Suas Mentiras” e “Me Leva” e para o ano que vem investirá em sua música nova “Canção de Amor“, que está no show familiar. Ainda para 2024 fará tanto a turnê junto à família como a sua própria. “Já fiz shows pontuais, mas vai ser minha primeira turnê”.

Conta-nos ela que compõe desde muito criança – “eu sempre soube que seria artista e isso nunca foi dúvida, sempre foi algo muito claro pra mim”. Para fazermos esta entrevista localizamos que, na realidade o début da cantora foi aos cinco anos, em 1998. ‘Álbum de Família’,  disco de Orlando Morais, terá a participação de Cléo e de Antônia”, dizia a Revista Manchete. Mais tarde, o disco mudaria de nome e chamaria-se “Sete Vidas”. A propósito, e voltando ao álbum de família, ela, as irmãs – Ana e Cléo – e o pai estarão em turnê no ano que vem, com o show “Eu e Elas“.

Além dos objetivos profissionais, Anttónia empresta a esta conversa a sinceridade com a qual vê a vida, com a franqueza de quem enxerga nela a amizade de uma irmã. Fala sobre a bipolaridade recém descoberta, a experiência com o audiovisual, o sonho de fazer cinema e a prioridade que empresta à musica. “O barato é tentar fazer algo maior. Foi o que tentei fazer quando optei por uma música independente. É uma transgressão. Ser uma artista indie no Brasil é muito limitador. É um nicho que é preconceituoso. São os que pagam de mais liberais, mas alguns têm a mente fechada. Trata-se de um caminho árduo, porém consciente”.

Novo nome, nova arte, novo tudo. Simplesmente Anttónia (Foto: Divulgação)

QUINTESSÊNCIA

Costuma-se dizer, filosoficamente, que quintessência é “a parte mais pura de um todo. É o que se é”. Talvez este seja o momento mais quintessencial da vida de Anttónia. Segundo conta-nos ela, a mudança na forma de assinar o nome não é algo novo. Pelo contrário, sempre esteve presente. “Era parte do meu sonho assinar com um pseudônimo, mas dessa ideia meu pai não se agradava. Ele dizia que a minha obra tinha que ser reconhecida por mim. Como a nossa carreira tem muita singularidade, quando eu me lancei como musicista quis honra-lo e assinava com o seu sobrenome. Hoje, porém, precisei ouvir a minhas vontades e fazer isso [de mudar o nome artístico]. Estou num momento de ressignificação da minha música, como compositora, mudando de estilo musical. Quando comecei na carreira eu fazia uma música mais conceitual, mais anti-indústria e hoje quero me comunicar mais. Quero que me vejam mais na sonoridade, na escrita, na narrativa”. Para Anttónia, esta é “uma mudança grande, conceitual, genuína. Uma fase pop, não pop como gênero, mas como habilidade de comunicação em massa”, define.

Acredito na música como um ato de comunhão, de relação, que se estabelece quando ela nos identifica. Minha canção tem um pouco de mim. É uma chave que vira e sinto essa grande mudança. Trata-se de uma decisão interna, quando se decide estar pronta. Quero estar ainda mais presente e me fazer comunicar. É um desafio ser pop – Anttónia

O nome de batismo de Anttónia é uma homenagem ao seu avô, Antônio Carlos Pires (1927-2005). Além do prenome em comum, ela traz consigo as melhores lembranças. “Tínhamos uma relação maravilhosa. Ele morou conosco. Sinto muito sua falta”, diz, saudosa. O falecido humorista é mais um nome a compor este álbum de família – e de memórias. Ainda muito pequena, a artista esteve nos bastidores de “Mulheres de Areia“, trama que, aliás teve a gravação e a estreia atrasadas em razão do seu nascimento. Coincidentemente, enquanto fizemos esta entrevista, Glória Pires estava no ar, revezando-se entre as famosas gêmeas de Ivani Ribeiro (1922-1995). No mesmo ano em que Ivani faleceu, Orlando deu uma entrevista à Revista Manchete dizendo já ter “deixado de fazer muitos shows no exterior só por saber que ficaria muito tempo sem ver a Glória e a Antônia”.

Glória Pires, Orlando Morais e Anttónia, em 1994 (Foto: Biblioteca Nacional/Revista Manchete)

Atualmente, Anttónia, assim como suas irmãs e seu pai, podem ser vistos nos show “Elas e eu“. Projeto que nasceu espontaneamente e proposto por Orlando. “Estávamos juntos, em São Miguel dos Milagres (AL), e ele propôs que fizéssemos um grupo. Eu sempre tive uma resistência em fazer projetos em família, especialmente por sermos todos muito conhecidos, termos concepções diferentes e muita personalidade. Mas eu cheguei num momento de maturidade no qual esses questionamentos se tornaram mais leves. Me empoderei desse autoconhecimento, de maturidade musical e achei que seria incrível estar com eles. Me senti pronta a participar. Soma-se a isso, também, o fato de eu ter feito um álbum em homenagem ao meu pai, com músicas dele, o que me libertou desse lugar de cobrança que existia em mim. Foi tão libertador que me senti pronta a viver essa energia de forma integral. E eu jamais faria um projeto se não pudesse estar 100% nele”.

O quarteto estreou o show no fim de agosto, com lotação esgotada. Em 2024 haverá a primeira turnê dos quatro (Foto: Divulgação)

A liberdade feminina incomoda muito. Ainda no começo da carreira, quando estava num meio masculino com recorrência tive de ser agressiva para ser escutada. Tive de me mostrar mais masculina para ser entendida e isso pouco se falava na época. Hoje podemos discutir isso. Com o feminismo trazido à pauta, eu entendo que não preciso ser assim. Eu posso ser feminina, ser mulher e ser respeitada, ainda que ainda haja dificuldades para isso – Anttónia

Cléo, Glória Pires e Anttónia, em 1996 (Foto: Biblioteca Nacional/Revista Manchete)

CAMALEÔNICA

Quando o David Bowie (1946-2016) surgiu no cenário artístico, na era do glam rock, ele dizia ser um extra terrestre, Ziggy Stardust, que inventou para dar vazão à sua arte. Muitos dos seus fãs ainda se referenciam a ele dessa forma. Bowie foi camaleônico e também teve sua fase ator. Quando fala sobre sua passagem pelo audiovisual e, especialmente sobre as novelas, Anttónia faz uma alusão a ele, “com muita humildade, claro. Mas, assim como Bowie, não tenho pretensão de focar nesse segmento, em ser atriz. Me considero uma cantora que fez trabalhos pontuais como atriz. Quero fazer trabalhos como intérprete quando houver uma relação com a estética, com um posicionamento. Acredito e me inspiro muito nessa liberdade e complexidade dele e a minha relação com atuação se volta ao meu trabalho na música. Uso de personagens para compor letras e preciso disso, dessa criatividade imagética e roteirística”. Sobre voltar a atuar como atriz, ela diz que “se vier um grande personagem que se adequar à minha agenda e projetos de cantora, faria. Especialmente no cinema, que amo”.

Outra linguagem que Anttónia experimentou foi a de apresentadora do programa “Lavando a alma“, no Canal OFF. “A atração é transmitida até hoje e as pessoas amam. Fui convidada a fazê-lo quando estava no Havaí. Na época eu vivia uma fase naturalista, de imersão e contato com a natureza. Foi uma experiência legal o “Lavando” . Fomos para lugares incríveis, mas depois vi que essa linguagem não era para mim”. O show hoje é apresentado pelo ex-BBB Danrley Ferreira.

Felicidade e gratidão é acordar e ver o mundo, a vida, tomar café na padaria com meu namorado, estar com minha família, ter saúde, realizar meus sonhos, trabalhar com o que amo, ver o meu trabalho acontecendo, criar, estudar – Anttónia

Anttónia no programa “Lavando a Alma”, do Canal Off (Foto: Divulgação/Off)

Numa das músicas lançadas neste ano, a cantora revela uma faceta pouco explorada e se despe ao falar de sua bipolaridade e de relacionamentos abusivos, tanto que ela viveu como o de amigos. “Junto ao Giovani Cidreira fizemos “Suas Mentiras“, um single que traz as experiências que passei e que meus amigos passaram em seus relacionamentos abusivos. Era algo que as pessoas podiam se identificar. Quis escrever de forma a mostrar a superação de decepções e dar a volta por cima”. Em outro hit, fala sobre a bipolaridade e revela sobre como a descobriu: “Eu tive crises na pandemia e me tratei. Sentia que algo muito estranho tinha acontecido comigo. Hoje, eu falo com leveza por estar estabilizada, mas eu chegava a não me reconhecer. Eram coisas fortes. Passei dois anos tentando diagnóstico e o espectro da bipolaridade é abrangente. É preciso ter muita certeza para se tratar. Como era parte de mim, obviamente quis colocar isso em música e queria fazer com que as pessoas se identificassem. Acho que consegui”.

Anttónia. Suas Mentiras trata sobre relacionamentos abusivos (Foto: Divulgação)