Anitta é um caldeirão fervendo. Não apenas no sentido sexy e musical, de estrela forjada na indústria para acontecer para valer, mas no sentido de catalisadora de influências, tipo caldeirão de feiticeira onde se jogam os ingredientes para conceber aquela poção mágica que irá hipnotizar o público. Essa é a conclusão que se chega após assistir, na noite passada, o show de gravação de seu primeiro DVD, “Fantástico Mundo de Anitta”, no HSBC Arena, no Rio, em super produção para cerca de dez mil pessoas que nada deixa a dever aos grandes shows internacionais, veículos ideais para escoar a produção de grandes estrelas do pop, em época onde a vendagem de CDs já não é mais uma Brastemp, catapultando o seu consumo através do registro dos shows. Hoje em dia, o público consome material audiovisual em duas vertentes: filmes de cinema e shows de música. E Anitta resolveu, de certa forma, beber direto das duas fontes. Com sua enorme equipe de vassalos-profissionais, a nova suserana da pop music brazuca montou um show estilo Madonna ou Beyoncé, com diversas referências cinematográficas e alusão aos espetáculos do Cirque de Soleil, do qual até importou um bailarino para funcionar como costura de roteiro.
De fato, a estrela precisava de um time de profissionais competentes, cada um no seu quadrado, que pegasse seu enorme potencial enquanto diva pop – passível de ser assimilado pelo mercado internacional, segundo a revista Forbes – e, tal qual uma massinha de modelar, o esculpisse de forma a ampliar de forma avassaladora sua capacidade de ser palatável, adicionando respeitável moldura cênica. Como a Mulher Maravilha, que foi criada na Ilha Paraíso pela rainha Hipólita das Amazonas a partir de um boneco de barro, ganhando sopro de vida através dos deuses do Olimpo, que lhe atribuíram talentos de acordo com as suas especialidades. Coube ao diretor Raoni Carneiro a função, tal como Zeus, de reunir um grupo de entidades do showbiz que pudesse ajudar a artista a angariar o seu devido quinhão de respeitabilidade e, assim, se transformar em uma deusa completa, pronta para ser adorada pelo público fiel. E, óbvio, a monumentalidade do HSBC Arena, com palco gigante famoso por shows memoráveis (Sade, Eric Clapton e tantos outros) e dimensões de Coliseu moderno, não poderia ser mais adequada para sacralizar esse objetivo, em um ritual de beija-mão que nada deve àquelas cerimônias religiosas pagãs que o cinema trata de imortalizar nos épicos. O público se comportou com verdadeira fúria de Titãs, fervorosamente disposto a alçar seu objeto de adoração ao mais alto pedestal.
Anitta, que além de competente não é boba, sabe perfeitamente disso. E, como uma Deméter prestes a ser cultuada, transformando o inverno do cenário da música popular em primavera ensolarada, interage com a plateia disposta a lhes arrancar infinitas preces de louvor e eterna fidelidade. Fidelidade enquanto dure, diga-se de passagem, já que as artimanhas da sociedade do espetáculo são muitas e os objetos de culto hoje são execrados amanhã. A “Fúria de Titãs” dos consumidores é volátil e pode mudar a direção do vento de uma hora para outra, mas a cantora não pretende abrir mão do cetro conquistado, nem deixar que algum concorrente posterior tente lhe arrancar a cabeça, abrindo as entranhas dos Cárpatos para que algum titã envie um kraken faminto para lhe roubar a majestade. Não, assim como nessa epopéia do cinema, Anitta sabe que sua divindade continuará existindo somente enquanto os meros mortais lhe renderem homenagens, e pretende – assim como Zeus, Poseidon e sua turma – se encarregar pessoalmente para que esse respeito divínico não acabe nunca.
Daí as inúmeras gracinhas com os fãs, que respondem em forma de palmas, gritos e alvíssaras. “Este fã clube é de Manaus, meu amor! Olha a Suyanne ali maravilhosa! Cadê a galera de Salvador? Olha ali a de São Paulo! De Brasília?!? Eu tô amando! E cadê a rapaziada do Riooooooo???”, diz a estrela, ovacionada em seguida pelo público, com a temperatura subindo uns doze graus fahrenheit. Sim, Anitta é mestre em conversar com os fãs, brincando até com o Raoni quando demora muito a engatar outro sucesso por estar fazendo número de plateia: “O diretor está aqui falando no ouvido (no ponto) que eu tô demorando muito, que eu falo demais”, entrega – aludindo à coletiva de imprensa em que interrompeu o profissional quando este começou a se alongar, dissertando sobre o conceito do show. Sim, apesar de seguir os conselhos do séquito de colaboradores, ela gosta de deixar claro que quem manda ali é ela, que é a rainha do pedaço. E continua: “Meu diretor me mandou calar a boca, mas tô me sentindo gostosa! Botei uma quatro meias-calças, uma por cima da outra, não aparece uma celulite”, confessa, querendo demonstrar que é verdadeira como pancake.
E, por falar em pancake, claro que, com esse domínio todo de cena, a cantora não ia se esquecer do público gay, presente em peso – tanto quanto as periguetes, os playsons, os grupos de pitboys, os adolescentes e crianças com famílias inteiras a tiracolo. Afinal, o público homossexual é responsável por ótima fatia do consumo e, no caso, não se fala aqui das esnobes bees-Félix que freqüentam o Casa Cor e circuitos gastronômicos, para quem ela não passa de um curioso amuse bouche, no máximo, mas daquela garotada que enfileira na estante os DVDS dos shows de Mariah, Alicia Keys, Britney Spears, Beyoncé, Rihanna, Shakira, Lady Gaga. Não há como se esquecer deles, dos mais sofisticados àqueles “pão com ovo”, todos com dindim potencial no bolso, ávidos pelo novo produto da cantora. Daí que ela emenda: “Ilumina as pessoas (pedindo para a equipe de luz). Que auê, heim, viado! Mona que é mona não deita!”
E esse cuidado não foi relegado pela artista nem na coreografia. No corpo de baile, com cerca de 28 bailarinos entre homens e mulheres, havia pelo menos um quarteto – com destaque – de rapazes mais efeminados, que privilegiava os estilos de street dance chamados stiletto e wacking, aqueles nos quais se dá muita pinta e que surgiram nas pistas de dança dos clubes americanos, onde a garotada imita uma postura feminina estilizada sem pudor. Surgidos da observação da forma como as divas se movimentam, fazem sucesso nas mídias sociais, tipo aqueles vídeos em que os fãs postam, dançando e imitando seus ídolos, como naquela interminável série de imitações de “Single Ladies”, de Beyoncé. No show, a coreógrafa Kátia Barros também segue a linha do pout-pourri de referências proposto pelo diretor e, em marcações bem executadas na vibe dos números musicais do Grammy, evoca desde a patroa de Jay-Z, passando pelas danças quebradinhas de Lady Gaga, gestos icônicos de Bob Fosse e até o groove de Mc Hammer (“U Can’t Touch This”) em uma colagem que funciona no palco, mas que não traz nada de novo no front. Os bailarinos, competentes, servem de moldura para Anitta, que tem bom domínio de palco e sabe dançar. Ele pode não estar no nível de uma Beyoncé ou Madonna, mas segura bem a coisa, sem precisar de coreografias fragmentadas como Lady Gaga para disfarçar deficiências. Não, a cantora brazuca manda bem naquilo que se propõe.
Fotos: Vinícius Pereira
Emoldurando a música, uma boa iluminação, bem tecnológica e cheia de efeitos, dando um colorido bonito ao conjunto, mas que podia ser menos escura, menos exagerada em estouros e sem contraluz que cegasse o público, possivelmente funcionando melhor para captura de vídeo do que para um show ao vivo. O palco ficava muitas vezes escuro e os bailarinos, que têm a função de compor um cenário em movimento, se mexendo por vezes na penumbra. E até a estrela, que precisava correr para lá e para cá para dar cabo do gigantismo do palco, também saía do destaque da luz outras vezes. Nada que não pudesse ser resolvido com um pouco mais de atenção e ensaio, mas inadmissível dentro do objetivo de comparar a artista aos melhores exemplos do show business internacional.
Por outro lado, a esplêndida cenografia de Zé Carratu talvez tenha sido a co-star do espetáculo junto com a estrela e certamente causará ótimo resultado no DVD que está por vir, amplificada pela grandiosidade do light design. O conteúdo visual segue o roteiro, uma viagem do inferno ao céu, alusão ao paraíso onde a artista pretende se fixar por toda a eternidade. Há enormes cortinas com efeito volumoso dado pela pintura de arte, palquinho semi-circular, maxi lustre de cristal (inspirado em “Corteo”, do Cirque de Soleil, em cartaz atualmente no Rio), gaiolas gigantes e cenários com tapadeiras móveis em 2D que se movimentam em rodízio – lembrando o período em que o teatro não dispunha da sofisticação atual, mas que acabou virando estilo artístico imortalizado por películas de sucesso, que retratam a carpintaria cênica dos bastidores nessa época, como “A Invenção de Hugo Cabret” (Hugo, de Martin Scorsese, 2011), “O Mundo Imaginário do Dr.Parnassus” (The Imaginarium of Doctor Parnassus, de Terry Gilliam, 2009) e “A Viagem do Capitão Tornado” (Il Viaggio de Capitan Fracassa, de Ettore Scola, 1990). Não se gastou pouco nesses recursos de impacto e teve até esteira rolante (que podia ter sido mais usada, de tão boa), tudo sublinhado pelos fabulosos vídeos projetados em três telões de LED no fundo, fundamentais para a proposta de cenário em camadas, de layers, como nos videoclipes.
Mas, se a cenografia era tão boa e a luz impressionante, apesar de certos problemas, o figurino deixou a desejar. Seria de se esperar que, em um show desse porte, o visual de uma diva seja, no mínimo, compatível com as maluquices geniais de Thierry Mugler para Beyoncé Knowles, Nicholas Formichetti para Lady Gaga ou Jean Paul Gaultier para Madonna. Na melhor hipótese, aqui foram funcionais, mas sem brilho, inclusive os cinco modelitos concebidos pela stylist Carola Chede para Anitta, incluindo um último demoníaco look cachorra-funkeira para a parte final, que só afasta a artista do objetivo de se tornar furacão de grandeza internacional. Isso sem falar na produção visual do corpo de baile, com 125 peças a cargo de Marcelo Cavalcante e Valeria Costa, mais apropriados para um show da Xuxa. Os dois pareceram mais preocupados em harmonizar as cabeleiras dos bailarinos no conjunto do que desenhar roupas de bom gosto. Sim, teve dançarina black power em louro escuro vermelho intenso, bad boy careca, meninos de topetinho preto azulado 1.7 e até garotão com corte tipo calopsita platinum blonde, verdadeiro catálogo de penteados do Werner com cartela de cores Cor & Ton, da Niely.
No mais, para justificar as trocas de figurino de Anitta e dos coristas, alguns buracos aconteceram no palco. Nada que não se resolva na edição do vídeo, mas é ruim para quem está presente na plateia. E inaceitável em um espetáculo de alguém que gostaria de ser a Madonna tupiniquim. Assim, apesar das boas ideias e da mão firme, Raoni Carneiro ainda precisa ajustar o show, caso seja viável viajar em turnê com todo esse circo. Além desses hiatos de timing mal resolvidos, há uns poucos elementos gratuitos que não fazem sentido no roteiro (ou que não são compreendidos pelo público), como os gigantescos ursinhos carinhosos que entram em uma coreografia. Para quê aquilo? Para atrair as crianças e pré-adolescentes que acham recursos tipo “Disney on Parade” fofinhos? Sim, é preciso rever esses detalhes sim, mas o mais importante é dar prosseguimento ao conceito desse “Fantástico Mundo de Anitta” que, depois de certo momento, acaba perdendo o fio da meada, quando tudo vira um pancadão geral, com direito a passinhos e dancinhas de almôndega. Engraçado? Sim. Pertinente no contexto? Sim. Tudo a ver com o estilo da menina? Também. Mas cadê aquela amarração inicial meio cinema, meio Cirque de Soleil? Até o bailarino Carlos Marcio Moreira, contratado para dar liga ao todo das cenas, em certo momento desaparece e deixa de ser aproveitado como alinhavo de tudo. Apesar disso, é louvável a iniciativa de oferecer aos fãs um produto desse porte com uma ascendente estrela nacional. E imprescindível não mencionar a escolha de Carneiro e dos diretores musicais Umberto Tavares e Maozinha em manter a integridade dos arranjos que o público conhece de cor e salteado, em hits como “Zen”, “Não Para”, “Menina Má” e “Show das Poderosas” ou no duo que a cantora faz com o rapper Projota,“Cobertor”, um delicioso momento-gracinha. Claro, o público sabe de cabeça todas as letras e, como reconhece as músicas logo de cara, fica feliz e se entrega total. Como dizia Michael Jackson: “É importante respeitar o público, que quer ouvir aquelas músicas que ele conhece do jeito que se acostumou.” Grande Michael, sabia de tudo.
Confira abaixo os famosos no evento. Fotos: Vinícius Pereira
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