Aline Calixto lança “Meu Ziriguidum” e, com samba no pé, exige mais liberdade: “Mulher não é objeto, não estamos aqui para seguir determinados padrões”


Em entrevista ao site HT, a cantora fala sobre feminismo, mergulhar de cabeça em um projeto independente, unir o sangue novo com a antiga geração do samba e a liberdade de expressão acima de tudo

“O corpo é seu, você usa o que quiser. Você vai aonde quiser, e anda com quem acha que tem a ver com você”. É assim que Aline Calixto explica, durante entrevista exclusiva ao HT, a força e o significado da música que dá título ao seu mais recente álbum, “Meu Ziriguidum”. No projeto, a cantora carioca radicada em Minas Gerais mergulha de cabeça em um processo criativo que, de acordo com a própria, proporciona “ao mesmo tempo, o frescor dos artistas jovens e o respaldo dos ícones”.

No álbum, Aline conta com colaborações que vão de Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz a Emicida e Tiago Delegado. Toda uma miscelânea de nomes que, como ela conta, “são extremamente profissionais e, ao mesmo tempo, amigos”, o que criou o clima perfeito para que ela se envolvesse 100% no trabalho, tirasse composições próprias do armário, unindo a experiência e a influência que seu nome adquiriu ao longo de seus dois primeiros discos.

A cantora, uma das grandes revelações do samba nos últimos anos, descreve o tal do ‘ziriguidum’ como “malemolência, suingue, brasilidade e atitude”. Mais do que isso, o ziriguidum de Aline Calixto é uma espécie de manifesto, que ela deixa claro na entrevista abaixo. Em um bate-papo descontraído, mas com fortes opiniões, a artista fala sobre combates aos preconceitos musical e religioso, à homofobia e, principalmente, ao machismo, do qual ela já foi vítima gritante, em episódio sobre o qual desabafa com HT.

Aline Calixto lança "Meu ziriguidum" com participações de novos e velhos artistas da cena musical brasileira (Foto: Henrique Gualdieri | Divulgação)

Aline Calixto lança “Meu ziriguidum” com participações de novos e velhos artistas da cena musical brasileira (Foto: Henrique Gualdieri | Divulgação)

HT: Esse é o seu terceiro álbum: com a experiência dos dois anteriores, o que mudou no processo de gravação e idealização do disco?

AC: O álbum “Meu ziriguidum” é, na minha visão, algo bem natural, porque parte de um processo que aconteceu com mais facilidade, principalmente no que diz respeito à parte artística. Fiz de forma bem consciente, e sim, foi mais difícil falando, porque um trabalho independente não é barato. Mas foi feito no tempo certo. Pensei em todos os detalhes com muito cuidado, da pré à pós-produção. Não que eu não tenha feito isso nos outros discos, mas, agora, o processo e o mergulho no dia a dia foram mais intensos. Me fizeram crescer como profissional e como pessoa. Quando pensei no que eu queria dentro desse trabalho novo, no samba, cheguei à conclusão de que seria muito interessante colocar duas linguagens e as referências de duas gerações. Colaborei com gente como o Paulão 7 Cordas, o Arlindo [Cruz], o Zeca [Pagodinho], além do Emicida e do Tiago Delegado. Eu tenho, ao mesmo tempo, o frescor dos artistas jovens e o respaldo dos ícones.


Aline Calixto – “Papo de samba”

HT: Como é mostrar seu lado compositora ao público? Dá um frio na barriga?

AC: Tudo precisa acontecer de forma bem natural. Não tenho a preocupação de ser cantora da minha própria obra, interpreto aquilo que tem a ver comigo, naquela hora. No caso, essa canção tem muito a ver: ela fala sobre fazer tudo como e da forma que eu quiser, com quem eu quiser. O disco todo, de cabo a rabo, eu fiz com pessoas que eu sempre quis muito trabalhar. Foi tudo escolhido com carinho e entre gente amiga, que quer colocar a sua parcela de fermento para ver o bolo crescer. E o melhor é que além de muito profissionais, todos são meus amigos. A energia é outra.

HT: Sempre compôs? Quando começou a escrever as próprias músicas e por que só liberá-las agora?

AC: Aos sete anos, eu comecei a escrever, mas nunca havia aprendido a tocar nenhum instrumento. Eu venho de uma família mais humilde. Então, tínhamos outras prioridades antes de pagar uma aula de violão ou piano, por exemplo. Hoje em dia, há muitas ONGs e projetos sociais com essa finalidade, mas eu só vim fazer isso mais tarde.

Aline Calixto: "Não tenho a preocupação de ser cantora da minha própria obra, interpreto aquilo que tem a ver comigo, naquela hora" (foto: Divulgação)

Aline Calixto: “Não tenho a preocupação de ser cantora da minha própria obra, interpreto aquilo que tem a ver comigo, naquela hora” (foto: Divulgação)

HT: A música “Meu Ziriguidum” fala de uma mulher que vai para o samba sozinha e se diverte sem precisar de ninguém. Você acha que rola preconceito com mulheres independentes assim ou que elas ainda são vistas com maus olhos?

AC: Essa música é uma parceria com o Gabriel Moura, e nós realmente pensamos muito nisso. Eu sou assim: sempre fiz as minhas coisas, independente de julgamentos ou imposições externas. Nos dias atuais, eu vejo que essa cobrança tem crescido muito. A mulher tem sido muito julgada, e isso está tomando uma dimensão bem complicada. É algo que não cabe mais na sociedade de hoje. O corpo é seu, você usa o que quiser. Você vai aonde quiser, e anda com quem você acha que tem a ver com você. Hoje, a gente tenta ser encaixado em padrões de limitações cada vez menores. A sociedade não comporta mais isso. Temos que ser nós mesmos. Eu pego meu ziriguidum e vou aonde quiser. Se optar ir a um baile funk, a um luau, um reggae ou um rap, é a sua liberdade, e que os outros respeitem a nossa escolha de ir e vir. Isso está mudando, graças a Deus, mas já passei por várias situações. Desde chegarem para mim e falarem que, em um evento, não é elegante mulher tomar uísque. Gente, é o que eu gosto! Quase não bebo e ainda vou ser tolhida?! Já fui para a academia, passei na rua e fui abordada da pior maneira possível: uma pessoa passou em cima de uma moto, esfregou a mão na minha perna e quase me derrubou! Eu fiquei espantadíssima. São esses fatos que a gente precisa falar. Mulher não é objeto, não estamos aqui para seguir determinados padrões. Assim como eu, muitas outras dão a cara. É importante mudarmos esse panorama. E a minha forma de levar isso é pela música: sou um instrumento de trabalho do que penso e sinto.

HT: Como vê o preconceito que o brasileiro tem com a própria música popular, como o funk, o pagode e o sertanejo? O samba costuma se dar melhor nessa situação, mas, ainda assim, já sofreu algo do tipo?

AC: A gente não precisa ter preconceito com gênero musical, isso é inaceitável. Devemos, sim, é respeitar, porque todos são manifestações da nossa cultura. ‘Ai, odeio funk, por isso ou aquilo’. Calma lá! Tem gente fazendo a música, compondo aquilo… é algo que vem das camadas mais populares, sim, mas tem de haver respeitado.

HT: Por sinal, como foi unir o samba com o rap do Emicida em “Contos de Areia”, da Clara Nunes? De onde veio essa ideia?

AC: Já participei de alguns shows dele e vice-versa, nós somos amigos e parceiros e eu sempre admirei muito o trabalho de Emicida. Ele se diferencia do resto, traz uma forma de falar do rap que é doce e forte ao mesmo tempo. É algo que chega e marca, e isso me encantou muito. Já a Clara [Nunes] é uma referência do nosso samba, de Minas Gerais. Vi que esse ano a morte dela completa 30 anos e conversei com ele sobre essa possibilidade de fazermos uma homenagem. Fiquei emocionada e muito feliz.

Capa do álbum "Meu Ziriguidum" (Foto: Reprodução)

Capa do álbum “Meu Ziriguidum” (Foto: Reprodução)

HT: Algumas músicas de “Meu ziriguidum” fazem referência às tradições da umbanda. Como você se sente quando vê que algumas religiões ainda sofrem tanta intolerância no Brasil?

HT: Esse é outro ponto do disco que eu sempre carreguei. As manifestações religiosas de origem africana estão ligadas diretamente ao samba. Eu não tratar disso na minha música é não fazer jus à história do gênero. É algo extra-religioso, são nossos valores culturais, e precisamos respeitar. Eu fiquei chocada de saber sobre esses eventos de preconceito. É inadmissível! É o mesmo que perseguir um espírita ou um evangélico. Não cabe! Cada um tem sua escolha e as pessoas precisam entender isso. No meu palco, contemplo tudo isso: trabalho com cantora homossexual, transgênero, heterossexual… e todo mundo toca em perfeita sintonia.

HT: Quem é o ícone na música brasileira que para você seria um sonho poder gravar uma colaboração?

AC: Beth Carvalho! Dessa galera toda, ela é talvez a que eu conheça há mais tempo. Somos amigas pessoais, então indiretamente eu acabo trabalhando muito com ela. Ouço conselhos, ela ouve minhas músicas… É uma grande madrinha, e não só do Zeca [Pagodinho] e do Arlindo [Cruz], mas do samba. A Beth é uma escola do gênero, você tem uma aula quando conversa com ela. Ser amiga de Beth é uma bênção, um prêmio. Ainda teremos esse momento de gravarmos juntas, e sinto que talvez será o momento mais especial da minha carreira.

HT: O que, do que é feito, e como é seu ziriguidum?

AC: É malemolência. É suingue, brasilidade e atitude. Quem tem ziriguidum, tem. E eu sei que todos têm, a gente só precisa se soltar (risos).