*Por João Ker
O Sonoridades, festival com curadoria de Nelson Motta que tomou conta do Oi Futuro Ipanema neste mês, fechou com chave de ouro nesta sexta-feira (28/11) e neste sábado (29/11) com Alice Caymmi, que subiu ao palco para apresentar seu segundo disco “Rainha dos Raios”, lotando a casa mesmo no primeiro dia, enquanto a chuva varre a Cidade Maravilhosa do lado de fora daquele espaço intimista. No espetáculo – sim, foi um espetáculo! -, Alice aparece com os cabelos platinados (tingidos especialmente para essa nova fase), um robe negro de renda transparente que deixa aparecer por baixo um collant cheio de brilho à la Beyoncé, combinado com um par de sapatos simulando os ossos dos pés, cílios postiços compridos e cor de rosa e um poderoso brinco de esmeraldas. Uma figura para lá de imponente – cercada por guitarras, bateria e um piano – que consegue dominar completamente a cena, com imersão total da atenção do público de idades misturadas. Ela abre o show com “Iansã”, faixa de Caetano Veloso e Gilberto Gil que dá nome ao álbum e, enquanto efeitos de luzes simulam os tais raios, a cantora parece se deliciar quando entoa versos como “eu sou o céu para suas tempestades”, fazendo passos envolventes e abrangentes, emendando outras duas músicas no mesmo fôlego.
“No sentido subjetivo da minha vida e da minha história, ser rainha é tomar o que é seu para si”, explica a cantora, neta de Dorival Caymmi e parte de uma família que dispensa apresentações. Talvez essa tomada de rédeas tenha algo a ver com o novo estilo e a nova pegada das músicas que Alice vem apresentando. Seu segundo álbum, sucessor do elogiado “Alice Caymmi”, traz uma diversidade de covers que vão de Maysa (“Meu Mundo Caiu”) a MC Marcinho (“Princesa”). No repertório do show, ela apresenta uma gama ainda maior de influências e novos arranjos musicais, incluindo um medley disco que mistura “Jogar Fora” (Sandra de Sá), “I Feel Love” (Donna Summer) e “Lay Your Love On Me” (Abba). A essa altura, o robe já foi posto de lado e ela assume a verve dançarina cômica, fazendo passos engraçados e balançando os cabelos de um lado para o outro. Figuraça!
“São músicas que eu fui catando no ar”, ela conta. “Não sou uma grande conhecedora, mas estou sempre muito atenta, pesquisando tudo o que aparece aqui e ali. Sempre encontro uma pérola ou outra que eu gosto. Fazendo isso, fui montando o espetáculo e o disco com essas colagens de referências. Por mais que pareça uma colcha de retalhos, há um fio condutor ali que une todas as músicas. É um todo harmônico e emocional que fala de temas importantes, como o sofrimento, a perda, o amor e tudo de intenso que existe”, explica a mulher que cresceu ouvindo sons variadíssimos, desde Tom Jobim até o pianista francês Michel Legrand, mas também Billie Holliday, Quincy Jones e a trilha sonora do musical “West Side Story”.
Aliás, o novo disco apresenta um pouquinho da pegada eletrônica que ela mostra no palco, fruto da produção de Diogo Strausz. Sobre esse novo rumo musical, ela diz: “A minha voz mudou, minha maneira de cantar mudou e o modo como eu interpreto as letras e poesias também. Esse não é um disco completamente autoral, o que cria um gap muito grande entre este e o anterior. Eu gosto de mudar completamente, em qualquer aspecto da minha vida. Adoro mudanças bruscas, rápidas e fortes”.
Há apenas duas músicas autorais em “Rainha dos Raios”: “Antes de Tudo“ e “Meu Recado”, parceria com Michael Sullivan, que a acompanha no show de sábado. “Sempre o admirei de longe, até o dia em que ele me convidou para gravarmos juntos “Abandonada” e me largou solta no estúdio com meu guitarrista. Ele me deu total liberdade e essa acabou sendo a faixa do álbum que ganhou mais destaque entre a crítica”, comenta a cantora, explicando como conheceu o músico e como se deu a parceria. Na sexta, ela foi acompanhada por Hélio Flanders (vocalista do Vanguart) ao piano. Juntos, cantaram “Take Care”, música de Gill Scott regravada por Drake e Rihanna; e “Feelings”, clássico de Morris Albert. A sintonia dos dois é algo espantoso de se observar: enquanto ela interpreta as canções à beira das lágrimas, ele consegue fazer com que o piano não se sobreponha, mas ao mesmo tempo ganhe destaque, enquanto ambas as vozes se casam delicadamente. “Nós nos apresentamos antes em São Paulo, na Casa de Francisca, em um show intimista. É sempre divertido e um prazer subir ao palco com ela”, comenta o cantor.
Hélio Flanders e Alice Caymi cantam “Feelings” na Casa Francisca
Sua formação em artes cênicas pela PUC colabora no sentido da dramaticidade que Alice Caymmi apresenta durante todo o espetáculo, indo bem da euforia (em músicas como “Jogar Fora“) à teatralidade da atualmente onipresente “Bang Bang” (sucesso de Nancy Sinatra, regravado por muitos vozeirões, inclusive Cher) e ainda englobando certo quê de rebeldia em hits como “Meu Mundo Caiu”.
Isso também transparece em seu figurino que, apesar de ela dizer que não é muito premeditado, mostra uma identidade e um estilo únicos que são puro deleite para o público e ajuda a compor toda a aura do show. “Eu sou muito ligada à moda, mas de uma maneira muito lúdica. Pesquiso do meu jeito, olhando as semanas de moda daqui e lá de fora, acompanhando o que meus estilistas preferidos fazem de estação para estação” , conta animada. “Eu faço isso, mas acaba tendo o frescor do amadorismo que eu adoro, porque não sei o que é bom ou ruim. Compro uma peça porque gosto dela e é assim que combino as coisas. Às vezes saio na rua, vejo as pessoas me olhando estranho e penso ‘será que eu estou suja?’. Depois olho meu reflexo e vejo que não tem nada fazendo sentido! Sou maluca, mas adoro errar”, vai falando de maneira rápida, mostrando que a simpatia e o bom humor não estão apenas naquela persona do palco.
Apesar de ter se aprofundado e se expandido agora no mundo dos covers, Alice não é nenhuma novata neste artifício artístico. Prova disso é sua regravação para “Unravel”, música de Björk que foi elogiada pela própria, que disse: “Não é possível fazer algo melhor do que esse cover de Alice Caymmi”, postou a islandesa no Facebook, em janeiro deste ano. “Ela é uma maluca! Ela ouve as coisas todas e acaba postando, mas no meu caso ela chegou a elogiar. E não tem nem um arranjo muito original, então eu acho que ela gostou mesmo dos meus vocais… É difícil você ver uma cantora elogiando outra, mas ela já está tão bem estabelecida nesse patamar de semi-entidade que ela pode fazer o que quiser”.
Alice Caymmi – “Unravel” (Björk Cover)
“Rainha dos Raios” está completamente disponível para streaming no SoundCloud. Alice comenta sobre essa batalha eterna que artistas e executivos da indústria fonográfica travam quanto à valorização da música e o acesso à mesma. “Cara, eu odeio essa briga porque acho que os dois lados ficam muito malucos. Os radicais do preço autoral impedem que a obra seja revista, o que é uma sacanagem. A gente também não pode deixar de perceber as grandes empresas que querem lucrar com isso tudo. A questão é que o dinheiro é movimentado e passa por algum lugar. Se não passa pela mão do artista, é uma sacanagem também, porque alguém sempre está lucrando com isso”, opina. Sobre seu caso específico, Alice é categórica: “A minha geração não pode lançar música por gravadora, é o maior assassinato que existe. Porque assim não vai dar certo, ninguém vai ouvir! Os críticos vão receber o disco, escutar, lançar uma notinha e um abraço! É por isso que eu e a Jóia Moderna (selo responsável pela distribuição do álbum, criado pelo DJ Zé Pedro, amigo da cantora), estamos fazendo toda a estratégia de divulgação online”, finaliza a Rainha dos Raios, ciente de seus limites e dos rumos que quer tomar para sua carreira.
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