*Por Simone Gondim
A transmissão começa. De costas, Adriana Calcanhotto dá os últimos retoques na maquiagem e no cabelo. Toca o sinal, a artista se levanta e caminha para o palco. Apenas o som de seus passos ecoa no Teatro Riachuelo praticamente vazio. Ela se aproxima do microfone e recita versos de Haroldo de Campos, publicados no livro “Entremilênios”: “A musa não se medusa. Contra o caos, faz música”. Assim começa o que Adriana chama de a menor turnê do mundo, batizada de “Um show só”. O nome, além de uma alusão ao disco “Só”, composto, gravado e lançado durante o isolamento social imposto pela pandemia causada pelo novo coronavírus, faz uma brincadeira com o fato de trazer a estrela sozinha no palco, em única apresentação.
Além de guitarras e violões, Adriana usa a MPC, um misto de bateria eletrônica e gravador bastante comum no hip-hop e alçada a instrumento primeiro pelos DJs de funk, depois por outros artistas. Como complemento, a máquina de escrever, que também aparece na capa de “Só”, é transformada em percussão em canções como “O que temos”, que já fazia referência ao momento político no Brasil ao trazer o som de panelas no álbum. Ao fim da canção, Adriana faz seu protesto musical batendo panelas com uma colher de pau.
Diferentemente de outras lives que parecem intermináveis, o show de Adriana é na medida certa para não cansar a audiência – tem cerca de uma hora e dez minutos, deixando o público com a sensação de que o tempo passou voando. Outro diferencial foi a cobrança de ingresso, com os pagantes recebendo um link para ser acessado na hora do show. Mas nem tudo saiu conforme o planejado – muita gente teve problemas para entrar no site, o que obrigou os organizadores a deixarem o espetáculo disponível por mais tempo na plataforma. Melhor para os fãs, que puderam ver e rever “Um show só”.
A ordem das músicas é praticamente a mesma de “Só”. Em “Ninguém na rua”, que também abre o disco, Adriana usa a MPC para a parte instrumental e três microfones com ajustes diferentes para a voz. Em “Era só”, a artista explora o palco e brinca com o longo fio do microfone escolhido para a canção, sempre acompanhada pelas câmeras que registram o show. Lá pela metade de “Eu vi você sambar”, ela coloca um chapéu de comandante da Marinha, marcando posição como a capitã dessa viagem musical, e pega uma guitarra para os acordes finais. Já para a crítica de “Sol quadrado”, surge em cena uma bandeira do Brasil com um buraco no lugar do círculo azul que traz a faixa com o lema “Ordem e progresso”.
No repertório, além das nove canções de “Só”, três surpresas: uma versão voz e violão para “Rosa dos ventos”, de Chico Buarque, e duas inéditas da artista, “Dois de junho” e “Tudo igual”. Antes de tocar “Dois de junho”, Adriana explicou que se tratava de uma data para não esquecer, por conta da morte do menino Miguel Otávio, de 5 anos, filho da empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza. Miguel morreu ao cair do nono andar de um prédio de luxo no Recife, graças à negligência de Sari Corte Real, patroa da mãe da criança. “Levei o mês de agosto fazendo essa canção. Foi muito difícil. Nunca uma canção foi tão dura de ser feita. Nunca tive esse tipo de emoções, sentimentos, fazendo uma canção. Ao mesmo tempo, não consegui não fazê-la”, explica a cantora e compositora, nitidamente abalada. “É uma data a não se esquecer”, acrescenta.
Além de abrir espaço a críticas sociais e políticas, o espetáculo dirigido por Murilo Alvesso também se preocupa com a inclusão: o tempo todo, vemos a intérprete de libras Maura Guimarães fazendo seu trabalho, no canto inferior direito da tela. Os técnicos de Adriana Calcanhotto são homenageados em “Lembrando da estrada”, cujos direitos autorais foram doados para essa equipe, que perdeu rendimentos com a paralisação das atividades da área cultural, por causa dos riscos relacionados à Covid-19. “Escrevi a música me dando conta de como eu senti falta da estrada. Quero agradecer a todo mundo, no mundo todo, que está assistindo, e sobretudo à minha equipe idolatrada, salve, salve. Fiz essa canção pensando nos bastidores, uma coisa que eu adoro”, conta a artista.
O amor por Portugal está presente na faixa “Corre o Munda”, que fala do Rio Mondego, que corta a cidade de Coimbra, onde Adriana tem dado aulas na universidade local como professora convidada. Para o show, a canção recebeu o toque da guitarra portuguesa de Carlos Paredes, com o sample de “Balada de Coimbra”. É nítida a satisfação da artista ao ouvir os belos acordes de Paredes, que deixaram a música ainda melhor. Antes de cantar, Adriana pede licença para ler um soneto de Luís de Camões.
No bis, o sucesso “Esquadros” é tocado no violão que pertenceu a Orlando Silva, presente de Andrea Franco, atual empresária de Adriana e sobrinha do Cantor das Multidões. A história de como o instrumento chegou às mãos da artista é deliciosa e tem todos os elementos para deixar os fãs encantados. Na segunda música, “Vambora”, a artista se dirige ao público que está em casa e pede para que todos cantem com ela. Para fechar o espetáculo, a inédita “Tudo igual”, tocada na guitarra, é dedicada à plateia. “Escrevi essa canção para cada você de vocês que estão aí e, portanto, estão aqui. É para nós”, diz Adriana.
A apresentação chega ao fim sem o tradicional som de aplausos, com a artista jogando confetes no palco e fazendo mesuras em agradecimento, ao som da base de “Lembrando da estrada”. Após dizer boa noite, ela caminha para os bastidores, fechando as portas assim que se despede pela última vez. Os créditos aparecem e ficamos com a certeza de levarmos Adriana cá no coração.
O setlist de “Um show só”:
1. Ninguém na rua
2. Era só
3. Eu vi você sambar
4. O que temos
5. Sol quadrado
6. Rosa dos ventos (Chico Buarque)
7. Tive notícias
8. Dois de junho
9. Lembrando da estrada
10. Corre o munda
11. Bunda lê lê
Bis:
12. Esquadros
13. Vambora
14. Tudo igual
Artigos relacionados