“A indústria fonográfica e diversos diretores tentaram me corromper, mas jamais aceitei”, diz Laura Finocchiaro


Pioneira na produção musical para reality shows, a cantora, guitarrista e compositora gaúcha prepara um novo álbum, com faixas inspiradas no momento político e social do Brasil. Fazem parte do disco os singles “Asfixia”, que reflete a insegurança dos tempos de Covid-19, e “A vagar”, cuja letra é uma das últimas poesias de Jorge Salomão, morto em março de 2020. Ela ainda fala sobre a atual cultura do cancelamento nas redes sociais: “Odiar sempre foi um péssimo negócio. O cancelamento mostra o que a sociedade sempre foi: preconceituosa, tendenciosa e covarde, necessita operar por meio de “bolhas” específicas para sobreviver”

*Por Simone Gondim

Em meio à pandemia causada pelo novo coronavírus, a gaúcha Laura Finocchiaro viu seu processo criativo ficar mais intenso e prepara, sozinha, um novo álbum, com canções inspiradas no momento político e social do Brasil. Antes mesmo de a Covid-19 chegar em território nacional, a cantora, guitarrista e compositora já tinha planos para um disco, que seria produzido apenas por ela. “Além do aspecto financeiro, percebi a necessidade de afirmar a posição da mulher que assina a composição e os arranjos, grava os instrumentos e assume uma produção musical, para desafiar nosso mercado fonográfico extremamente machista e preconceituoso”, explica. “Quero mostrar que uma mulher, assumidamente bissexual e com mais de 50 anos, não só pode, como deve seguir na atividade artística e profissional”, acrescenta.

(Foto: Reprodução Instagram)

Previsto para 2021, o álbum independente, cujo nome é guardado a sete chaves, terá distribuição virtual e vai sair pelo selo de Laura, Sorte Produções. Serão dois volumes, com um total de 20 músicas – 16 inéditas e quatro repaginadas. Dois singles já estão prontos e podem ser encontrados nas plataformas digitais: “Asfixia”, poesia do cearense Flávio Paiva, musicada por Laura, e “A vagar”, parceria da artista com o poeta Jorge Salomão, morto em março de 2020. “Concebi o arranjo, escrevi a partitura e gravei os instrumentos de ‘Asfixia’ em meu home studio. Essa música faz parte de um projeto que reúne trabalhos produzidos durante a quarentena e traduz o que estávamos passando: a falta de ar, a solidão, o medo, a insegurança, as sombras, as máscaras”, conta.

No caso de “A vagar”, um dos últimos poemas de Jorge Salomão, a letra chegou por e-mail, em novembro de 2019. “Fiquei hipnotizada pela história apresentada, mas inicialmente achei que fosse impossível musicar. Em dezembro, reli os versos e decidi tentar. Pensei: se conseguir, terei feito meu mestrado em música”, recorda Laura. “Virou um rock eletrônico, uma pancada embalada. Ao final, batizei de ‘A vagar’. Tive a chance de mostrar ao Jorge a demo da música e ele aprovou na hora, embora já estivesse internado”, diz a artista. “Mas ele não ouviu o single mixado. Quando cheguei no hospital com a mix final de nossa parceria, Jorge já havia partido”, lamenta.

A amizade entre os dois começou em 2015, assim que Laura chegou ao Rio de Janeiro. Quem os apresentou foi o jornalista e poeta Christovam de Chevalier, que também virou parceiro musical da gaúcha. “Os dois poetas são o maior presente que recebi desde que me instalei nessa cidade maravilhosa. Fiquei encantada com a pessoa generosa, irônica, inteligente e vivaz que era esse eterno menino Jorge. A gente se encontrava ao menos uma vez por mês. A presença dele em meus shows era sempre motivo de festa”, comenta.

Laura musicou outros dois poemas de Jorge Salomão, “Olhos fechados” e “Cabeça divina”. “Como amiga, estive ao lado de Jorge até seu último suspiro. Mesmo em um momento de dor, ele conseguiu ser irônico, brincalhão e carinhoso”, afirma. “Jorge ainda vibra dentro de mim. Enquanto a Deusa Música permitir, seguirei cantando nossas parcerias e mantendo viva a poesia dele”, garante.

Para manter a sanidade em época de pandemia e isolamento social, a artista recorre à música, ao afeto, à atividade física e ao processo criativo. “Em nenhum momento pirei, mas é claro que tive pesadelos e estou sofrendo ao constatar as mais de 150 mil mortes por coronavírus no Brasil e milhões de vidas perdidas no mundo inteiro. Com nosso país desgovernado, o mapa da fome está ampliado. Milhões de desempregados e o sistema afunilando e explorando cada vez mais o trabalhador, o prestador de serviço, o artista. Um desastre humano absoluto”, constata. “Como estou no processo de gravar e produzir o novo disco, ficar em casa tem sido algo produtivo e necessário. Sinto falta de ver os amigos, mas falo ao telefone e isso vai aplacando esta necessidade”, reconhece. “Na verdade, me sinto privilegiada, porque tenho um grande e verdadeiro amor ao meu lado, todos os dias, e posso dizer que a yoga, as técnicas respiratórias e a capoeira me dão suporte para resistir e enfrentar esse momento impensável em que a humanidade se depara com o resultado de sua ganância”, conclui.

(Foto: Reprodução Instagram)

Por falar em falhas da humanidade, Laura critica os haters e não concorda com a cultura do cancelamento que vem dominando as redes sociais. “Odiar sempre foi um péssimo negócio. O cancelamento mostra o que a sociedade sempre foi: preconceituosa, tendenciosa e covarde, necessita operar por meio de “bolhas” específicas para sobreviver. Julgar alguém é sempre a pior atitude de um ser humano. Se achar no direito de ‘cancelar’ alguém pelo o que fez ou disse, por pior que seja, me parece uma regressão. Um ato desumano, que não melhora nem une a sociedade. Ao contrário, segrega”, enfatiza.

Defensora das causas LGBT e engajada em várias lutas sociais, a artista não se deixa abalar diante do preconceito. “Qual mulher no Brasil não sofre preconceito? E se ela decidir ser guitarrista, cantora, compositora e independente de qualquer tipo de empresa autoritária ou empresário mercenário? E se for assumidamente bissexual e viver amores lésbicos desde os 17 anos? É claro que sofro preconceito, todos os dias. Porém, inverto o lado da moeda e me fortaleço com a luta diária, me torno mais livre, convicta, ética, humana e irreverente”, assegura. “O preconceito em relação à AIDS – doença que levou minha irmã mais velha, a roqueira Lory F., no ano de 1993 – me fez buscar novos caminhos, convivendo com pessoas sinceras e livres, que respeitam as diferenças”, ressalta.

A amizade com o poeta Jorge Salomão rendeu músicas como “A vagar” (Foto: Reprodução Instagram)

Pioneira na produção musical para reality shows, Laura trabalhou durante oito anos no SBT, onde começou na “Casa dos artistas” e depois passou para outros programas do gênero, chegando a diretora musical da emissora. Ainda como funcionária de Silvio Santos, ela assinou a trilha de “Revelação”, primeira novela de Íris Abravanel, em 2008. De 2009 a 2014, ela foi contratada pela TV Record para ser produtora musical de “A fazenda”.

Todos esses trabalhos na televisão são motivo de satisfação para a artista. “Acabei promovendo e lançando diversos artistas e grupos, que ganharam voz e vez a partir desses programas. Colocava todos no ar apenas pela qualidade, sem ganhar nada em troca a não ser meu salário”, lembra. “A indústria fonográfica e diversos diretores tentaram me corromper, me comprar para que eu tocasse o que eles lançavam, mas jamais aceitei”, revela. “Resisti com profissionalismo e absoluta ética. Essa atitude me fortaleceu interna e externamente, foi uma experiência grandiosa perceber que tenho fibra e meus valores são sólidos”, orgulha-se.

(Foto: Reprodução Instagram)

Além de cantora e compositora, Laura é arranjadora, instrumentista e tem conhecimento técnico em áudio. Isso facilita uma outra vertente de seu trabalho, a criação de trilhas sonoras. Responsável pela escolha das músicas de filmes, documentários, peças de teatro e desfiles de moda, por exemplo, ela ainda fez canções para o programa infantil “TV Colosso”, exibido pela TV Globo de 1993 a 1997. “Na ‘TV Colosso’, trabalhei ao lado de Leca Machado, uma grande poeta e redatora. Como também sou arte-educadora, nunca parei de compor para crianças”, observa.

A formação de Laura Finocchiaro ultrapassa a música. “Fiz faculdade de Educação Física, estudei yoga, expressão corporal, dança, capoeira e depois cursei a faculdade de Licenciatura em Música, além da minha experiência desenvolvida nos palcos e estúdios, como artista”, ressalta. “Meu primeiro trabalho como arte-educadora foi dentro de um hospício em Porto Alegre, minha cidade natal, desenvolvendo recreação para crianças em tratamento. Depois, dei aulas de canto, capoeira, música, violão e criatividade em escolas particulares e em minha própria casa”, descreve. “Durante dois anos fui contratada pela ONG Arte Despertar, de São Paulo, e cantei em hospitais para crianças cardíacas e pacientes de câncer. Na época da licenciatura em música, tive a oportunidade de criar oficinas musicais em asilos e para pacientes cegos. Todas essas experiências me mostraram o poder transformador da música e do afeto”, completa.

(Foto: Reprodução Instagram)