SPFW inverno 2014 day #4: entre o lirismo de Ronaldo Fraga e o delírio de Lino Villaventura, Gisele Bundchen mostra seu domínio


Em dia onde predominou a moda autoral, a modernidade de Pedro Lourenço e Gloria Coelho dividiu a cena com o estilo comercial da Colcci e a juventude da Pat Pat’s

A maratona de desfiles do quarto dia da São Paulo Fashion Week começou cedo, na quinta-feira, com o exclusivo show de Pedro Lourenço, que retornou ao line up da semana de moda paulistana após certo tempo desfilando somente em Paris. Dessa vez, o jovem designer transpôs para sua leitura contemporânea a figura de Carmen Miranda, não pelo viés da releitura retrô, mas devidamente inserida no vocabulário tecnológico e atemporal do estilista. Dessa forma, Pedro criou silhuetas retas suaves que resultam em imagens delicadas, em cores claras levemente pontuadas por preto, distantes do imaginário arquetípico da baiana, brilhantemente interpretada pelas basques na cintura ou as saias lápis midi. Sempre vale lembrar que a Carmen da vida real é chiquerésima e nada tinha a ver com a figura arquetípica da baiana cheia de badulaques que ela usava em filmes e shows, personagem criado para um espetáculo em meados dos anos 1930 e que, de tão certo, acabou sendo adotado pela estrela como imagem na vida artística. Basta ver seu figurino na série de retratos de viagem que ela tirou por ocasião das inúmeras idas a Buenos Aires, antes de explodir em antológico musical na Broadway, em 1939.  Voltando ao desfile, o trabalho de Pedro foge do óbvio e, de imediato,  não lembra Carmen, mas, sob um olhar atento, é impossível não perceber a brazilian bombshell presente. incrível! E, no mais, é importante reforçar a escolha (e o apreço!) do estilista pelo uso de técnicas do passado através do manancial tecnológico atual.

Fotos: Agência Fotosite

Em seguida, a Pat Pat’s, marca jovem de Patrícia Viera estreou no evento e soube fazer bonito. A grife fica sob responsabilidade de Andréa, filha de Patricia, que tem seguido o caminho das pedras da mãe direitinho, como manda o figurino. Como a marca conversa com o público mais jovem, os comprimentos foram curtos, fugindo da hegemonia midi presente na maioria das coleções desta temporada. Tubinhos, shortinhos e saias bem curtinhas contracenam com camisetas com prints de bandas de rock, mangas longas desfiadas no estilo destroy, estampas corridas de cobra, jaquetas, franjas e calças em couro metalizado, assumindo a vocação grunge-rocker da marca.

Fotos: Agência Fotosite

Assim como o filho, Pedro Lourenço, Gloria Coelho foi outra que voltou ao line up do evento, já que pulou a edição passada. É sempre um grato prazer ver o trabalho de Gloria na passarela. É possível comparar sua obra com a de cineastas como Roman Polanski, Quentin Tarantino ou Stanley Kubrick: mesmo em uma temporada em que ela não faça algo absolutamente novo, ainda assim o resultado é imensamente superior à média, o que, por si só, já vale a entrada. Dessa vez, claro, ela manteve a pegada de sempre com referências dos  anos 1960/80, geometrias, grafismos, recortes e espírito mod. Mas, mesmo sendo fascinada por esses aspectos da moda, ela sempre encontra uma forma de, sem abrir mão de sua forte identidade, inventar uma abordagem diferente, ainda que, no fundo, tudo seja exatamente mais do mesmo. E por que não, não é mesmo? Estilo não é eterno? E estilo Gloria tem de sobra. Agora, em uma coleção onde a base do styling é um legging – ítem essencial nesta temporada -, ela sobrepôs peças com talho futurista como vestidos, blusas, casacos e ainda  trouxe o vocabulário esportivo da vez, com  tricôs em shape casulo, malha mescla, jogos de preto, grafite e cinza.

Fotos: Agência Fotosite

No clássico de Homero, A Ilíada, o argumento central parte do princípio que o deus Apolo, ao conceder o dom de profecia à princesa Cassandra, impôs uma única condição: a de que ninguém jamais acreditasse nela. A partir daí, deu no que deu. Os gregos invadiram Tróia para resgatar Helena, a cidade foi dizimada e aqueles que sobreviveram foram vendidos como escravos. É possível perceber uma relação estreita entre o contexto dessa heroína trágica e a obra de Ronaldo Fraga. Assim como os troianos estavam incrédulos em relação às profecias vaticinadas por Cassandra, muitas vezes o público e a imprensa duvidam de Ronaldo. Não de seu talento, inquestionável, ou da sua capacidade de fazer e poesia em coleções e desfiles. O estilista é, de fato, um artista e ninguém é louco de negar isso, nem os internos da Colônia Juliano Moreira, no Rio. A semelhança entre a troiana e Ronaldo se dá pelo fato de que, quando ele desfila suas peças, muitas vezes a crítica não acredita no potencial de venda, assim como ninguém levava as previsões de Cassandra a sério. Sem dúvida, é difícil vender roupas que primam por um trabalho de pesquisa seríssimo, mas pouco sensual, em um país onde as consumidoras privilegiam o bate-cabelo. Ronaldo apresentou, neste último desfile, saias mais compridas que as midi – muitas longuetes e algumas longas –  e passou longe de fendas reveladoras de coxas e panturrilhas. Ou de decotes de Jayne Mansfield ou Dolly Parton.  Quando a inteligentsia da moda resolve estabelecer que, por vivermos em um Brasil onde os arroubos da sensualidade imperam e que, por isso, um estilista que não entra nesse jogo não é comercial, ela acaba contribuindo pelo nivelamento medíocre da criação, amputando o exercício estilístico. Quando Ronaldo ignora este tipo de análise e insiste em fazer o seu trabalho bem feito, ele ganha a moda de goleada , mas também se aproxima de Cassandra que, à despeito dos incrédulos, é outra que nunca abriu mão daquilo precisava ser feito. Ainda bem que temos gente como Ronaldo, que transforma roupa em arte.

Dessa vez, ele bebeu novamente na moringa de barro literária de Mario de Andrade, que já havia inspirado Ronaldo em uma coleção sobre suas viagens à Amazônia. Agora, foi a aridez da caatinga nordestina que norteou seu trabalho, a partir da observação da obra do escritor. No resultado, o solo nada frutífero desse Nordeste acabou possibilitando que a cabecinha fértil do estilista desenhasse uma de suas coleções mais bonitas. As Maria Bonitas e outras bravas mulheres dignas de envergar a peixeira de Ronaldo na cintura, surgiram na passarela como sobreviventes de um ambiente inóspito, assim como Ronaldo sobrevive em terreno agressivo tendo o fast fashion – e a moda fácil, de decotes fartos, pernas à mostra e cabelos de perua – como vizinho. Ou como Cassandra que, apesar do fim ingrato de Tróia, também resistiu ao fim. A coleção, entre algumas sacações geniais, emocionou com prints étnicos sobre aquele tecido de saco de aniagem, combinadas com couros ecológicos em trabalho e gamas surpreendentes. Além disso, o fato de misturar na mesma peça – ou no mesmo look – o mix de estampas no tal tecido com cara de saco de batata e em delicadas sedas e organzas é absolutamente lindo, conferindo riqueza de texturas. E, no styling, as montagens aproximaram o visual final do Oriente que está na moda, sem perder a leitura nordestina, com direito até a cintos e faixas que lembram obis japoneses.

Somente uma ressalva: em uma época em que a crise financeira gera contenção de despesas e os desfiles pasteurizam a cenografia, é sempre bom ver que Ronaldo nunca abre mão de cenários lindos, que situam muito bem a coleção. O cenário desta vez foi absurdo!  Mas é preciso repensar a iluminação. Apesar de teatralmente bela, ela prejudicou o registro fotográfico e até a percepção, em vários momentos, desse mix de prints e texturas, alterando também as cores  de forma significativa. Que o resultado é belo para quem estava vendo o desfile ao vivo, okay. Mas nunca podemos esquecer que a grande maioria do público – e dos consumidores – travará conhecimento com a arte de Ronaldo através do registro jornalístico, seja através de vídeos ou fotografias. Minha experiência anterior em direção de arte e produção de espetáculos de dança me permite clara noção de que a luz que funciona para um balé, ópera ou peça de teatro, por mais linda que possa ser in loco, nem sempre é adequada para a cobertura de um desfile. Esse assunto precisa ser repensado pelo designer em seu próximo show.

Fotos: Vinícius Pereira

Em seguida, Lino Villaventura proporcionou um misto de experiência sensorial daquelas que se leva para o resto da vida. Como a história de Lino – e suas coleções, seus shows – merecem uma análise á parte, optamos por escrever uma matéria em seaprado. Confira tudo na seção Gente.

https://heloisatolipan.com.br/gente/lino-villaventura-tapa-cara-fast-fashion/

No final da noite, a Colcci trouxe um presente para o público: o retorno de Gisele Bundchen às passarelas e à marca. Naturalmente, a estratégia de trazer a ubber model de volta (model não, celebrity!) é louvável, além de flecha certeira no alvo da visibilidade. Mas, com todo o furor que a modelo ainda causa na plateia, com direito a gritos de fãs enlouquecidos e clicks intermináveis de celulares que até prejudicam o trabalho dos fotógrafos escalados para cobrir o evento, é importante ressaltar que, dentro da proposta comercial da grife, a coleção disse a que veio. Desenhados por Adriana Zucco e Jeziel Moraes, com o stylist Daniel Ueda atuando dentro de sua zona de segurança mais confortável, os looks apresentados transitaram pelo college, o rocker e o grunge com ótimo resultado de sobreposições e presença destacada de grafismos – sobretudo xadrezes inspiradíssimos, inclusive tartans e pied-de-poule -, mix de texturas e padronagens, muito moletom e nylon, tudo em levada bem esportiva. E, claro, como a pegada é comercial e o público, jovem, é bom esquecer de que a onda agora é o comprimento midi e continuar investindo nos curtinhos. Bem bonita, só não vende se o mundo acabar antes de a coleção chegar às lojas.

Fotos: Vinícius Pereira