SENAI CETIQT: A partir da Semana de Moda de NY, um olhar para o upcycling no nosso país resgatando live sobre case


Decidi escrever sobre a live “Estratégias e práticas de upcycling para a moda” por ser totalmente atemporal e em sinergia com o tema que resolvi abordar. Ela mostrou a expertise da designer Agustina Comas enfatizando que sua proposta é “criar a partir do que já existe no mundo tão cheio de coisas, mantendo a moda e o design fluindo numa indústria ética e responsável e ainda vestindo as pessoas com o que só é possível com o upcycling, porque o processo em si traz resultados ímpares”. Agustina desenvolve há 15 anos design e moda implementando upcycling industrial na cadeia de moda no Brasil

A Semana de Moda de Nova York, encerrada no dia 13, lançou luz para o lançamento de 70 coleções. Vimos o retorno da Ralph Lauren depois de quatro anos; da Helmut Lang, com Peter Do na direção criativa assumida no início do ano, a onipresença de marcas como Carolina Herrera, Michael Kors… Entre os desfiles do line up oficial e as apresentações paralelas para o Verão 24, a ênfase ao quiet luxury minimalista continua firme e forte, assim como as marcas têm buscado soluções sustentáveis em toda a sua cadeia produtiva para atender a um consumidor cada vez mais consciente e que quer respostas para “quem faz a minha roupa?”, “de onde vem a minha roupa?, “a empresa é voltada para a circularidade de suas produções de peças?”. O que também chamou a minha atenção nesta edição foi o upcycling tanto no street style como nos eventos paralelos. E mais: no backstage foi bonito de ver make up artists lançando mão de cosméticos de empresas que têm apostado no upcycling beauty como tônica – movimento que consiste no reaproveitamento de insumos que seriam descartados de diversos segmentos para utilizá-los com motivos nobres, aumentando seus ciclos de vida.

Esta é a moda disruptiva, provocando uma mudança na forma de conceber e consumir. O foco é mudar o mindset e olhar para o reverberar de vozes sobre economia circular, zero waste, sustentabilidade + consumo consciente, identidade, upcycling, ressignificando uma produção. Lembrei de ter acompanhado uma série de lives do SENAI CETIQT, promovida como parte integrante do Projeto Moda Circular: O Início de Um Novo Ciclo para a Indústria da Moda, realizado com a Laudes Foundation, e algumas delas abordavam o criar, renovar e ressignificar peças e materiais, com a pegada da sustentabilidade e chancela do upcycling. A proposta se baseia em dar nova vida a produtos que seriam descartados, sejam roupas ou sobras da indústria têxtil, diminuindo tanto a quantidade de resíduos lançados no planeta quanto a necessidade de produzir matéria-prima.

Você que está sempre aqui comigo no site deve ter visto as várias reportagens sobre o projeto. Mas, hoje, decidi escrever sobre a live “Estratégias e práticas de upcycling para a moda” por ser totalmente atemporal e em sinergia com o tema que resolvi abordar. Ela mostrou a expertise da designer Agustina Comas enfatizando que sua proposta é “criar a partir do que já existe no mundo tão cheio de coisas, mantendo a moda e o design fluindo numa indústria ética e responsável e ainda vestindo as pessoas com o que só é possível com o upcycling, porque o processo em si traz resultados ímpares”. Agustina desenvolve há 15 anos design e moda implementando upcycling industrial na cadeia de moda no Brasil.

Agustina Comas: desde 2008 implementando o upcycling na cadeia de moda do Brasil (Foto: Reprodução/Instagram)

A uruguaia Agustina Comas formou-se em Desenho Industrial, Têxtil e Moda pelo Centro de Desenho Industrial do Uruguai e mudou-se para São Paulo em 2004. Ela vem trabalhando com upcycling desde 2008, pesquisando novas formas de desenhar e desenvolver produtos de moda a partir de materiais já existentes, roupas prontas e resíduos de produção. É fundadora da Comas, empresa que nasceu como marca de roupas e hoje também é uma plataforma de divulgação do sistema de trabalho que a estilista desenvolveu, o Sistema Comas de Upcycling Raiz. Atua como consultora para marcas e fábricas desenvolvendo coleções voltadas para a circularidade dos materiais e com grupos produtivos, faculdades e alunos no formato de tutoria, cursos e treinamentos, ministrando oficinas e ensinando seu sistema de trabalho.

“Sempre gostei de criar a partir de coisas que já existem. Já na faculdade eu trabalhava fazendo roupas a partir de roupas. Vim para o Brasil e tive a oportunidade de trabalhar com Jum Nakao durante algum tempo. Com ele também aprendi outros processos criativos. E já que estava trabalhando no varejo — fui estilista da Daslu Homem — comecei a prestar atenção no volume de roupas que sobra no sistema indústria-varejo. Era o olhar de quem acaba de entrar no mercado”, lembra Agustina.

Resolveu então fazer uma pesquisa sobre a sobra das roupas no varejo. “Comecei a fazer algumas contas para tentar entender quanto é essa sobra de roupa no Brasil. Esses dados são, digamos, o início do meu sistema de trabalho. Ele veio muito por uma tendência a criar, eu tenho uma formação e um perfil muito de criação. No varejo, sendo bem otimista, 75% das peças que uma marca compra para uma coleção são vendidas em preço cheio; 20%, mais ou menos, são vendidas na liquidação; e sobram 5%”, observa, acrescentando que procurou a Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT) para fazer uma imersão sobre os números de produção de roupas no Brasil e poder cruzar e interpretar  quanto significariam esses 5% que ela entendia que eram o mínimo que sobrava de roupas nesse sistema varejo-indústria.

De acordo com o Relatório Setorial da Indústria Têxtil do IEMI, de 2020 (com dados de 2019), foram produzidas no Brasil 5,8 bilhões de peças de roupas, sem incluir cama, mesa e banho e calçados. Meio por cento dessa quantidade de peças foram exportadas e ficaram, para consumo interno, 5,77 bilhões de roupas. Eu cruzei esses 5,77 bilhões com os 5% para entender quanto é o volume de roupas que ficaram no varejo, que foram até a ponta mas não chegaram no consumidor final em 2019: 288,5 milhões, um número bastante grande”, comenta.

E onde estão essas roupas? Elas estão, muitas vezes, em galpões onde as próprias lojas vão guardando, vai virando bazar. Aí fica o bazar do bazar do bazar. Vai ter a sacoleira que leva de uma cidade para outra. Existe um fluxo, mas, na verdade, existem muitas roupas que estão muito mal valorizadas. Por terem a grade furada, por terem passado de moda elas não representam um produto interessante para o varejo. O varejo precisa de produtos com certas características para poder continuar movimentando a roda.

Quando fazemos uma ação de qualificar e quantificar, que é fundamental quando a gente trabalha com resíduo e sobra, a análise parte do princípio do que eu tenho e quanto tenho. Em um mercado como o brasileiro, onde o volume é muito grande, a coisa começa a ficar assustadora e interessante ao mesmo tempo – Agustina Comas

A designer também durante suas pesquisas voltou os holofotes para as sobras das peças de malha na indústria do corte. Também extraído do Relatório do IEMI de 2020, daqueles 5,8 bilhões de roupas que foram produzidos 3,2 bilhões são peças de malha. E focou na malharia circular. “Se a gente fizer um consumo médio de 0,5 metros seriam  O consumo de malha a gente calcula em peso, mas eu vou fazer em metros: o peso depende muito do tipo de malha etc, então nós padronizamos falando em metros. A um consumo médio de 0,5m seria um consumo médio de 1,6 bilhão de metros utilizados para fazer as peças de malha. A sobra de tecido na fase do corte varia de 7% a 30% dependendo muito do tipo de tecido, se tem estampa ou não, se são peças menores, se dão mais encaixe, se a empresa tem um sistema de corte tipo Audaces ou Electra ou não tem um encaixe é manual. De 7% a 30% é uma margem muito grande e equivaleria a algo entre 114 milhões e 489 milhões de metros de tecido picadinho”.

A partir dessas percepções que a designer fez com essas contas, ela sentiu a necessidade de gerar sistemas precisos para poder escalar o upcycling dentro de uma visão sistêmica. “Essa visão sistêmica é fundamental, a gente consegue olhar o todo e pode trabalhar com essas ferramentas em simbiose, como a natureza trabalha, aproveitando toda a infraestrutura que a indústria tem e podendo usar essa mesma estrutura para processar esses materiais que seriam considerados resíduos”, pontua Agustina.

No portfólio de Agustina Comas, ela tem uma collab com a Renner do uso da técnica de upcycling no lançamento da quinta coleção sob o selo Re Jeans. Ao todo foram 17 peças em jeans que unem os atributos do selo Re Jeans – propõe uma moda mais responsável através do uso de algodão certificado, fio reciclado ou consumo reduzido de água – aos benefícios sustentáveis da técnica do upcycling, proporcionando uma nova vida a roupas e materiais que seriam descartados. O projeto vinha sendo alinhavado desde 2016. “Eles renovam os compromissos a cada cinco anos e era algo que estávamos batalhando há seis anos. Finalmente saiu e está completamente alinhado com a visão de futuro da companhia hoje”, comenta Agustina Comas, adiantando que virão novos projetos.

No portfólio, a collab de jeans com a Renner (Foto: Reprodução/Instagram)

No portfólio, a collab de jeans com a Renner (Foto: Reprodução/Instagram)

“É um trabalho de formiga. Além do produto chegar ao público final, porque vai conseguir escala e vai consumir, há a questão da educação. Quando se coloca num grande varejista temos a oportunidade de falar com uma grande gama de pessoas que nunca ouviram falar de upcycling. E é bom, pois entra a questão da transparência e de entender que a circularidade, a sustentabilidade é um processo e que estamos todos juntos. Essa puxada dos varejistas é fundamental. E aí há todo um trabalho de comunicação, de transparência e de verdade. Trabalhando nesse projeto com a Renner, como marca pequena e séria, que faz esse trabalho de verdade, vejo que é muito importante educar as pessoas com as palavras certas”.

O FOCO NO UPCYCLING

“É preciso pensar a circularidade como um sistema, que tem várias possíveis estratégias. E aí vem o grande desafio, que é conseguir achar o padrão dentro da irregularidade dos materiais. O processo de upcycling é transformar materiais ou produtos descartados ou deixados à margem em novas peças acrescentado valor e sentido àqueles utilizados como matéria-prima. A gente troca o investimento em material pelo investimento em mão-de-obra. Especificamente no upcycling, a geração de mão-de-obra é importantíssima”, ressalta Agustina Comas. “Vai ter mais gente trabalhando, e essa é uma forma de distribuir renda e de fazer com que os trabalhos manuais continuem vigentes. Sabemos que eles correm o risco de desaparecer e, na nossa cadeia, os ofícios da costureira e do sapateiro, por exemplo, são fundamentais para a economia circular acontecer”.

Upcycling é diferente de reciclagem, que é transformar um produto ou material à nível da matéria para ser reincorporado no mesmo ou em outro ciclo produtivo (re-ciclar). É o caso da lata de alumínio. Tem ainda o exemplo da Cotton Move, empresa brasileira que desfibra tecidos de algodão, tanto de sobras da produção do jeans quanto do pós-consumo de peças, e refaz esses fios misturando com algodão virgem, sustentando o valor desse material (A Cotton Move lançou o primeiro jeans pós-consumo. Foram aplicados processos regenerativos e de logística reversa em todas as etapas industriais: fiação, tecelagem, confecção e pós-consumo).

Leia mais: SENAI CETIQT: Live ‘Oportunidades para a Economia Circular no Brasil’ e o case de sucesso da Cotton Move

A imagem da árvore da cerejeira, de Michael Braungart e William McDonough, autores do “Cradle to Cradle” (“Do Berço ao Berço“), literatura básica de economia circular, é muito ilustrativa de como a gente trabalha para conseguir dar conta desse grande universo. Como vamos manter todos esses materiais dentro da nossa cadeia circulando com o valor mantido e deixando o downcycling como última alternativa, pois é uma forma de reciclagem em que o material original, ao ser transformado, perde valor, geralmente por se misturar com outros materiais e outras composições, o que dificulta que possa voltar a se reciclar.

Agustina Comas e o upcycling: processo criativo que valoriza recursos materiais já disponíveis (Foto: Reprodução/Instagram)

“Aqui tem a discussão forte da mistura de PET com algodão, que resolve o problema no momento, mas, depois, dificulta a reciclagem. Existem empresas de fora desenvolvendo a reciclagem química para poder separar esses materiais. São muitas cabeças, muitas pessoas, muitos negócios públicos e privados tentando desenvolver a importâcia do investimento. Não é um negócio que tenha retorno financeiro a curto prazo, o retorno é a médio e longo, mas não tem mais alternativa: a gente vai por esse caminho e quem ficar para trás, ficou”, dispara Agustina Comas.

DICAS PARA APLICAR O UPCYCLING NO SEU PROCESSO PRODUTIVO

  1. Quantificar e qualificar

O material é o ponto de partida: nele estão a inspiração, o problema e a solução. Quanto mais quantificado e qualificado o material está mais valor ele tem. Mais ele é um material e menos um resíduo.

Desafios:

– Achar os padrões dentro da irregularidade do material. Aqui entra um processo que é muito criativo, tecnológico, matemático. Por um lado, pensar fora da caixa, criar, muito humanas. Por outro, muito exatas, para poder achar as tecnologias, desenvolver as simulações. Por isso é sistêmico.

– Desenvolver produtos vendáveis (grade, estoque etc) e que o mercado entenda.

– Espaço para armazenar o material. Quando a gente lida com resíduo a gente vai ter que ter o seu material organizado de forma X, Y ou Z para saber o que pode oferecer para o seu cliente.

– Criar processos cíclicos que permitam que o material seja transformado antes de virar resíduo.

2. Peças: por modelo e por tamanho

3. Tecidos e pontas de rolos

4 . Sobra de corte

5. Simbiose – Aqui existe uma simbiose, um processo sistêmico nosso com as fábricas onde trabalhamos, envolvendo equipes, engajando, desenhando processos que aproveitam processos e infraestrutura já existentes na fábrica. Usamos o design a serviço de resolver um problema: o produto é resultado de um processo produtivo desenhado especialmente para transformar o material catalogado.

6. Criação – A gente tem uma parte de criação. Feita a catalogação, a gente já sabe o que tem. É aí que a gente começa a criar explorando o material, trabalhando processos criativos exploratórios para gerar repertórios de ideias e diferentes possibilidades. Uma jaqueta jeans virando uma minissaia ou uma calça transformada em saias longas ou shorts. Ou shorts com três tipos de jeans. O céu é o limite para as ideias.

7. Desenvolvimento – Em seguida passamos para o processo de desenvolvimento, que é mais similar a um processo de desenvolvimento convencional. Utilizamos fichas técnicas, tabelas de medidas, os gabaritos iniciais, fazemos peças-piloto, provas de roupas. Ainda falando de uma peça, não é produção: a gente criou, pirou e organizou o material — temos isso. Vamos dedicar tempo de criação porque sabemos que temos, senão a gente fica pirando e depois não tem. A gente viajou e agora vamos fazer um produto para valer.

  1. Produção