Miss Brasil 2020: Julia Gama, recém coroada, diz que sempre foi nerd e que no Brasil havia preconceito em ser miss


Seu reinado em plena pandemia pode nos trazer 50 anos depois o título de Miss Universo, só antes alcançado por duas brasileiras, Ieda Maria Vargas (1963) e Martha Vasconcelos (1968). “No Brasil existe um preconceito com o concurso de miss. Mas andando pelo mundo eu vi a importância imensa que o concurso de beleza significa para países como as Filipinas, Venezuela, China, Tailândia e tantos outros. E eu aprendi a me amar e a me respeitar, mas muito mais do que perfeição, o que me faz bonita para as pessoas é a minha energia. Acho que é com o meu olhar, com meu sorriso que eu encanto. Esteticamente eu me acho interessante, mas acho que isso é muito pouco”, pontua

*Por Alexei Waichenberg

Não é todo dia que você se depara com a Miss Brasil. Tivemos a sorte e não hesitei em vasculhar esse “universo” da beleza maior da nossa gente. Julia Gama chegou à casa de uma amiga sem fazer questão de ostentar o título que acaba de ganhar. Seu reinado em plena pandemia pode nos trazer 50 anos depois o título de Miss Universo, só antes alcançado por duas brasileiras, Ieda Maria Vargas (1963) e Martha Vasconcelos (1968).

Julia Gama, Miss Brasil 2020 (Foto: Marcelo Faustini)

Alexei – Julia, eu tenho para mim que, mesmo que os tempos sejam diferentes, do antigo glamour que envolvia os concursos de beleza, ser miss é o sonho de qualquer menina, que sabe que nasceu bonita. Ser miss era seu sonho de infância e adolescência?

Julia – Não, nunca foi meu sonho de criança. No entanto, você tem razão, no Rio Grande do Sul isso é uma tradição. As meninas sonham com isso desde pequena. Elas participam de concursos infantis, depois juvenis, até chegar ao Miss Brasil. No meu caso não. Eu sempre fui ligada ao esporte. Eu era nerd, dedicada aos estudos. Tinha pavor de colocar um biquíni. Nunca havia usado um salto alto ou uma maquiagem antes. Eu estava cursando engenharia química na UFRS e a minha melhor amiga começou a me incentivar que eu participasse do Concurso Miss Mundo Rio Grande do Sul. Não sei se você sabe, mas existem duas linhas mundiais de concursos de beleza. As duas começam nos regionais, por estado, mas numa delas as vencedoras passam a Miss Mundo Brasil e termina no Miss Mundo e na outra chegam ao Miss Brasil e, depois, Miss Universo. O fato é que eu não tinha nenhuma ligação com o mundo da beleza. Me achava totalmente desengonçada. No último dia de inscrição, minha amiga resolveu mandar a minha ficha. Eu concordei, achando graça. Foram mais de 5.000 inscritas. Eu me escrevi e fui para seletiva, sem maquiagem, com cabelo natural e levei um biquíni, mas torcendo para que não me pedissem para colocá-lo. Quando cheguei, as outras meninas estavam completamente montadas e eu pensei: O que eu estou fazendo aqui?

Alexei – E como funcionava o concurso?

Julia – O concurso era no formato de televisão. Eles iam eleger, das 5.000 meninas, 20 para um reality de TV, de dois meses de provas. Para a TV era necessário ter vários tipos diferentes, a loira, a morena, a negra, a engraçada, a fofinha e a que falasse bem. A própria organização, percebia que eu ali era um peixe fora d’água. Mas eu levei um discurso totalmente diferente. Quando me perguntaram por que eu queria ser a Miss Rio Grande do Sul, eu respondi que, como mulher gaúcha, eu sabia do orgulho e da responsabilidade que nós temos com o nosso estado e, acrescentei, que eu queria mostrar para o Brasil esse sentimento e incentivar que cada um se apropriasse da responsabilidade de contribuição com a nação. Então eu fui escolhida. Fiquei entre as 20. Existe um preconceito com as concorrentes, de achar que elas são rasas, fúteis, mas ali eu aprendi muito. Foi uma oportunidade de auto conhecimento, de aprender a me cuidar e a me amar. Com isso, sem me dar conta, eu fui passando nas etapas eliminatórias e fui me surpreendendo. No final do concurso chamaram as 3 finalistas e eu era uma delas. Eu já fiquei muito feliz, porque essas 3 ganhariam uma viagem para a Disney. E para a minha surpresa eu fui a ganhadora. Pela minha cara no vídeo você vai ter certeza de que realmente eu não esperava.

“Ao ser eleita Miss Rio Grande do Sul eu queria mostrar para o Brasil esse sentimento e incentivar que cada um se apropriasse da responsabilidade de contribuição com a nação” (Foto: Marcelo Faustini)

Alexei – Bom, uma vez Miss Mundo Rio Grande do Sul, quais eram as atribuições e como você encarou isso?    

Julia – Com o tempo eu fui percebendo o que mais me encantou nesse mundo que todos pensam que só diz respeito à beleza estética. O papel da miss é sempre social. Não está apenas ligado a uma carreira, mas à responsabilidade de representar o seu estado, o seu país. Sabendo que eu ia representar o Rio Grande do Sul no Miss Mundo Brasil e que é o estado mais esperado na competição, pela tradição de boas candidatas, aí entrou o meu lado engenheira. Já que eu tinha esse compromisso, queria fazer bem feito. Como não sabia nada, fui estudar o concurso, todas as provas, etapas, a história, estudar as misses antigas e traçar uma estratégia de preparação para competir o Miss Brasil Mundo em 2014. Eu acordava às 5h e ia dormir a meia-noite e, tudo isso, conciliando com a Faculdade de Engenharia. Foi muito intenso, mas o planejamento de aprimorar em mim aquilo que eles esperavam, me levou a me aprofundar no estudo de línguas. Eu entrei para um curso de teatro afim de resolver o problema da inibição, aprender a desfilar e olha que eu nunca havia desfilado na vida. Foquei muito no tema de beleza com propósito, que é o mote principal do concurso Miss Mundo. Eu criei um projeto social no Rio Grande do Sul que, não só ajudava muita gente, mas envolvia as pessoas nas ações humanitária e desburocratizava o acesso de pessoas dispostas a ajudar. O projeto foi replicado em outros estados e isso para mim começou a fazer sentido. Enfim, me esforcei para me transformar numa mulher completa.

“Eu criei um projeto social no Rio Grande do Sul que, não só ajudava muita gente, mas envolvia as pessoas nas ações humanitária e desburocratizava o acesso de pessoas dispostas a ajudar” (Foto: Marcelo Faustini)

Alexei – Nem precisa me dizer que você levou o Miss Mundo Brasil. Como foi isso?

Julia – Pois é, ganhei o Miss Mundo Brasil 2014. Assumi a causa da hanseníase no Brasil, me tornei embaixadora e defendi projetos de apoio durante todo o meu reinado como Miss Mundo Brasil. E ao invés de estar preocupada com a minha carreira pessoal eu decidi focar no social, enquanto me preparava para o Miss Mundo.

Alexei – E como correu o concurso?

Julia – No Miss Mundo fui muito bem classificada e fiquei entre as finalistas. Ganhei o prêmio de beleza com propósito, que era o que me interessava. Voltei para o Brasil e percebi que tinha me apaixonado pelo palco. Decidi pausar engenharia e fui para o Rio para estudar atuação e artes cênicas.

Alexei – Eu li que você morou na China muito tempo. Como isso aconteceu?

Julia – Em 2016 fui convidada para um comercial na China. Fui para passar um mês e decidi ficar por lá. Consegui ser a embaixadora da marca do comercial, para o qual fui contratada, que tinha muita penetração no mercado chinês. Comecei a buscar como desenvolver minha carreira de atriz na China. Fiz contrato com outras marcas de beleza e rodei dois longas importantes, que serão lançados na China depois da pandemia. Aprendi mandarim. Foi um tempo muito importante. Abri uma empresa de entretenimento e mídia para fazer coprodução entre os dois países.

Julia foi a vencedora do Miss Mundo Brasil 2014, outro concurso reconhecido (Foto: Marcelo Faustini)

Alexei – Depois de ter chegado ao topo no Miss Mundo, como apareceu o Miss Brasil, que como você nos disse é uma outra linha de concursos e que leva ao Miss Universo. É uma linha mais marqueteira, não é?

Julia – São concursos diferentes. O Miss Mundo tem mais espectro na Europa e na Ásia, por exemplo, enquanto o Miss Universo tem mais força na África e nas Américas. Depois de três anos na China, no ano passado, eu decidi voltar para o Brasil para consolidar a minha carreira. Numa noite eu sonhei que estava concorrendo no Miss Universo. Então, eu tive a certeza que eu tinha que participar. Para concorrer ao Miss Universo eu teria que primeiro ganhar o Miss Brasil. E o Brasil não tinha nenhum franqueado promovendo o concurso. E aí veio a pandemia e o cenário inteiro mudou. Eu estava na China e recebi o telefonema do novo franqueado do Miss Brasil. Eu havia trabalhado treinando misses na China e achei que a proposta dele fosse para treinar as misses para a nova competição. Ele me explicou que não seria um concurso tradicional por conta do Covid-19. Criou uma banca julgadora e aí veio a surpresa: por análise da banca, o meu nome foi escolhido para ser coroada Miss Brasil.

Alexei – Você foi coroada então num concurso bem diferente, praticamente uma análise técnica?

Julia – Sim. É bem diferente a sensação. Porque quando você tem um concurso tradicional, você pode se preparar para a expectativa dos jurados. Nesse caso especial eu fui escolhida, entre tantas outras, pelo que eu sou e pelo trabalho que havia feito, desde que ganhei o Miss Brasil Mundo. Então, eu me tornei Miss Brasil 2020. E eu estava presa na China, porque as fronteiras estavam fechadas.

“Eu estava na China e recebi o telefonema do novo franqueado do Miss Brasil. Eu havia trabalhado treinando misses na China e achei que a proposta dele fosse para treinar as misses para a nova competição no nosso país (Foto: Marcelo Faustini)

Alexei – Você que estudou a fundo os concursos de beleza, me conta um pouquinho da história do Miss Brasil

Julia – O Miss Brasil tem 66 anos de história. E na história do concurso só houve uma vez, antes de mim, uma mulher que tenha ido para os dois maiores concursos de beleza do mundo, que são o Miss Mundo e o Miss Universo. Eu fui eleita duas vezes Miss Brasil.

Alexei – Deixa eu voltar um pouquinho nesse critério de seleção da banca. Por que você acha que foi a escolhida?

Julia – Sem falsa modéstia, eu fui escolhida porque tenho fluência em português, espanhol e inglês, falo mandarim e alemão básicos, tenho experiência internacional, sou extremante engajada nas causas sociais, tenho uma formação como atriz e alguma intimidade com as câmeras e pelo fato de ter morado na China, um país tão culturalmente diferente do nosso e do resto do mundo ocidental. Tudo isso fez com que eu fosse a escolhida.

Alexei – Pera aí um pouquinho. Você nunca considera a sua beleza?

Julia – Ahahahah, nem de longe eu me acho a mulher mais bonita do Brasil. Existem mulheres muito mais perfeitas. Mas eu acredito que eu seja um pacote completo da representante que eles buscam. Porque uma miss deve ser a mais preparada para representar uma nação, para falar da diversidade do seu povo, para levar o seu país para o mundo inteiro, para usar esse título em prol de algo maior do que ela mesma. Ser miss é serviço o ano inteiro ao seu país. De porta voz da organização, mas de serviço ao seu país. Se antes eu já podia ajudar muita gente, agora eu tenho muito mais força para deixar, em cada contrato que eu assino, um legado e contribuir com o nosso país. O papel da Miss também é o de unir o povo, reforçar o sentimento de patriotismo e consciência para a população. Eu quero ocupar meu espaço e abrir espaço para que as pessoas tenham mais voz. No Brasil existe um preconceito com o concurso de miss. Mas andando pelo mundo eu vi a importância imensa que o concurso de beleza significa para países como as Filipinas, Venezuela, China, Tailândia e tantos outros. O Miss Universo é o evento internacional anual de maior audiência do mundo. É mais do que Copa do Mundo e Olimpíadas. Isso é muito potente e eu quero resgatar isso no Brasil.

A coroa da Miss Brasil que afirma: “O Miss Universo é o evento internacional anual de maior audiência do mundo. É mais do que Copa do Mundo e Olimpíadas. Isso é muito potente e eu quero resgatar isso no Brasil”

Alexei – Agora vem a preparação para o Miss Universo. Quais são as demandas?

Julia – Nossa, é uma loucura. Começa com a preparação de passarela porque vamos enfrentar diferentes provas de desfiles com vários critérios, depois preparação de entrevistas com muitos jurados, geopolítica, as causas que eu vou abraçar esse ano, aula de oratória, aulas de canto, aperfeiçoamento de outros idiomas.

Alexei – A pergunta que não quer calar. Você se acha bonita?

Julia – Olha, eu aprendi a me amar e a me respeitar, mas muito mais do que perfeição, o que me faz bonita para as pessoas é a minha energia. Acho que é com o meu olhar, com meu sorriso que eu encanto. Esteticamente eu me acho interessante, mas acho que isso é muito pouco. E para mim beleza é muito mais do que isso.