SENAI CETIQT: A importância do debate sobre o aumento alarmante de casos de racismo no dia a dia do brasileiro


Na semana passada, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgou os Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, com uma triste realidade: os números de registros dos crimes de injúria racial, racismo e homofobia ou transfobia dispararam em 2022 no país na comparação com o ano anterior. Uma live importantíssima realizada pelo SENAI CETIQT dentro do projeto anual ‘Africanidades’ e batizada’ Desengasga: eu, tu e você”, com o tema “Racismo, precisamos falar sobre isso”, já lançava luz sobre o aumento dos casos ano passado e os participantes abordaram tanto questões como identidade e invisibilização negra no país como a potência das vozes e ações em prol do desenvolvimento da consciência política e histórica da população negra, do combate ao racismo, além da valorização da cultura e da mulher afro-brasileira, entre outros pontos. Vem conferir!

O Brasil inteiro teve acesso, na quinta-feira passada, dia 20 de julho, aos Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). As informações divulgadas revelam tristes realidades quando mostram que o número de registros de crimes de injúria racial, racismo e homofobia ou transfobia dispararam em 2022 no país, quando comparados ao ano anterior. Os registros de racismo, por exemplo, saltaram de 1.464 casos em 2021, para 2.458, em 2022. A taxa nacional no ano passado ficou em 1,66 casos a cada 100 mil habitantes, uma alta de 67% em relação ao ano anterior. Os estados com as maiores taxas, de acordo com o anuário, foram: Rondônia (5,8 casos a cada 100 mil habitantes), Amapá (5,2), Sergipe (4,8), Acre (3,3), e Espírito Santo (3,1). Os registros de injúria racial também cresceram. Em 2021 foram 10.814 casos e, em 2022, 10.990. A taxa em 2022 ficou em 7,63 a cada 100 habitantes, 32,3% superior ao ano anterior (5,77). As unidades da federação com as maiores taxas foram Distrito Federal (22,5 casos a cada 100 mil habitantes), Santa Catarina (20,3), e Mato Grosso do Sul (17).

Quando li estes dados, e diante dos inúmeros gigantescos de casos de racismo que têm ganhado os noticiários dia após dia, lembrei de uma excelente live – e que você, leitor, encontra no Youtube – promovida pelo SENAI CETIQT como parte integrante do evento anual “Africanidades“, que tem como objetivo promover, valorizar e enaltecer a cultura afro-brasileira e disseminar o combate ao racismo e ao preconceito através das ações educacionais, palestras, oficinas e diálogos. Foi um prazer acompanhar cada um dos palestrantes e suas fortes experiências compartilhadas durante a roda de conversa online batizada “Desengasga: eu, tu e você”, com o tema “Racismo, precisamos falar sobre isso”, acerca do racismo e a importância do reconhecimento da identidade preta. O bate-papo com uma série de reflexões foi realizado há alguns meses, mas é totalmente atemporal e importantíssimo. Contou com as presenças dos professores do SENAI CETIQT Cristiane Carvalho, Marcelo Souza da Silva e Luísa Meirelles; da fotógrafa e jornalista Adriana Carvalho, de São Paulo; dos alunos Matheus Guardiano e Marcela de Jesus; Crislaine Silva, colaboradora do CETIQT, além de Pollyana Bezerra e Lívia Araújo.

“O ‘Desengasga’ tem o objetivo de trazer nossas dores, questões que a gente passa ao longo da vida por sermos brasileiros. Todos os dias, em todos os noticiários, de A a Z, um caso de racismo é retratado no Brasil. A gente precisa muito falar sobre a questão do racismo e as ações que podemos fazer contra isso”, divide a professora Cristiane de Carvalho, que deu início à live apresentando um vídeo no qual a pesquisadora e professora Heloisa Helena Santos, à frente do projeto “Pretademia”, comenta os objetivos da plataforma composta por pesquisadores que mapearam um conjunto de teses e dissertações sobre as mulheres negras no Brasil. Mais de 2 mil trabalhos envolviam o tema, no período de análise realizado entre 1987 e 2019, e foram reunidos em um banco de dados para a web. Heloisa Helena também fala sobre o Instagram da “Pretademia”, que contribui para a consolidação de um campo de estudos, reunindo a cultura, a pesquisa científica e a arte associadas às vivências e experiências das mulheres negras.

“É de suma importância mostrar que a mulher negra não é um estereótipo, mostrar o poder que ela tem e toda a capacidade de criação que vem junto com isso. A gente vê pessoas que foram apagadas da História”, observa o professor Marcelo Souza da Silva, acrescentando: “Eu sempre conto um caso. Quando foram comemorados os cem anos da Abolição, em 1988, eu estava na quinta série e tinha que fazer uma pesquisa sobre dois heróis negros. Na época, não se encontrava nada além de Zumbi. Isso porque estamos falando de um homem, imagina a quantidade de mulheres pretas que foram apagadas da história! Aqui você enfrenta dois ‘ismos’: o racismo e o machismo”.

Para a fotógrafa e jornalista Adriana Carvalho, “esse apagamento da mulher existe desde que o mundo é mundo. Foi forjado com base numa religião que se inicia apagando a identidade de uma mulher, colocando ela como subserviente ao homem. Não estou questionando a religiosidade nem a crença de ninguém, mas é como a história nos é contada. E, dentro desta religião, a mulher vem sendo subserviente desde então. Quando se faz o recorte da mulher negra, não só ela tem sido oprimida pelo machismo, como a sociedade faz questão de apagá-la. É de extrema necessidade que nós façamos com que as mulheres pretas se enxerguem, se amem, se aceitem da maneira como elas são, entendendo que elas fazem parte de um contexto racista que insiste em apagá-la de todo e qualquer ambiente — profissional, acadêmico, religioso. A mulher tem vários estigmas que precisa quebrar. Eu sempre digo que, para a mulher, a única coisa possível é se fazer presente. É ocupar todos os espaços e não esperar ter o local de fala. Sempre abrir a boca e falar. Sem voz não há existência. Tem muitos pretos que, em bate-papos sobre o Dia da Consciência Negra ou o Dia da Abolição, por exemplo, se negam a falar sobre racismo, não querem mais falar. A gente tem que falar sim, tem que estar presente. Não só para falar das nossas dores, mas também sobre as nossas conquistas e das pessoas apagadas na nossa História. Temos mulheres incríveis em nossa literatura, por exemplo, que vieram a ser descobertas não tem nem uma década”.

E enfatiza: “Como outras pessoas vão ter acesso a essas mulheres se eu, Adriana, não usar a oportunidade que tenho de falar para lembrar delas? Eu tenho o papel fundamental de resgatar não só a minha história, mas todo o contexto pretérito em que se faz a Adriana, em que se mostra a Adriana e que vai para além da cor da pele que a Adriana tem”.

De acordo com a aluna Marcela de Jesus, as mulheres pretas passam por experiências que precisam ser vistas por outra perspectiva. Ela cita o caso das primeiras manifestações do feminismo, quando as mulheres queriam ter direito ao trabalho e ao voto. “Já havia muitas mulheres negras trabalhando desde a escravidão, cuidando da casa dos outros, fazendo tudo”, lembra, acrescentando: “Em 2010, eu estava num debate de rede social. Enquanto as mulheres brancas falavam sobre não ter a necessidade de usar maquiagem todo dia, as mulheres negras ainda questionavam a falta de opção de tons de base, por exemplo”. Comenta ainda o fato de as empresas de cosméticos terem demorado tanto para ampliar a gama de cores de uma base para maquiagem. E fala sobre o contexto atual: “Hoje, a gente já tem filtros solares com cor, o que aumenta muito a proteção para a pele. Não é porque temos a pele preta que não precisamos usar protetor. O câncer de pele está aí…”.

Marcela ressalta ainda que o que para uns é algo comum e natural de existir, para outros pode ser uma luta constante. Mas afirma também que consegue ver avanços: “Novas gerações estão trazendo mudanças na forma como se enxerga o racismo e na maneira como se trata esse tipo de situação. A primeira vez em que me vi preta, eu tinha seis anos e estudava numa escola particular em São Gonçalo. Era a única criança negra da turma de alfabetização e as outras não queriam brincar nem falar comigo. Foi preciso a professora dizer algo para elas me aceitarem. Meu irmão está com 13 anos e só começou a se ver diferente com 12. Ele já tem uma outra perspectiva e está numa escola que começa a tentar incluir essas crianças”.

O professor Marcelo Souza da Silva revela que aos cinco anos de idade (hoje ele tem 45) já enfrentava situações como dentro do transporte, quando estava indo para a escola: “Eu era muito zoado justamente pelo cabelo e pela cor diferentes. Ainda mais quando você está naquele grupo que não é da sua cor. É muito triste aos cinco anos ter de encarar isso. As meninas dizendo: “Ah, você tem cabelo de bombril, seu cabelo é toinhonhoin”.

E os palestrantes lembraram várias outras situações pelas quais uma pessoa negra pode passar apenas pela cor de sua pele, como estar em um restaurante e perguntarem se é o garçom ou confundi-la com a babá quando, na verdade, é a mãe da criança que tem a pele mais clara. “Não consigo entender em que mundo essas pessoas estão vivendo. A gente fala muito e todo mundo ouve. Porque o barulho está aumentando, o espaço está sendo conquistado. Ninguém está dando espaço para a gente, ele está sendo conquistado, mas parece que muitas pessoas que não enxergam. Quando eu disse, numa reunião, que era professor de moda na faculdade, uma pessoa que eu tinha acabado de conhecer falou que eu devia ser um orgulho para o ‘meu povo’. Acho que sou um orgulho para as pessoas”, destaca o professor Marcelo. “Eu consegui ascender socialmente através do estudo, e ter que ouvir essas coisas… O que me assusta é que tem muita gente preta que acha isso normal. Ouvir que está tudo certo. Que a polícia tem que abordar mais os negros mesmo, porque a maioria dos bandidos é preta. As pessoas não enxergam isso como racismo estrutural”.

Para Pollyana, trata-se de uma questão de se entender e se enxergar preto: “Nem todo mundo tem acesso às informações que a gente tem ou às vezes tem acesso e não busca. Mas, a internet está abrindo portas para a gente ter um lugar de fala e o que a gente tem de história, de quanto a gente tem de reis e escritores, tanta coisa que a gente tem de legal. E dentro do se enxergar preta, vou falar um pouco do colorismo. Hoje mesmo eu ouvi um colega dizer que eu não sou preta. No momento, eu não comprei a briga, eu não me coloco no lugar, no dever de ensinar o tempo todo”.

Aluno do SENAI CETIQT, Matheus Guardiano, 22 anos, revelou: “Eu cresci com certos comportamentos por conta do racismo que demorei muitos anos para entender o que é. Para a geração da minha mãe, da minha avó, o racismo estava tão presente nos hábitos, que era até difícil enxergar o que sofriam. Não é como a gente vê hoje, como uma luta, um confronto. Para elas era como se fosse normal. Elas se habituaram a isso e, por um certo momento, eu me habituei também. Comecei a ter consciência quando entrei na faculdade, quando passei a frequentar ambientes diferentes e a ser mais independente. Isso me fez ver que o mundo não era como eu via na infância”.

A fotógrafa Adriana Carvalho lembrou que “pretos e pardos são a maioria da população, segundo o IBGE, e dentro desse recorte mais da metade não termina nem o ensino médio. Sim, nós somos orgulho para as pessoas que estão ao nosso redor. Na minha família, somos quatro filhos. A minha irmã mais velha nunca se formou, a mais nova conseguiu se formar tecnóloga, eu consegui fazer faculdade e o meu irmão estuda vários cursos, mas não tem o nível universitário. E se pegar a minha família toda, nem a metade tem graduação acadêmica”, revela, acrescentando que há ainda enormes entraves sociais para o acesso à educação.

A partir deste ponto, o professor Marcelo conta que nasceu em Bangu, morou na Vila Kennedy, e conhece de perto a realidade difícil que muitas crianças enfrentam para concluir os estudos. “Sem querer puxar saco, quem fez eu sair da minha bolha foi o SENAI CETIQT. Eu fui aluno, fiz o ensino médio nessa casa que abriu a minha cabeça. Antes tudo que eu tinha que ser era técnico. Foi o SENAI CETIQT que me fez querer ser muito mais. É um legado dos meus antecessores, hoje colegas como Cris, que me conhece desde a época em que eu era aluno, e outros tantos colegas que já se aposentaram ou não estão mais aqui. Eu fico muito feliz quando vejo que toco um pouco os meus alunos”.

E a professora Cristiane Carvalho apresenta mais um vídeo, que você, leitor, pode conferir no Instagram do projeto “Pretademia” e que fala sobre o legado da escritora Toni Morrison (1931-2019), a primeira mulher negra a ganhar o Prêmio Nobel, em 1993, e também homenageada com o Pulitzer e o National Book Awards.

A colaboradora do CETIQT Crislaine Silva foi convidada a contar sua experiência de vida e ela frisou que a luta está só começando. “Eu não me reconhecia como mulher preta até quatro anos atrás. Sempre alisei o meu cabelo, a minha mãe sempre o alisava. Hoje eu assumi o black. Ter consciência racial é dolorido. A gente percebe os olhares, pequenos detalhes que antes passavam despercebidos por mim. Eu sinto que, por ser mulher e uma mulher preta, a nossa luta é mais pesada. Hoje, eu trabalho no SENAI CETIQT e consigo sentir que sou reconhecida não pela minha cor, mas pelo meu trabalho”.

Os olhares e aquilo que Crislaine chama atenção, os “pequenos detalhes”, também foram sentidos na vida do professor Marcelo: “Eu trabalhei muito tempo com assistência técnica quando morei em Goiânia. Eu ia em empresas, entrava nas confecções, instalava sistemas e tinha colegas que faziam a mesma coisa. Mas, quando eu errava, sentia aquele olhar mais punitivo. Quando acertava era só um ‘está bom’. Eu era muito mais cobrado, recebia muito mais olhares, mais repreensões”.

Ele toca ainda num assunto fundamental: a cultura preta. Segundo ele, o preconceito cultural também é uma das piores manifestações do racismo, “pois leva a pessoa a sentir vergonha de seu legado”. “É importante conscientizar as crianças, mostrar o lugar delas na sociedade, mostrar que a gente está lutando para elas crescerem e não carregarem tantos traumas como a gente teve, que eu carreguei, pelo menos”, pontua Crislaine.

“Uma coisa tem mudado muito, porém: estamos vendo o aumento da representatividade, nos colocando em palcos de visibilidade para o mundo, consumindo e divulgando a moda de pessoas negras, mostrando que elas existem. Na São Paulo Fashion Week, desfilaram Dendezeiro, Mão de Mãe, Meninos Rei, Santa Resistência, Mile Lab, várias marcas de pessoas negras brasileiras que agora estão se colocando à frente”, lembra Marcela de Jesus.

“Trazer esses assuntos à tona é importante. Nós só temos o espaço que temos hoje porque antes de nós teve gente que fez isso em situações muito mais complexas do que vivemos e a gente tem que continuar esse movimento”, frisa o professor Marcelo Souza da Silva.