Quando famosos expõem sua intimidade nas redes sociais abrem mão do direito à privacidade garantido pela constituição?


As atenções voltadas para o caso que envolveu o atacante Neymar esta semana, nos levam a pensar: quando o privado se torna público, se abre mão de direitos sobre a própria intimidade? E por que a vida pessoal de uma pessoa famosa interessa tanto? Convidamos o advogado José Estevam de Macedo Lima, presidente da comissão de liberdade de expressão da ANACRIM-RJ, e a psicóloga Maria Rafart para abrir a discussão e pensarem conosco. Vem saber!

*Por Brunna Condini

O mundo já pode ser dividido antes e pós o advento da internet. A utilização do sistema global vem transformando diariamente as relações e a convivência, inclusive, com pessoas que sequer conhecemos ao vivo. É impensável imaginar a vida sem essa tecnologia que conecta milhões de pessoas. Publicamos nas redes sociais para sermos vistos, para comunicarmos algo, e exercemos nossa liberdade de expressão, um direito garantido, ao postar qualquer imagem, texto ou situação, inclusive privada. E dentro dessa liberdade que falamos, não estão posicionamentos que são na verdade crimes, claro.

Como gostamos de pensar juntos sobre os temas que estão na roda, partimos da reflexão de um fato da vida íntima, que se tornou público, como o post que Neymar escreveu no Instagram para se desculpar com sua noiva Bruna Biancardi, dias depois de virem a tona boatos de uma traição do atacante na véspera do Dia dos Namorados. A postagem fez o jogador bater recorde de menções nas redes sociais. Não é a primeira vez que um famoso tem sua vida exposta nas redes, escolhendo ou não fazê-lo, mas quando o que é privado se torna público, se abre mão de direitos sobre a própria intimidade? Uma vez que se opta pela exposição de algo pessoal, vale tudo por parte dos interlocutores?

Neymar se desculpou no Instagram com a noiva Bruna Biancardi (Reprodução/ Instagram)

Neymar se desculpou no Instagram com a noiva Bruna Biancardi (Reprodução/ Instagram)

“Os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária, conforme disposto nos artigos 11 e 20 do Código Civil. O que estamos vendo na prática, e que não podemos aceitar, são as constantes violações de direitos fundamentais, os quais estão descritos e possuem rol taxativo no inciso X, do artigo 5º da Constituição Federal, quais sejam: a intimidade, vida privada, honra e a imagem, sendo certo que eventual violação deles pode gerar indenização por dano moral e dano material.
“Embora, hoje em dia, muitas pessoas aumentem sua exposição nas redes sociais ou por conveniência, para consumir produtos ou serviços, ou até mesmo para maior popularidade. Ainda assim, esse tipo de exposição de alguns temas pelo titular do assunto não significa, em nenhuma hipótese, a renúncia dos direitos fundamentais, até porque os direitos fundamentais não podem ser renunciados, podendo ser flexibilizados em alguns períodos, como em caso de participação em reality shows. O fato de expor alguns momentos de sua vida privada nas redes sociais, não dá o direito ao próximo de violar esses direitos, pois a Constituição Federal determina que os direitos fundamentais são invioláveis”, esclarece José Estevam de Macedo Lima, advogado e presidente da comissão de liberdade de expressão da ANACRIM-RJ.

E complementa: “É o exercício de um direito à liberdade de expor, sendo também garantido o direito de não ter sua vida comentada ou atacada por terceiros. Tal fato dentro do nosso ordenamento jurídico é vedado, ao ponto que não devemos aceitar tamanha invasão sobre o pretexto da liberdade de expressão e pensamento.

Todos os julgamentos da internet são capitaneados por sentimento de ódio e desejo de destruição ou da imagem, ou da vida das pessoas que são alvo desse julgamento. Além disso, a vida particular e a intimidade de pessoas públicas vêm sendo constantemente comentadas nas redes sociais, com pretexto de abrir uma discussão sobre o assunto, tornando essas discussões o alvo de um verdadeiro tribunal da internet – José Estevam de Macedo Lima

A vida dos outros

Muitos artistas e famosos acabam repercutindo boatos ou para desmenti-los ou ainda, para pedir desculpas com algo que envolva a fofoca. Foi assim com José Loreto, que em 2019, publicou também no Instagram, um pedido de desculpas pela exposição, a Débora Nascimento, de quem havia acabado de separar após boatos de uma traição, que ele negou, nos bastidores da novela ‘O Sétimo Guardião’.

O ex-casal Arthur Aguiar e Maíra Cardi também viu suas vidas expostas a comentários públicos nas idas e vindas do seu casamento.  Mas porque tanto interesse na vida dos outros? “Segundo Freud, para estarmos em sociedade renunciamos a algumas partes muito ruins que temos dentro de nós, para sermos aceitos na civilização. Nossa agressividade é transformada em um sentimento de culpa, e assim nos reprimimos. A mídia sensacionalista nos dá de volta um pedaço daquela parte que negamos em nós. Consomem-se atrocidades para pacificar aquilo de destrutivo que todos possuímos dentro. Nos primórdios do cinema, a imprensa especializada em mostrar a vida dos artistas tinha muito valor, pois o público sempre desejou conhecer mais a respeito de seus ídolos. Depois veio a televisão, valorizando também a vida íntima de músicos, atores e apresentadores. Quem detinha o controle sobre essas informações, sobre quais delas viriam a público, eram os veículos de imprensa tradicionais. Com o advento das redes sociais, este valor passa das mãos da imprensa para a própria pessoa que expõe a sua vida”, analisa a psicóloga Maria Rafart.

Não só coisas boas dão engajamento: coisas ruins, como traições, morte e doença aguçam o lado sinistro do público, ávido por detalhes cada vez mais escabrosos. A mídia sensacionalista rende mais espectadores, e funciona como uma espécie de catarse para cada um deles. A catarse tem uma espécie de efeito terapêutico – a pessoa desenvolve suas fantasias pessoais, direciona seus instintos agressivos, e diminui suas manifestações de violência na vida real – Maria Rafart

“Quem abre a sua vida é o protagonista dela. Cada pessoa tem um celular na mão, e com isso, também se torna uma espécie de repórter da própria vida e da alheia. Pessoas famosas hoje em dia não são mais somente aquelas que se destacam em profissões tradicionais, mas também aquelas que têm mais seguidores e engajamento em suas próprias redes sociais.
O conceito de público e privado hoje se mistura. A partir do momento em que a exposição da rotina da vida de alguém pode valer dinheiro, esta mesma pessoa passa a cobrar por ela.
Episódios de traição como os de Neymar, com a confirmação pública da mesma, geram dentro das pessoas a sensação de poder simbolizar dentro de si atos que não têm coragem de fazer – ou de confessar”, finaliza.