“O racismo no Brasil não dá trégua. A morte de João Pedro, no Rio, pode virar mais uma estatística”, diz Maria Gal


A atriz e produtora, é embaixadora do Favela sem Corona, um projeto social que oferece testes gratuitos aos moradores da Rocinha. Em entrevista ao site, ela fala da importância da iniciativa e da necessidade de doações, da personagem em “As Aventuras de Poliana Moça”, que ganha um canal no YouTube, e aponta os males do racismo estrutural: “É tão absurdo e desumano, que situações como essa continuem acontecendo mesmo nesse momento tão complexo que estamos vivendo. Acredito que se este fosse um país sério, certamente as instituições, empresas democráticas estariam trabalhando para termos um país mais sociável e governável. A notícia da morte do menino João Pedro abalou toda sociedade. É bárbaro saber como a polícia se acha no direito de invadir e matar de forma tão cruel pessoas negras e pobres assim”

*Por Brunna Condini

Ser a mudança que deseja no mundo, parafraseando Mahatma Gandhi, é algo que Maria Gal leva a sério na sua vida. Para a atriz, transformar vidas, é também transformar o mundo. E, em um cenário de pandemia por conta da Covid-19 em que as comunidades se encontram ainda mais expostas em situação de vulnerabilidade, toda ajuda é necessária e fortalece no combate à expansão do vírus. E Maria é de arregaçar as mangas.

Tanto que a atriz e produtora se tornou embaixadora do Favela sem Corona, um projeto social que oferece testes gratuitos aos moradores da Rocinha, comunidade que fica em São Conrado, Zona Sul do Rio de Janeiro. “Inspirada na política de boas práticas, as testagens em massa foram fundamentais na prevenção e atenção da população da Coreia do Sul. O país que chegou a registrar 10.803 casos de Covid-19, conseguiu recuperar mais de 9 mil pessoas. De acordo com o Censo, existem mais de 763 favelas no Estado do Rio de Janeiro, concentrando uma população que vive aquilo que consideramos sub- cidadania: pouco ou nenhum acesso aos direitos básicos previstos pela nossa Constituição Federal de 1988.  Só na cidade do Rio de Janeiro, cerca de 10% da população reside em favelas. Foi pensando nessa população que o projeto se dispõe a arrecadar fundos e oferecer testes gratuitos de Covid-19”, contextualiza Maria Gal.

“Estamos passando por um momento muito delicado e cada um precisa ajudar como pode, principalmente projetos que visam ajudar os mais vulneráveis” (Foto: Nix Produções)

Como funciona exatamente o Favela sem Corona? “Iniciamos o trabalho na maior favela da América Latina, a Rocinha, com mais de 100 mil moradores, e que traz dados bastante preocupantes: são mais de 80 pessoas contaminadas com o novo Coronavírus, número que corresponde apenas aos casos notificados pela secretaria municipal de saúde”, detalha. “A meta era oferecer 1000 testes para a comunidade, mas diante disso, vimos que precisávamos aumentar esse número, em nome da igualdade de acesso à saúde e pelo respeito a cada família, a cada cidadão. E a partir da inscrição no formulário ela se habilita para fazer a testagem. Porém estamos num momento em que a campanha precisa receber doações para comprar testes para realiza-los de forma gratuita. Hoje tem mais de 1.000 pedidos e apenas 15 testes”.

Com forte experiência em produção, ela está atuando também nos bastidores. “Estamos passando por um momento muito delicado e cada um precisa ajudar como pode, principalmente projetos que visam ajudar os mais vulneráveis. Além da minha imagem e ações nas minhas redes sociais, estou contatando pessoalmente algumas empresas e pedindo apoio”, reforça, sobre o projeto idealizado por Pedro Berto, que conta com uma equipe de nove pessoas em campo. As doações recebidas já possibilitaram testar mais de 100 pessoas, mas existe uma longa lista de espera.

“A meta era oferecer 1000 testes para a comunidade, mas diante disso, vimos que precisávamos aumentar esse número, em nome da igualdade de acesso à saúde e pelo respeito a cada família” (Divulgação/Riotur)

Você está envolvida em outros projetos para ajudar pessoas em vulnerabilidade em tempos de pandemia. Quais são? “Estou ajudando também o Gerando Falcões. As outras campanhas foram mais pontuais. Tenho contribuído emprestando minha imagem para as campanhas que me solicitam. Antes, procuro me informar bem para poder compartilhar nas minhas redes e também fazer doações”, esclarece a atriz. E ressalta a maior carência que os projetos recebem: “Em um país como o Brasil, que mesmo antes da pandemia já tinha muitos problemas de desigualdade social, a maior falta hoje certamente é falta de alimentação para os mais carentes e testes em massa.”.

Maria Gal também identifica um outro tipo de mal, que acomete muitos nestas comunidades, o racismo estrutural. Ela se comoveu e indignou, com a morte do menino João Pedro de Mattos Pinto, de 14 anos, nesta segunda-feira, durante uma operação policial em São Gonçalo. “É tão absurdo e desumano, que situações como essa continuem acontecendo mesmo nesse momento tão complexo que estamos vivendo. O racismo no Brasil não dá trégua. Acredito que se este fosse um país sério, certamente as instituições, empresas democráticas estariam trabalhando para termos um país mais sociável e governável”, desabafa. “A notícia de João Pedro abalou toda sociedade. É tão bárbaro saber como a polícia se acha no direito de invadir e matar de forma tão cruel pessoas negras e pobres assim. E o pior de tudo isso é que o governo não faz nada de concreto para mudar, e João Pedro infelizmente pode virar mais um na estatística”.

“O racismo no Brasil não dá trégua. Acredito que se este fosse um país sério, certamente as instituições, empresas democráticas estariam trabalhando para termos um país mais sociável e governável” (Reprodução Instagram)

A atriz já sentiu o impacto do preconceito algumas vezes na sua vida. De que forma busca dar voz à esta questão, tão nociva quanto qualquer pandemia? “Já sofri preconceito e ainda sinto. Busco dar visibilidade à luta contra o racismo de forma direta e indireta. Hoje, dou voz algumas vezes de forma objetiva, outras vezes de forma estratégica, dependendo do contexto, dos meus objetivos, e das pessoas envolvidas. Mas a principal forma, é falar abertamente sobre o racismo. Falar sobre esse tema faz parte do meu DNA enquanto artista, cidadã, mulher, negra e nordestina, desde quando comecei a fazer teatro em Salvador, no Teatro Vila Velha e com o Bando de Teatro Olodum, há mais de 20 anos”.

Em ação

Ela está comemorando dois anos ininterruptos no ar, como a batalhadora Gleyce, de “As Aventuras de Poliana”, que na segunda fase, está com novo título, “As Aventuras de Poliana Moça”, no SBT. A trama é a única novela ainda no ar, já que a produção tinha muitos capítulos gravados de frente. E agora, a atriz comemora a virada da personagem, que vai ganhar, inclusive, um canal. “Ela acaba de entrar na faculdade de administração, e a descoberta deste novo mundo será o estímulo para a Gleyce criar um canal só com dicas de finanças. A partir do dia 29 deste mês, o canal fictício da trama poderá ser visto, também, dentro do canal oficial da novela no Youtube, que possui quase 7 milhões de inscritos. Os conteúdos foram gravados no fim do ano passado, bem antes da pandemia, e estavam só aguardando a trama avançar para este momento. O bacana é que é mais um conteúdo disponível para o público”, divulga a atriz, que também toca projetos na própria produtora.

Maria Gal em cena ao lado do ator Paulo Américo, como a batalhadora Gleyce, em “As aventuras de Poliana Moça”, no SBT (Divulgação SBT)

O mundo está mudando, e aquele de antes da pandemia, já não existe mais, e segundo Gal, muitas coisas não cabem mais neste novo lugar, que se constrói. “Não dá para não pensar na sociedade como um todo. É inadmissível, por exemplo, que pessoas adultas, em sã consciência, com acesso a inúmeras informações a respeito dessa gravíssima doença, não se preocupem em se proteger, e saiam por aí sem levar em consideração a possibilidade de contaminar outras pessoas. Estou há mais de 60 dias em quarentena, mas o Brasil como um todo, não está em quarentena e isso pode nos levar a um estágio ainda pior de lentidão para resolução desse problema. Portanto, acredito que não cabe mais hoje qualquer indivíduo pensar apenas em si, sem pensar no coletivo, e principalmente os governantes”.

“Acredito que não cabe mais hoje qualquer indivíduo pensar apenas em si, sem pensar no coletivo, e principalmente os governantes” (Foto: Nix Produções)