No mês da Visibilidade Trans, Carol Marra fala sobre preconceito, hate e que “a TV tem uma dívida com as trans”


A atriz fez uma entrevista reveladora: conta que só teve sua primeira experiência sexual plena após a cirurgia de redesignação sexual, perto dos 30 anos e que lidou durante muitos anos com a pressão da sociedade conservadora. Carol Marra foi uma das primeiras atrizes trans a interpretar uma mulher cis na teledramaturgia brasileira em “Quanto mais vida, melhor”, na Globo, e diz que foi aceita e abraçada tanto pela emissora como pelos colegas do elenco. Reportagem revisita a passagem de outras atrizes trans nas novelas e mostra o clima beligerante que existia em produções dos anos 1980 e 1990. Ainda que esteja numa posição privilegiada, Carol reconhece os desafios pelos quais passam as pessoas trans no Brasil, país que, apesar da transfobia ser crime, é o que mais mata trans e travestis. Para 2023, Carol Marra quer lançar-se à carreira de palestrante motivacional e fazer “germinar sementes no coração das pessoas”

*por Vítor Antunes

Estamos no mês da Visibilidade Trans e lá em 2004 foi organizado o ato “Travesti e Respeito”, que sinalizou um marco na luta por direitos de todas as pessoas representadas pela letra “T” da sigla LGBTQIAPN+. Dentre estes nomes representativos, consta o de Carol Marra. Atriz, jornalista, consultora de moda, Carol teve uma personagem de importância na novela “Quanto Mais Vida Melhor“, exibida pela Globo em 2021, e uma das primeiras tramas a trazer, além dela, outra atriz trans, A Maia. À obra de Mauro Wilson é atribuído o pioneirismo em uma atriz trans vivendo uma personagem cis, tendo esta um relacionamento com um homem cis, e a trazer, também cenas de beijo e intimidade, naturalizados, no horário das 19h. Por mais que tenha conseguido alcançar um caminho de destaque, Carol destaca haver a necessidade de se investir ainda mais em políticas de conscientização e combate ao preconceito. Este ano, ela quer lançar-se como palestrante motivacional debatendo a questão trans, especialmente para promover maior empatia para estas pessoas: “Há quem acredite que nascemos de um Kinder Ovo. (…) Ainda hoje, em 2023, há quem confunda trans e travesti. Eu não sei o que passa na cabeça das pessoas. Acham que somos alienígenas”.

No mês da visibilidade trans, Carol Marra é uma mulher destaque (Foto: Divulgação)

PRECONCEITOS

São mil e um projetos para Carol Marra. A atriz quer investir em uma nova possibilidade de comunicação, que é a das palestras motivacionais, objetivando trazer consciência para as pessoas no que tange à questão trans. “Eu fiz uma palestra informal  voltada à causa LGBTQIAPN+, e depois para uma marca de cosméticos e deu super certo. Nestas palestras, eu quero não só contar minha história, mas falar de temas sérios, sobre aceitação. A partir do dia em que eu assumi a minha verdade e o que era meu tudo tornou-se mais leve”.

Segundo Carol, o preconceito ainda é seríssimo e é muito recorrente perguntarem-na sobre o seu nome de registro, “o que é uma total falta de educação e de uma grosseria tamanha”. Durante a pesquisa para esta reportagem flagramo-nos com uma onda de comentários duros e/ou preconceituosos, geralmente assinados anonimamente, nas redes sociais, direcionados à atriz. Assim como matérias pelas quais era tratada pelo masculino. Perguntamos de que maneira ela lida com esse hate, e com ofensas criminosas. “Eu fiz muitos anos de terapia e de análise, de modo que para me desestabilizar e colocar para baixo é algo muito difícil. Eu acho que essas pessoas são amarguradas e têm problemas com elas elas próprias. As pessoas que falam mal de mim, eu nem perco meu tempo, a minha energia, para revidar. Eu me penalizo. Acho que o pior sentimento que podemos ter com relação a uma pessoa é a pena e é isso que eu sinto a essas pessoas”.

Ainda sobre abordagens preconceituosas sobre si, ela relata: “Quando eu comecei a minha trajetória, a internet não tinha essa força. Tudo era restrito aos jornais e revistas. Portais, como o Ego, eram sensacionalistas e agiam de uma forma que não caberia hoje. Certa vez, fizeram uma chamada que dizia ‘Atriz trans está de biquíni na praia’. Ora, e eu deveria estar de sunga? O preconceito advém da falta de informação e as pessoas são muito ignorantes”. Carol prossegue afirmando que “no passado, antes da transição, eu fazia capas de revista e era  produtora de capas de revistas de moda. Algumas atrizes, que inclusive são minhas amigas hoje, naquela época pediam que eu não fosse chamada para trabalhos, porque ‘eu botei peito’, por exemplo”.

Eu não tenho amigos da época da escola, do passado. Meus amigos eu já construí ‘como’  Carol – Carol Marra

Numa antiga matéria problmatizaram o fato de Carol estar de biquíni: “Ora, e era para eu estar de sunga?” (Foto: Divulgação)

(TRANS)FORMAR-SE

Desde seu processo de transição muita coisa mudou. Carol diz que “antigamente quando uma trans fazia cirurgia era um processo muito longo. Trocava-se o nome, mas não trocava-se o gênero. Depois, era colocado com distinção: sexo feminino e entre parênteses a palavra trans. Eu consegui que não houvesse menção à minha transexualidade na minha documentação e fui uma das primeiras a não ter”, diferente de Roberta Close, que passou por várias intercorrências para emitir seus documentos. Para Marra, Roberta “é uma referência. E ela própria me aconselhou a ir morar fora do Brasil a fim de não sofrer tanto preconceito”.

Noiva, a atriz pretende se casar em breve e vive uma vida privilegiada. Diz que isso não foi sorte. “Foi muita luta para impor um respeito a mim. Exijo respeito a mim desde o primeiro momento. Nunca aceitei menos do que eu mereço, nunca me senti diminuída ou menor que ninguém. Isso me ajudou a chegar onde cheguei”, conta. E prossegue dizendo que há muitas pessoas que, indelicadamente, pedem para ver sua genitália – algo que é recorrente entre pessoas trans. E são ainda mais deselegantes quando dizem que “parece com uma outra. Quando na verdade não tem que parecer com nada. Tem que tem a ver comigo”. Ela prossegue dizendo que no inicio de sua carreira participou de uma collab de beachwear e perguntaram-lhe se aqueles biquínis “eram para mulher”, tal como citado na manchete de uma antiga reportagem.

Um segmento industrial que parece ainda não ter investido com mais força nas mulheres trans é o de cosméticos, segundo fala Carol, pois sinaliza que estas os utiliza tanto ou mais que uma mulher cis. Inclusive é embaixadora da Natura. “É muito representativo ver a minha cara segurando um perfume”.

Eu só fui ter uma primeira relação sexual plena depois da minha cirurgia, já beirando os 30 anos. O meu primeiro beijo foi com 24 anos. Eu não me aceitava naquele corpo. Eu me sentia e me reconhecia mulher – Carol Marra

E a atriz prossegue sem nenhum traço de amargura sobre sua vida: “Não trago isso com peso ou trauma. Acho que Deus não nos dá um fardo maior do que possamos carregar. Talvez tenho sido aquele o momento certo. E fiz a história da minha vida com muita dignidade. Quando eu era criança, soprava minha vela de aniversario e pedia: “eu quero ser eu”. E hoje eu sou”. Ainda nesta fase, quando era criança, Marra faz um destaque importante: “Muitos meninos que praticavam homofobia contra mim, depois me chamaram para sair”. Ainda que sinta orgulho de ser o que é, acha que a Parada do Orgulho Gay desviou-se de seu propósito inicial:

“Ainda que tenha pontos a favor, acho que a Parada Gay perdeu todo o seu sentido inicial, transformando-se numa grande micareta – Carol Marra

Segundo Carol Marra, as emoresas de cosméticos poderiam investir mais nas trans pois são as que mais consomem esses produtos (Foto: Divulgação)

TRABALHO

Diante de um mercado muito mais acolhedor às pessoas trans, a Globo, segundo Carol, recebeu-a muito bem. “Fui abraçada com um carinho enorme, pela equipe técnica, pelo elenco – tanto pelo meu núcleo como por atores de fora dele. A emissora deu-nos muito suporte, especialmente em razão de estarmos fazendo uma novela durante a pandemia. Trata-se de uma relação que transcende às telas”, comenta.

Na trama a qual trabalhou, “Quanto Mais Vida Melhor” a atriz esteve numa importante fase da  historiografia da TV brasileira. Foi exibida uma cena de beijo e de intimidade entre a sua personagem, uma mulher cis, junto a um homem igualmente cis, Marcelo (Bruno Cabrerizo), o que é algo raro. Na novela anterior no horário, “Salve-se Quem Puder“, houve uma cena de beijo entre um ator trans e uma atriz cis, respectivamente Bernardo de Assis e Juliana Alves. Porém, tal como seu intérprete, o personagem vivido por Bernardo também era trans.

Carol Marra foi Alice Fernandes em “Quando Mais Vida Melhor” (Foto: Divulgação)

Tem vindo à tona um assunto relevante do ponto de vista sociológico, que é a importância de se ter lugar de fala quando há a representação artística das pessoas trans. Muito se debateu quando Carolina Ferraz e Cauã Reymond interpretaram, num clipe musical e num filme, respectivamente, personagens que possuíam esta característica. Segundo Marra, não há uma necessidade estrita de que trans interpretam trans. Para ela, é algo que não precisa ser estrito, mas “questionável. Deve ser analisado caso a caso. Tem ator que faz galã e, na verdade é gay. Tem tanta atriz que faz a mocinha na novela e todos sabemos que ela é lésbica. Diante disto, esses artistas teriam, necessariamente que fazer lésbicas ou gays apenas? Por qual razão uma trans não pode viver um hétero, ou uma cis, ou interpretar um lagarto, uma árvore? Tudo depende do talento. Quando se está apto a fazer aquele personagem, qualquer ator pode vive-lo. Mas, infelizmente, alguns produtoras de elenco nos colocam em caixinhas”, dispara.

As pessoas querem categorizar as outras em caixinhas. Eu tenho 1,88m. Não caibo dentro de uma – Carol Marra

A atriz acrescenta: “As coisas estão mudando e estamos sendo avaliados por nossa capacitação profissional, por nosso talento. Claro, que houve um grande avanço. Eu quero emprestar meu corpo para uma personagem, seja ela quem for. Eu estava um pouco cansada de fazer apenas personagens trans. Parecia que eu estava contando a minha história, ainda que com uma outra roupagem e com outro CEP. Recebi, recentemente, um convite para fazer uma personagem trans, mas que não irei topar, porque ela exigia que eu cantasse, e eu não tenho essa habilidade. Mas há muitas mulheres que cantam. Falta darem às pessoas trans oportunidades”. Na novela “Quanto Mais Vida Melhor” havia também a presença de outra atriz trans, A Maia, que interpretava a Morte.

O ator, dramaturgicamente, pode ser o que quiser – Carol Marra

Leia mais: A Maia: “O dia que pararem de segregar pessoas por gênero, etnia e classe, podemos falar em transformação

Carol Marra e Bruno Cabrerizo em cena de “Quanto Mais Vida Melhor” (Foto: Reprodução/TV Globo)

Entre as décadas de 1970 e 1990, em três ocasiões ensaiou-se colocar pessoas trans com personagens de destaque em novelas. Em dois casos, coube à atriz Claudia Celeste (1952-2018) este papel. Na primeira ocasião, na novela “Espelho Mágico“, em 1977. Onze anos depois, na Manchete, Cláudia foi a primeira mulher trans a protagonizar uma novela, “Olho no Olho“. Em ambos os casos, a atriz foi rechaçada: Da primeira, sua personagem saiu sem maiores explicações. Da segunda, perdeu o protagonismo depois de intervenções da Censura Federal e reclamações dos telespectadores. Em 1998 foi a vez de Roberta Close trabalhar como atriz, também na Manchete, em “Mandacaru”. Tornou-se público, à época, que um ator que fazia par romântico com ela recusou-se a beijá-la. Até mesmo o convite à Close hoje estaria cercado de polêmicas diante da fala do diretor da trama, Walter Avancini (1935-2001):

Não a chamei como atriz, mas como evento – Walter Avancini, diretor de “Mandacaru” (Veja, Maio de 1998)

Roberta Close em “Mandacaru”. Ator recusou-se a beijá-la (Foto: Divulgação/TV Manchete)

Cláudia Celeste foi a primeira a fazer protagonista de novela, em “Olho no Olho” (Foto: Reprodução/TV Manchete)

No passado, houve tentativas de representar a transexualidade na televisão. Em 1995, quando foi exibida “Explode Coração“, trama de Glória Perez, o espaço hibrido no qual estava inserida a personagem Sarita Vitti, de Floriano Peixoto, não permitiu com clareza definir a personagem, hoje entendida como uma mulher trans. Em 2017, foi a vez de Carol Duarte interpretar Ivan/Ivana em “A Força do Querer“, uma abordagem muito elogiada pela crítica, a contrário da presente em “A Dona do Pedaço” , onde a trans Britney, interpretada por Glamour Garcia, compunha o núcleo cômico.

Ainda que reconheça haver “um avanço e já tenhamos subimos alguns degraus, estamos longe da equidade de direitos”. E a atriz é contundente: “A TV tem uma dívida grande com a população LGBTQIAPN+, especialmente para com as trans, que eram estereotipadas: Ou excessivamente afetadas ou prostituídas. Na vida real, eu conheço uma que é concursada, outra que estuda. Há ainda aquelas que foram eleitas deputadas”. Com efeito, o Congresso brasileiro e as Assembleias Legislativas terão representantes transexuais. Como deputadas federais, constam Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). Entre as representantes estaduais, duas:  Linda Brasil (PSOL-SE) e Dani Balbi (PCdoB-RJ).

Carol também lança seu olhar para os preconceitos camuflados de elogios e sobre o mercado de trabalho para pessoas trans: “Ainda que eu brinque e seja descontraída, eu também sou uma mulher séria, eu sei me portar, falar e me vestir. Eu me preparei, estudei, cursei Jornalismo e Artes Cênicas. Ainda assim, há pessoas que dizem ‘Nossa Carol, nem parece (que você é trans)‘. Isso sim me machuca. Estão querendo falar que não me pareço o quê? Por vezes, creio que a referência que as pessoas têm é a de pessoas marginalizadas e prostituídas que, infelizmente estão assim por falta de opção. Ninguém está disposto a empregá-las dignamente”. A fala da atriz encontra repercussão nos dados. Segundo o Mapeamento das Pessoas Trans produzido pela Prefeitura da Cidade de São Paulo, as mulheres trans representam 42% das pessoas que possuem formação técnica qualificada, contra 58% que não. Entre travestis, 36% têm alguma formação específica e 64% não têm.

Carol Marra, belíssima e repleta de projetos pessoais contundentes em prol do próximo (Foto: Divulgação)

Ainda de acordo com Carol, a TV tem um mea-culpa aos trans: “A televisão os representava de forma estereotipada, e as pessoas, por conta disso, chocam-se quando nos veem fora desse lugar-comum. A TV é um meio de comunicação de massa que dialoga especialmente com a população mais humilde e isso se solidificou. Por conta dessa dívida, a TV está tentando se redimir. (…) Está na hora de a gente se ver, se sentir representada nas personagens. A menina que está no interior quer se sentir representada e o exemplo não está apenas em ver alguém igual a si. Elas querem ver trans bem-sucedidas. Muitas delas são vistas apenas como um pedaço de carne”, analisa.

A população trans vive uma forte dicotomia: Profundamente hiperssexualizada ao mesmo tempo que maior vítimas de violência. O Brasil é o país que mais mata travestis e trans no mundo. Em 2021, houve no Brasil, pelo menos 316 mortes violentas de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas intersexo (LGBTI+). Esse número representa um aumento de 33,3% em relação ao ano anterior, quando foram 237 mortes. Os dados constam do Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil.No mês da Visibilidade Trans, Carol Marra fala sobre preconceito, hate e que No mês da Visibilidade Trans, Carol Marra fala sobre preconceito, hate e que Carol ressalta que “são muitas as pessoas mortas apenas pelo fato de serem quem são. Esse número pode ser maior, porque há muita subnotificação, fora os deboches nos grupos de WhatsApp e outros desrespeitos”. Mesmo com índices contundentes como estes, o Brasil lidera o ranking dos países que mais consome pornografia transexual. Os termos preconceituoso – “Shemale”, usado em sites pornôs para a busca de vídeos com trans – é o quarto item mais buscado pelos brasileiros na internet. Já no ranking mundial, a mesma pesquisa ocupa o nono lugar. Ainda segundo o RedTube, que estabeleceu esse ranking, um vídeo com a tag “travesti” tem mais de 450 milhões de visualizações.

O prefixo trans, no latim quer dizer “para além de”. Carol Marra relembra que sua mãe contava-lhe uma história de “uma lagarta que sofria bulliyng na floresta, mas que, no futuro transformava-se numa borboleta”. Borboleta é o símbolo da transexualidade. Diz-nos a atriz que é “sair do seu casulo. Eu quero compartilhar a minha vida e ajudar a plantar uma sementinha no coração de quem acompanha as nossas falas. Elas vão ser transformada em algo muito maior. É preciso que as pessoas tenham um olhar de empatia, de respeito. Eu sempre peço: Não tenha um conceito prévio, um pré-julgamento, primeiro me ouça e depois tira a sua conclusão”. Diante de tantas possibilidades, ser trans é, definitivamente, ir além.