Ex-bailarina do Faustão, Karla Klemente será musa da União da Ilha e fala da sexualização do corpo e impacto no TikTok


A dançarina retorna ao Brasil para desfilar pela União da Ilha no Carnaval. Morando há um ano e meio no México, ela enfrentou desafios culturais e profissionais, mas deixou sua marca ao introduzir referências autênticas da dança brasileira no país. Representando Marietta Baderna no enredo da escola, Karla reflete sobre o preconceito enfrentado pelas bailarinas e a luta por valorização. “Quando se é bailarina – como fui no Programa do Faustão -, a nossa imagem já é remetida a um corpo sexualizado, em vez de um corpo que se move com beleza e arte. Há 10 anos, ela e outras modelos fizeram um toplessaço” em Ipanema e em Copacabana para reivindicar o direito de ir à praia e ficar com seios à mostra. Foi uma chuva de críticas, especialmente de mulheres

*por Vítor Antunes

O ano começa e junto a ele a expectativa para o carnaval. Enquanto as escolas de samba já preparam seus enredos e suas fantasias, as musas também já começam a aguardar com asiedade a chegada dos festejos de Momo. Uma delas é a ex-bailarina do Faustão e dançarina Karla Klemente. Atualmente morando no México, a artista voltará ao Brasil para desfilar com a União da Ilha em 2025. “Inicialmente viria para visitar meus familiares e passar dois meses com a minha família, quando recebi o convite da escola. Agora fico direto até o carnaval, entre preparação e as aulas na academia, bem como lidando das questões emocional e nutricional”, diz a dançarina.

Karla é uma artista multifacetada: dançarina, professora de yoga, coreógrafa e criadora. Essa pluralidade reflete sua visão ampla sobre a arte e reforça sua luta pelo respeito e pela dignidade da profissão de dançarina. Em um cenário onde a dança é muitas vezes reduzida à viralidade de plataformas como o TikTok, Karla destaca que o ofício vai muito além disso. Ela explica: “Hoje em dia, muitas pessoas acham que dançar é só reproduzir as coreografias do TikTok. Tornou-se algo acessível a todos, e isso é lindo em seu aspecto popular, porque a dança é uma expressão que deve ser para todos. Mas precisamos valorizar o artista profissional, aquele que se dedica, estuda, e está em palcos, na televisão ou nos eventos. Ainda enfrentamos, no Brasil, uma dificuldade de compreender e valorizar a arte como profissão séria, especialmente a dança. É um desafio que persiste, mesmo sabendo que somos um povo que dança muito. Em outros lugares, como fora do país, sinto que essa valorização do profissional da dança é maior, mas por aqui ainda é um processo em construção.”

Karla Klemente vai ser musa da União da Ilha em 2025 (Foto: Lucio Luna)

Segundo a artista, que mora há um poucos mais de um ano e meio no México, há, internacionalmente, ainda uma visão estereotipada das mulheres brasileiras. E isso não é muito diferente por aqui. As pessoas têm uma ideia construída sobre a mulher brasileira que não reflete a realidade. “Acho que em razão da beleza da mulher brasileira, da nossa sensualidade natural, do samba, há uma leitura equivocada. A gente tem uma naturalidade em expor o corpo que não existe no México, que é um país muito mais machista que o Brasil – e eu achava que não havia nada mais machista que os homens brasileiros. Uma mulher que é bailarina, que dança com o bumbum de fora, é vista de forma preconceituosa e sexualizada. Os homens nunca sabem como chegar, como falar, como abordar. Para eles é algo pouco comum, pouco natural é natural. Então a gente acaba tendo que se colocar de forma mais impositiva para ser respeitada”, afirma ela, ressaltando que não vivenciou no país latino nenhuma forma de assédio.

Porém, o mais próximo disso que experienciou não foi lá, mas aqui no Brasil mesmo. Há 10 anos, ela e outras modelos fizeram um toplessaço” em Ipanema e em Copacabana para reivindicar o direito de ir à praia e ficar com seios à mostra. “Eu sentia muito que as pessoas não viam como essa forma natural da beleza feminina, do corpo da mulher como ele pode ser exposto, como um empoderamento nosso. E recebi muitas críticas, especialmente das mulheres. Nosso corpo ainda é privado de liberdade”.

Quando se é bailarina – e especialmente uma bailarina do antigo programa do Faustão – nossa imagem já é remetida à de um corpo sexualizado em vez de um corpo que se move com beleza e arte. Não somos vistas como um corpo feminino que dança – Karla Klemente

Karla Klemente acredita que a dança profissional ainda é alvo de preconceito (Foto: Lucio Luna)

BADERNA!

O enredo da União da Ilha para 2025 revisita a história de Marietta Baderna (1828-1892). Italiana radicada no Brasil, de tão transgressora seu sobrenome virou sinônimo de bagunça, algazarra. E sua transgressão nada mais era que dançar umbigada, lundu e ritmos africanos – inclusive com escravos. O que gerou grande comoção popular. Assim como Baderna, Karla desbravou outros países para levar sua dança e sua verdade de expressão. E é isso que ela vai representar no desfile da escola insulada, defendido pelo carnavalesco Marcus Ferreira. “Eu represento uma fase da Marieta Baderna mais popular e devo estudar esse movimento afro-brasileiro. Desde 2022 estou no México e tinha a ideia de trabalhar lá como coreógrafa. Naquele País, cheguei a trabalhar num circo, num ato em cima de um elefante – em sua primeira ida ao país latino, em 2008 – , o que parece coisa de outra época”. Conta Karla que seu planejamento inicial, de ficar poucos meses, acabou se estendendo e ela permaneceu por um ano e meio.

Assim como Marieta Baderna, vejo a mulher nesse lugar de reivindicação de espaço, de uma luta que a gente vem fazendo e que ainda não tá conquistada. Nós bailarinas ainda somos alvo de preconceito. Muitas colegas deixavam de dançar por não conseguirem ser vistas como atrizes competentes, em razão de saberem dançar – Karla Klemente

Karla Klemente está há quase dois anos no México e leva a cultura brasileira ao país latino (Foto: Lucio Luna)

ESTRANGEIRA

Quando se mudou para o México, Karla encarou um recomeço desafiador, apesar de sua bagagem profissional no Brasil. No início, o idioma foi um dos maiores obstáculos. “Achamos que o espanhol é fácil, mas a sonoridade é muito diferente, e só depois de seis meses comecei a me comunicar melhor. Mesmo tendo uma carreira razoavelmente consolidada no Brasil como coreógrafa, lá eu era apenas mais uma estrangeira tentando mostrar a que vim. Não adianta chegar com currículo em mãos; é preciso construir sua credibilidade. Aos poucos, consegui apresentar meu trabalho e trazer novas referências sobre dança brasileira. Lembro que no México as pessoas dançavam samba sem muita conexão com as raízes ou com um vestuário adequado, usando referências antigas. Foi gratificante introduzir algo mais autêntico no programa da TV Azteca.”

Ex-bailarina do Faustão, Karla Klemente será musa da União da Ilha e fala do impacto do TikTok na dança profissional (Foto: Lucio Luna)

Karla também se emociona com as nuances da arte e da vida que despertam a sensibilidade. “A arte e a música me tocam profundamente, assim como a liberdade de expressão e a escuta do corpo. Estamos tão envolvidos no dia a dia que esquecemos de ouvir e observar nosso próprio corpo, nossa essência. Momentos de conexão, de abraçar a vida e essa liberdade criativa, me fazem transbordar. É isso que me emociona, é isso que me faz vibrar.”

Karla Klemente performando num elefante, no México, em 2008 (Foto: Arquivo Pessoal)

No universo plural de Karla Klemente, onde a arte se torna extensão do corpo e da alma, cada passo é um manifesto, e cada gesto, um grito de liberdade. Seja desafiando preconceitos no Brasil, ressignificando o samba no México ou encarnando a irreverência de Marietta Baderna na passarela da União da Ilha, Karla não apenas dança — ela reivindica, transforma, transborda. Sua trajetória nos lembra que a dança é mais do que movimento; é resistência, é poesia viva, é o corpo em diálogo com o mundo. Assim como Baderna, Karla faz de sua arte um convite à reflexão: que espaço estamos dispostos a abrir para a verdadeira expressão da mulher e do artista?