Campeã do Drag Race Brasil, Organzza analisa posicionamento afirmativo LGBT e luta contra a sorofobia


Vinícius Andrade é o nome por trás de Organzza, a campeã do primeiro Drag Race Brasil. O grande sucesso do programa revela que há um grande público consumidor para entretenimentos segmentados como este, voltado ao público LGBT. Aliás, a atração do Prime Video é, também, revolucionária, pois que dá a esta linguagem a importância que merece. O ator também discute a sorofobia – preconceito a pessoas que convivem com o HIV – do qual foi alvo durante sua participação no programa e o racismo que o acompanhou/acompanha durante a vida. A Internet tende a tornar tudo polarizado e a transformar tudo em discurso de ódio. Desde o meu primeiro dia no programa houve ataques a mim, movimento que objetivavam me desvalorizar ou aniquilar e um desses movimentos foi sobre o fato de eu viver com o HIV. Apesar do hate, Vinícius disse haver “recebido muito amor também. Fui a drag que mais viajou pelo programa nos últimos três meses. Fui a lugares que nunca sonhei ir e andei de avião pela primeira vez, graças ao programa”. E o ator antecipa-nos que lançará um novo projeto teatral para 2024 sobre arte drag, já com a intenção de tirar essa manifestação artística dos lugares marginalizados

*por Vítor Antunes

Vinícius Andrade. Porém, o nome que o fez famoso é o mesmo que batiza um tecido fino, nobre, de festa, que transita entre a nobreza e a elegância: Organzza, a campeã do Drag Race Brasil, primeiro projeto da franquia RuPaul Drag Race a desembarcar no Brasil. RuPaul é uma das mais importantes drag queens americanas e por lá o programa está na 15ª temporada. Quanto a Vinícius, ele é cria de Coelho Neto. Com a dignidade de quem é cria e não é criado, o ator colhe os louros de sua participação e triunfo no programa do Prime Video. Ele fala sobre ser um corpo divergente da norma branca-cis-hétero: “Eu poderia ter alguns bloqueios para acessar alguns lugares que vissem que sou corpo LGBT. É algo que poderia ser escondido, inclusive. Porém, diferentemente, ao ser um corpo preto isso chega à frente. É a primeira coisa que veem a mim, antes mesmo de me reconhecerem como bicha afeminada”.

Nesta conversa, tão extensa como esclarecedora, o ator antecipa-nos que lançará um novo projeto teatral para 2024 sobre arte drag, já com a intenção de tirar essa manifestação artística dos lugares marginalizados “um espetáculo drag performativo no teatro e pelas cidades”, segundo ele diz, objetivando ocupar os espaços de arte formal. Além disso, Vinícius fala sobre sua experiência no primeiro Drag Race Brasil, em meio a sentimentos conflitantes. Ainda que tenha saído vitorioso – ou vitoriosa através de Organzza – precisou enfrentar racismo, ofensas homo e sorofóbicas e duras batalhas. “Quando ouço dizerem que não há um preto bem sucedido que não seja arrogante, eu questiono. Será mesmo que não há ou essa pessoa não admite um que não seja subserviente?”

Entre outros assuntos importantes debatidos, e que acabou por ganhar a Internet foi o tema da sorofobia – preconceito às pessoas HIV positivas. Houve um grande confronto entre os fãs de Organzza e os de Helena Malditta, outra participante do reality, sobre esse assunto. “Eu vivo com o HIV há pouco tempo, e felizmente, graças ao SUS e à tecnologia, as coisas não são mais como antigamente. Tenho qualidade de vida, talvez até mais hoje. Faço consultas regularmente e me cuido. Esse é um primeiro ponto. Hoje o HIV é algo como uma doença crônica, semelhante ao diabetes ou hipertensão. A Internet tende a tornar tudo polarizado e a transformar tudo em discurso de ódio. Desde o meu primeiro dia no programa houve ataques a mim, movimento que objetivavam me desvalorizar ou aniquilar e um desses movimentos foi sobre o fato de eu viver com o HIV. Eu jamais seria conivente com ataques sorofóbicos”. Conforme citado anteriormente, os fãs de Organzza e de Helena Malditta entraram em confronto com acusações mútuas ante ao fato de as duas participantes conviverem com o HIV.

Voz ativa do movimento LGBT, Vinícius Andrade revisita sua trajetória como Organzza no Drag Race e questões sociais (Foto: Divulgação)

AGRIDOCE

Fazenda Botafogo. O bairro não-oficial localizado entre os efetivamente bairros de Acari e Coelho Neto, no Rio de Janeiro, era famoso por nomear a estação de metrô homônima, no extremo norte da Linha 2 carioca. Hoje há mais um nome para somar-se àquela região. O de Vinícius Andrade, a Organzza. “Continuo morando em Coelho Neto, hoje, porém, mais próximo da Fazenda Botafogo. Frequentei muito o Quilombo do Candeia, onde fiz aulas de teatro, dança e quadrilha de festa junina”.

Inicialmente fundada como uma escola de samba não competitiva, o Quilombo, após a morte do compositor Candeia, em 1975, acabou transformando-se em centro social. Núcleo de leveza numa região marcada pela violência. Acari e Coelho Neto são um dos bairros com o IDH mais baixo da cidade do Rio. Acari ocupa a posição 139ª e Coelho Neto, a 134ª no ranking de qualidade de vida publicado pela Prefeitura da Cidade do Rio, entre os 158 bairros da capital fluminense. O sub-bairro Fazenda Botafogo tem esse nome por ter abrigado, no passado, um rico engenho de açúcar. Parece que, historicamente, a região teve que conviver com essa energia agridoce. Algo que parece estar se repetindo com o ator Vinícius, que está lidando, simultaneamente com a fama, a glória, o hate e o preconceito: “Está sendo uma loucura. Tudo ainda está acontecendo de maneira intensa. É agridoce. Tem coisa triste, tem coisa bonita… É um turbilhão”, revela.

Ser um corpo divergente numa região periférica, para o ator, é “uma batalha diária que nunca vai passar. Sou um corpo preto e LGBT que visivelmente compõe esses espaços. A grosso modo, há muitas questões e provações, muita coisa envolvida. Como venho de uma família de maioria preta e suburbana isso me preparou de maneira diferente por que cresci tendo entendimento e letramento racial, portanto, sem auto ódio com meu cabelo e raízes, por exemplo. Isso me coloca num lugar diferente no lidar com o racismo e/ou LGBTfobia. Aprendi desde cedo que o que não é sobre mim não me pertence. O racismo das pessoas eu deixo com elas e isso não me afeta”, diz.

Muito se cobra e se questiona o aumento da quantidade de siglas e de nomes que explicariam a causa LGBT – atualmente LGBTQIAPN+. Há quem diga ser desnecessário tanta sigla ou desconhecer-lhes os significados. Segundo Vinícius, “já passou do tempo de essas pessoas irem atrás de informação. Mas há de se considerar também que estamos num país e numa sociedade de hegemonias, de hierarquias, de pessoas cis-héteros-brancas que acham que são superiores, razão pela qual não precisam ir atrás de conhecimento por se acharem sabedoras de tudo. Estamos vivendo um momento em que é preciso falar sobre algumas coisas e não podemos permitir que preconceitos sejam perpetuados. Há coisas que precisam ser ditas, sim. Sobretudo, há quem nos diga que só falamos sobre racismo e LGBTfobia. Temos certeza de que não gostaríamos de falar a todo tempo sobre isso, mas é importante ter isso sempre em pauta”. E o artista prossegue: “Em determinados pontos cabe justificar, explicar, falar. Mas em outras situações, as pessoas que agem de maneira preconceituosa sabem onde procurar informações, mas opta por não querer.  Não sou eu quem vai ficar batendo de frente”.

Se há uma confusão entre o que é ser gay, transformista, ou transexual, não cabe à pessoa LGBT, agir pedagogicamente explicando quem é o quê – Vinícius Andrade

Vinícius Andrade:/Organzza: letramento LGBT é algo acessível (Foto: Ira Berillo)

Na televisão dos anos 1980 e 1990 era recorrente haver concurso de transformismo na televisão, época em que a arte já era muito popular, ainda que as pessoas LGBT fossem alvo de preconceito. Não havia um largo debate sobre o tema naquela época, e esta arte era colocada no lugar do exótico, do risível. Segundo Vinícius, “A TV era uma loucura! Muita coisa margeava o fetichismo de uma sociedade um tanto hipócrita. Naquela época se faziam essas apresentações, porém era necessário abrir algumas concessões. De alguma forma, colocavam-se à serviço do ridículo para uma sociedade hétero-cis rir. Quando hoje se questiona, quando se nega a ocuparmos esse lugar, e pedimos que nos vejam com respeito à nossa arte, diminuiu o nosso tempo de tela nos horários nobres, ou durante o dia. Não queremos servir para o riso. Hoje há a Pablo Vittar e a Glória Groove, que são cantoras de muito sucesso e que aparecem nos programas diurnos, mas são higienizadas numa normativa padrão para serem aceitas pela galera do sofá, razão pela qual fazem concessões”.

“Quando batemos mais à porta e sabemos que não é isso que elas querem de nós acabamos por não ficarmos expostos na TV com o antigamente – Vinícius Andrade

Ainda que a expressão “transformista” não seja mais tão popular, Organzza nos diz que ela não é incorreta. “O termo transformismo não é inadequado nem antiquado. Há quem se denomine assim, como a Miranda Lebrão. Eu mesmo me identifico muito mais com a ideia de ser transformista do que ser drag queen. O termo drag veio forte por conta do programa Ru Paul Drag Race, mas arte do transformismo é anterior”. Ressalta o artista, porém, que há quem confunda o transformismo com transexualidade, e aí sim, há um equívoco. Com a popularização do Drag Race isso ajudou a desmarginalizar a arte drag? Para Vinícius, sim “Furou muitas bolhas, chegou no mainstream. Ainda que tenha demorado a chegar ao Brasil. É um programa que existe há 15 anos e que reverberou aqui na cena drag nacional. Mas sem dúvida, RuPaul fez tornar mais acessível levando esta arte para outros lugares além das boates, das saunas gays, das festas de madrugada, ou inacessíveis. Acho um grande benefício haver sido difundido isso através do programa.

Eric Barreto (1962-1996) era um transformista, famoso por interpretar Carmen Miranda e estar semanalmente no Programa Silvio Santos (Foto: Reprodução)

Organzza reviveu uma Carmen Miranda futurista no Drag Race Brasil (Foto: Ira Barillo)

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SHANTAY, YOU STAY!

Já há muitos anos havia a promessa de que haveria um Drag Race no Brasil. Quando veio, nem todo mundo achou que fosse real. Uma delas foi Vinícius/Organzza. “Eu estava no Rio, no pós pandemia, trabalhando presencialmente no Rock in Rio e quando soube, disse que não ia me inscrever. Shannon Skarlet – outra participante do reality, igualmente drag – inscreveu-se junto comigo, gravamos tudo numa noite, e eu pensei que jamais seria chamada. Tanto que mandei no último dia e no último momento”, relata

Eu estava parando de fazer drag. Estava desistindo. Ia voltar para o teatro, para a faculdade… Especialmente depois da pandemia as coisas estavam ainda mais difíceis, por que as casas de show fecharam e os espaços diminuíram. Estava me encaminhando para trabalhar com coisas que não envolviam show de drag – Vinícius Andrade

Haver participado do Drag Race Brasil em sua primeira edição mudou não apenas a vida de Vinícius como “das 12 participantes. Desde a relação com contratantes e com o público. Estar numa plataforma como essa é a realização de um sonho. Já participei de vários concursos de drag, mas estar neste foi uma vontade e vence-lo também. Todavia, vivemos num mundo e num País onde mesmo a comunidade LGBT tem muito ódio contra si. Fomos criados para não nos aceitar, como se o que fizéssemos fosse errado e essas pessoas acabam projetando isso nas outras, que estão num lugar de frustração por ver pessoas que fazem o que elas gostariam de fazer”. Vinícius/Organzza refere-se à onda de hate do qual foi alvo nas redes sociais. “A Internet é, também, um mal da sociedade. Lugar onde as pessoas destilam suas raivas. Foi doloroso sofrer ataques, ler coisas e as palavras às quais fui ofendido. Era racismo, sim. Não era só opinião ou gosto pessoal”.

Cheguei a ler coisas como: “Tomara que você volte a lavar banheiro”. Para essas pessoas, o que elas querem é que alguém como eu só ocupe esse lugar. Acham que se me posiciono sou arrogante ou soberbo, quando reconheço o que sei fazer. Nunca disse ser melhor, apenas reconheci ser bom. Querem subserviência, e isso não admito – Vinícius Andrade

Apesar dos hate, Vinícius disse haver “recebido muito amor também. Fui a drag que mais viajou pelo programa nos últimos três meses. Soube de um menino que mudou o horário de trabalho dele só para me ver e isso é importante. Fui a lugares que nunca sonhei ir e andei de avião pela primeira vez, graças ao programa. Estou me agarrando nisso, nesse momento. Não vou perder eu tempo com quem não gosta de mim e não me quer. O que os odiadores querem de mim é a minha atenção e isso não vou dar. Quero ficar com o amor.

Vinícius Andrade é oriundo de Fazenda Botafogo, Zona Norte do Rio (Foto: Ira Barillo)

Entre outros assuntos importantes debatidos, e que acabou por ganhar a Internet foi o tema da sorofobia – preconceito às pessoas HIV positivas. Vinícius/Organzza prossegue dizendo que “o elenco do programa não se posicionou sobre todo assunto o qual foi proposto. Eu tive que ficar pedindo e senti uma pressão tão absurda, que cheguei a ver em minhas redes sociais até mesmo ameaças de morte e coisas criminais. Me senti coagido. A forma como me posicionei sobre o HIV, obviamente não é a aquela com a qual gostaria de ter falado”, pondera. Ainda de acordo com o artista, não é algo que devamos deixar passar a oportunidade de se conscientizar sobre esse tema. Nos Anos 80 e 90 falava-se sobre preservativos e conscientização. Hoje, não. Há uma epidemia, não apenas na comunidade LGBT, mas também entre os heteros que convivem com ele sem saber”.

Um dos temas que move a arte de Organzza é o afrofuturismo. “Entendo que não existe presente sem olhar para o passado e sem construir futuro. As pessoas costumam representar um período do passado negro, e o pior período, achando que a história negra se resume e restringe à escravização, quando na verdade há um passado muito tecnológico, glorioso. Há muto do que vivemos hoje que vem de lá. O meu último look no programa dialogava com as pirâmides do Egito e trazia essa inteligência. O afrofuturismo indica que há um futuro tecnológico, mas que resgata o nosso passado anterior à escravização. Já que sabíamos o que era espiritualidade, beleza, inteligência. Quando se restringe em pensar na negritude apenas pelo viés da escravização é preciso pensar que em nós, há sim, ancestralidade. O Museu de Berlim é detentor do rosto de Nefertiti e não o Egito. Isso nos foi tomado. Não nos restringimos aos quilombos e pelourinhos, mas às realezas”, finaliza.