“Trash: A Esperança Vem do Lixo” encerra o Festival do Rio com mensagem sociopolítica e a globalização do cinema nacional


Produção britânica rodada no Brasil – com Wagner Moura, Selton Mello, Rooney Mara e Martin Sheen no elenco – o longa assinado pelo diretor de “As Horas” e “Billy Elliot” é contundente, mas quem brilha de verdade são os protagonistas-mirins!

*Por João Ker

Durante o Festival do Rio, o Cinépolis Lagoon foi o local escolhido para ferver com lançamentos, tapetes vermelhos de estreias importantes, além de aparições badaladas de estrelas do cinema, em sessões repletas de convidados especiais e diretores de elenco. Portanto, nada mais justo que o endereço na Lagoa fosse o escolhido para receber a pré-estreia de “Trash: A Esperança Vem do Lixo”, co-produção entre Inglaterra e Brasil escolhida para fechar o evento. Com a presença de Wagner Moura, Selton Mello, Rodrigo Santoro, Mariana Ximenes e outros astros na cerimônia, o espaço ficou até pequeno para tanta tietagem, representantes da imprensa e personalidades.

A escolha de “Trash”  como título de encerramento pode parecer em princípio uma estratégia de marketing, mas o thriller contemporâneo tem forte mensagem, tanto no roteiro quanto nas entrelinhas. A história é uma adaptação do livro homônimo lançado em 2010 por Andy Mulligan. No caso, o autor retrata a história de três garotos que trabalham e moram em um lixão e encontram uma carteira perigosa, que guarda um segredo essencial tanto para a polícia corrupta quanto para políticos ladrões. A partir daí, uma perseguição fatal começa a se desenvolver pelas ruas e periferias do Rio de Janeiro, com os garotos dependendo apenas de sua malandragem para continuarem vivos e descobrirem o porquê de tamanha avidez por seus desnutridos pescocinhos. O curioso é que tudo isso se passa em um país de terceiro mundo fictício, sem nenhuma menção ao Brasil. Ainda assim, o autor já havia ministrado aulas por aqui e a história se encaixa perfeitamente com uma realidade encarada diariamente pelo brasileiros contemporâneos: corrupção, impunidade, abuso de poder, miséria, abandono infantil e a impotência de classes sociais menos favorecidas diante da autonomia dos poderes públicos.

O filme é assinado por Stephen Daldry, diretor mais acostumado ao drama e responsável pelos indicados ao Oscar “Billy Elliot” (2000), “As Horas” (“The Hours”, 2002) e “O Leitor” (“The Reader”, 2008), mas que, pelo primeiro, já havia demonstrado intimidade na hora de dirigir crianças. Em entrevista a HT, ele conta sua motivação ao adaptar a história para a realidade do Brasil: “Fernando Meirelles. Por mais de um ano eu tive uma empresa aqui e já passei por essa experiência de trabalhar com profissionais brasileiros do ramo, então sabia da existência de um mecanismo de apoio, uma ótima equipe e, além disso, vocês têm uns dos melhores atores no mundo”, diz, apontando para Wagner Moura, que estava logo ao seu lado no tapete vermelho. E, quando lhe perguntam se ele já conhecia o trabalho do ator, a resposta vem na hora: “Claro! Todo mundo conhece! Filmar no Brasil foi uma alegria. Foi muito fácil, o set era muito feliz. As crianças foram caóticas, eufóricas, maravilhosas e brilhantes, mas todos os atores com quem nós conversávamos ficavam bastante preocupados com o bem-estar delas”.

Sobre a importância de “Trash” encerrar o Festival, Stephen comenta: “É um filme sobre esperança, justiça e otimismo para com as crianças. Nós tentamos fazer um filme sobre o que as crianças sentem a respeito do país. Então a pergunta não é por que estamos fechando o Festival, mas sim por que não abrimos?”, brinca, com aquele humor peculiarmente britânico.

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Fotos: Zeca Santos

“Eu acho que a principal razão de ter trazido o filme para o Brasil é que o país tem uma cultura de cinema extraordinária. Então, nós tivemos acesso a produtores brilhantes, além de eu já conhecer alguns atores brasileiros. Acho que esse foi um grande motivo. Logo, quando decidimos vir para cá, precisamos mudar algumas aspectos da história para torná-la mais verdadeira em relação ao Brasil. Por exemplo, não havia nenhuma cena específica na favela e foi algo que adicionamos nesta transposição. O fato de existir cenários dentro da água também foi algo desenvolvido especialmente para cá”, explica o roteirista Richard Curtis, responsável pela adaptação cinematográfica de “O Diário de Bridget Jones” (2001).

Wagner Moura, que recentemente tem procurado expandir sua carreira em direção ao mercado internacional com filmes como “Elysium” (Neill Blomkamp, 2013), se disse honrado por encerrar o Festival e vê a internacionalização do país através do cinema com ótimos olhos: “Nós somos um dos países do mundo que produz bom cinema e somos respeitados por isso. Temos boa equipe, bons atores, boas histórias e fazemos bons filmes”.

Talvez o maior símbolo de internacionalização do cinema nacional – falando-se de atores – seja Rodrigo Santoro, que tem currículo extenso e bem conhecido pelo público brasileiro. Presente na cerimônia para prestigiar o roteirista – que ele diz ser um gênio ativista -, o ator explica o que acha dessa recém-adquirida faceta da nossa indústria visual que, aos poucos, vem tentando desconstruir clichês no imaginário global e mostrando a verdadeira pluralidade dos nossos talentos: “O país está absolutamente em foco hoje em dia, estamos em evidência por n razões. Eu conheço o Richard [Curtis, roteirista] desde “Simplesmente Amor” (“Love Actually”, 2003), no qual atuei, e ele não é um estrangeiro se aproveitando daquilo que o Brasil está em alta para fazer um filme por aqui. Ele é um ativista! Trabalha no mundo inteiro,  e é contra a pobreza no mundo”.

E o ator continua: “Esse filme é uma espécie de ativismo, eu entendo como a forma que ele encontrou para expressar o que pensa. Tem um lado social muito grande. Nesse caso específico eu acho que aconteceu isso. Agora, realmente também acho que o Rio está em evidência e eu acho que o Festival cresceu bastante. Eu encontrei por aqui cineastas do mundo inteiro e acho que estamos no mesmo nível que os outros eventos do gênero mundo afora”, declara Santoro. A importância do filme é tamanha que Selton Mello confessa ter voltado a sentir tesão por atuar, além de dizer que provavelmente embarcará em algum projeto futuro com Wagner Moura.

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Fotos: Zeca Santos

Realmente, “Trash” demonstra possuir importância além do mero filme de gênero, aquele de ação e perseguição. E chega a ser redundante falar que Wagner Moura está excelente como o mocinho José Ângelo, além de Selton Mello encarnar de maneira espetacular o delegado corrupto e agressor de crianças, Frederico. Rooney Mara, atriz americana que também tem sido figurinha fácil nesse tipo de produção, confirma sua verve dramática e, com um ocasional português calejado, porém charmoso, também comparece com competência nas cenas em que aparece na tela como a voluntária Olivia.

Mas esqueça Selton, Wagner, Rooney e até o padre inconformado vivido pelo ótimo e sempre celebrado Martin Sheen. As verdadeiras estrelas do filme são os três atores mirins principais, Rickson Tevez (Raphael), Eduardo Luis (Gado) e Gabriel Weinstein (Rato), que respondem belamente à direção de Daldry, que repete aqui a excelente atuação que teve com Jamie Bell em “Billy Elliot”. A performance do trio como crianças precoces moradoras de um lixão surpreende pela maturidade com que eles lidam com o texto e mais ainda quando se descobre que eles não são atores profissionais, mas marinheiros de primeira viagem.

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Fotos: Divulgação

Desde Darlan Cunha e Douglas Silva como Laranjinha e o Acerola em “Cidade dos Homens” (2002) que não se via atores infantis tão talentosos, capazes de passar aquela malandragem típica das ruas e periferias através de uma combinação que mescla expressão corporal e entonação de texto. O enredo que eles vivem na tela não apenas convence, mas também surpreende pela maestria com que eles escalam qualquer pedaço de parede ou superfície, como lagartixas ligeiras e espertas. Por mais que Richard Curtis e Felipe Braga (responsável por parte do roteiro em português) mereçam crédito pelos rápidos diálogos e falas inteligentes, não é qualquer criança de 15 anos que, em seu primeiro papel, poderia oferecer tanta veracidade a máximas como “Assim cê me quebra” ou a emocionante “Deus lhe proteja”, que Raphael dirige a Frederico.

E, sem dúvida, quem merece ênfase é, obviamente, Stephen Daldry, que consegue reproduzir aquele clima incansável e frenético de um thriller, de prender o fôlego do público desde a primeira cena, equilibrando a tensão com humor e leveza em um filme que, em outras mãos, talvez ficasse arrastado. A fotografia também tem seus momentos de destaque, revelando a beleza singular e exótica de locações como a Central do Brasil, o Cemitério São João Batista ou até mesmo um lixão carioca à noite.

E, segurando os dedos para não soltar spoilers, é preciso ressaltar que o final, apesar de tocante, talvez seja um tanto melodramático. Ainda assim, é preciso entender que não só “Trash”, mas o próprio Festival do Rio, ao escolhê-lo como filme de encerramento, refirma uma declaração política que soa terrivelmente atual, ainda que a mesma seja atemporal e pudesse ter sido proferida décadas atrás: impunidade, injustiça social e corrupção só mudam através do amadurecimento social. Nem que, para isso, esse pensamento precise contar com a ajuda providencial da mais contundente das mídias audiovisuais:  o cinema.

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Fotos: Zeca Santos