“Saint Laurent”: vistosa cinebiografia do mítico estilista recupera os dez anos mais atrevidos da moda e do século XX


“Saint Laurent” é o quinto filme, desde 2002, que explora a espetacular trajetória do mais influente couturier francês de todos os tempos, mas a fascinação do público pela vida e pela época de Yves Saint Laurent parece estar longe de ser saciada

* Por Flávio Di Cola

2014 parece ser mesmo o ano YSL. Depois do lançamento no início da estação de Yves Saint Laurent dirigido por Jalil Lespert, estrelado por Pierre Niney e pelo talentoso ator-diretor Guillaume Gallienne, uma nova cinebiografia do genial estilista (1936-2008) aporta nesta quinta-feira (13/11)  nas telas brasileiras: Saint Laurent, de autoria de Bertrand Bonello – já conhecido do público local através do exótico L’Apollonide: os amores da casa de tolerância (L’Apollonide: souvenirs de la maison close”, 2011), que passou pela Seleção Oficial do Festival de Cannes deste ano e ainda representará a França na categoria de ‘Melhor Filme Estrangeiro’ do Oscar 2015.

Yves Saint Laurent (à esq) e o ator Pierre Nimey (dir), que o interpreta em "Yves Saint Laurent", lançado no ínício de 2014 (Foto: Reprodução)

Yves Saint Laurent (à esq) e o ator Pierre Niney (dir), que o interpreta em “Yves Saint Laurent”, lançado no ínício de 2014 (Foto: Reprodução)

Desta vez, quem encarna Saint Laurent é o belo (e ótimo) ator parisiense Gaspard Ulliel que – embora jovem – já desenvolveu uma sólida carreira na televisão e no cinema. Em entrevista concedida na semana passada à imprensa brasileira durante a première do filme no Rio de Janeiro, Ulliel afirmou que recriar a persona do complicadíssimo estilista foi um dos desafios mais pesados da sua vida. Uma opinião que deve ser respeitada, não só pelas evidentes dificuldades de recriação do universo de Yves Saint Laurent entre 1967 e 1976, como também pelo fato de que o lançamento desta versão foi precedido pelo sucesso de Pierre Niney como Saint Laurent – outro ator jovem, já muito premiado e reconhecido como o próprio Ulliel. Aliás, é bom lembrar, que Gaspard já enfrentara, em 2007, outro grande desafio das telas: representou o diabólico Hannibal Lecter na flor da juventude em Hannibal – A origem do mal (Hannibal Rising). Dois anos antes, em 2005, recebera um importante reconhecimento do cinema gaulês: o César (o Oscar da França) de ‘Melhor Ator Revelação’ por “Un long dimanche de fiançailles” (2004).

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Una vez que as comparações entre os dois filmes serão inevitáveis, é necessário avisar desde já que o Saint Laurent de Bonello é tão caprichado e bonito como o Yves Saint Laurent de Lespert, mas com a diferença de que este optou por uma cobertura muito mais ampla e linear da trajetória do estilista, enfatizando bastante a figura do companheiro de cama e de negócios Pierre Bergé. Já Bonello decidiu-se por um recorte biográfico concentrado na década que representou o apogeu da genialidade, do poder e da influência de Yves Saint Laurent sobre o planeta-moda: do final dos anos 1960 – quando seus figurinos para Catherine Deneuve no filme “A bela da tarde” (La belle de jour, 1967, de Luis Buñuel) correram o mundo e inauguraram o lifestyle contemporâneo, até a sua ruptura com Bergé no campo amoroso (1976), já que continuaram unidos como parceiros na administração do ateliê e da sempre bem-sucedida marca.

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Além de mais recortada no tempo, a versão ora em lançamento desenvolve uma narrativa mais fragmentada e agitada – talvez para captar o frenesi existencial de toda uma época e de personagens movidos por doses cavalares de álcool, cocaína e haxixe, desesperadamente hedonistas e que introduziram no modus vivendi contemporâneo o culto ao individualismo e à notoriedade em um grau jamais atingido antes no contexto de uma França luxuriante e próspera. Para emoldurar ainda mais esse ritmo sincopado e acelerado, Saint Laurent abusa de malabarismo e de pirotecnias cinematográficas que já entraram e saíram de moda várias vezes ao longo da história do cinema, como a tela dividida (o split screen, no vocabulário técnico), em que tomadas diferentes dividem simultaneamente pedaços da mesma tela com o objetivo de apresentar um assunto sob diversos ângulos e ao mesmo tempo.

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Entretanto, aos dois filmes não faltam todos os ingredientes mitológicos e folclóricos que povoam o imaginário associado à vida e à obra desse gênio tímido, mas obstinado; inseguríssimo, mas produtivo; egoísta ao extremo, mas divertido no seu círculo íntimo; nostálgico, mas visionário. Também não falham a reconstituição do clima insuportavelmente tenso do dia a dia do ateliê YSL, os desfiles históricos, as caçadas sexuais noturnas de Yves pelas ruelas de Paris (entre as quais emerge a participação de Louis Garrel); sua relação simbiótica com algumas modelos que traduziram em comportamento as suas criações, como a carioca Betty Catroux; suas brigas sísmicas com Pierre Bergé, as avassaladoras ondas de depressão e de agonia diante da percepção da suprema feiúra e vulgaridade do mundo que o arrastavam ainda mais fundo para o isolamento e o mutismo, para a busca desenfreada de prazeres, ou para o trabalho frenético.

Em cena: Gaspard Ulliel incorpora o fashion creator na reprodução de cena de um dos seus míticos desfiles (Foto: Divulgação)

Reconstituição primorosa em “Saint Laurent”: Gaspard Ulliel incorpora o fashion creator na reprodução de cena de um dos seus míticos desfiles (Foto: Divulgação)

Saint Laurent também traz no elenco um nome que vai aguçar a curiosidade do público que tem mais de 50 anos e que ilustra muito bem o clima de decadência que marcou o final da vida de Yves Saint Laurent: o ator austríaco Helmut Berger.  Sim, ele mesmo. Os últimos dias do estilista – que morreu em 2008 devido a um câncer no cérebro – é vivido pelo ex-sex symbol do jet set dos anos 1970 e ícone de Luchino Visconti em clássicos como Os deuses malditos (La caduta degli dei, 1969) e “Ludwig” (1973), hoje um monumento de ruína física e artística. Aliás, Berger foi uma testemunha bastante próxima da vida do estilista, pois integrava eventualmente o entourage de Saint Laurent, mas – segundo as más línguas – nunca passou do segundo escalão.

Todavia, esses dois filmes não se restringem apenas ao amargo registro da ascensão e queda de uma celebridade, pois neles ainda sobram deliciosas frases de efeito no mais legítimo estilo Yves Saint Laurent, ou seja, empapadas de auto-piedade e duvidosa auto-estima:“Amo os corpos sem alma, porque a alma está sempre em outro lugar” ou “Não vivi nada e estou cansado como tivesse 100 anos”, ou ainda, quando lhe perguntaram “Qual seria a sua maior infelicidade?, respondeu, “Ser careca”.

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Trailer do filme (Divulgação)

* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria