“Ninfomaníaca”: Lars Von Trier usa o vício do sexo para falar do vazio da existência


No filme estrelado por Charlotte Gainsbourg, Uma Thurman e Shia LaBeouf, o diretor traça um panorama sobre a solidão e a incapacidade da realização!

Lars Von Trier é um cineasta que gosta de surpresas. Adora dizer que vai fazer uma coisa, criar expectativa e, na hora agá, não é bem assim: acaba pegando a gente pelo pé. A surpresa até existe, mas não do jeito que o público esperava. Também sabe – e curte! – fazer marketing como ninguém. Há quem diga que o homem não está mais na velha forma de quando surgiu, nos anos noventa (época do Dogma), ou mesmo depois, em “Dogville” (idem, 2003). Nada disso. Após causar mal estar em Cannes, em 2011, quando foi acusado de ser antissemita, aproveitou logo para divulgar a ideia de “Ninfomaníaca” (Nymphomaniac, Califórnia Filmes, 2014), filme que entra em circuito amanhã. Naturalmente, todos pensaram que se tratava de um filme sobre sexo, com muitas cenas picantes e explícitas. Bom, elas até estão lá, mas o sexo – assunto que permeia todo o filme – existe como metáfora para falar de algo maior: o vazio existencial. Outra pegadinha do diretor.

 Ninfomaníaca” é produção de qualidade onde tudo faz sentido, nada está fora do lugar. A história da viciada em sexo que é encontrada no chão da rua (atirada por ela mesma ou por quem?), na chuva, por um homem de meia idade (vivido esplendidamente por Stellan Skarsgard), com rotina medíocre e que assume a função de confessor, é narrada didaticamente em capítulos, com Von Trier fazendo uso de figuras de linguagem para explicar, tintim por tintim, o que se passa na cabeça da personagem, como se fosse uma aula. Ou uma palestra com recurso de datashow, com o requinte de explicações que aproximam a azaração da pescaria. Equiparar o basfond da pegação à arte de pescar, e vulvas a iscas e anzóis, é, no mínimo, trazer para o cinema a leitura cínica daquelas associações que fazemos no dia a dia, em rodas de amigos, aproveitando para fazer blague das nossas vidas, ironizando a existência. Uma sacada e tanto. O realizador ainda aproveita esse contexto para debochar do próprio crítico de cinema, que enxerga imagens por trás de outras, tentando interpretar o filme, mas nunca chegando a botar a mão na massa. Como Seligman (Skarsgard), que, ao longo da narrativa, interpreta as fantasias e proezas sexuais da protagonista, mas também não prova o bolo, nem mesmo passa o dedo no glacê para sentir o gostinho, tendo de se resignar a ouvir o relato e, vez por outra, emitir impressões, como se fosse um psicanalista.

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Fotos: divulgação

Como o filme foi dividido em duas partes (a segunda chega às telas somente em março), ainda levará tempo para entendermos como a Joe adolescente interpretada por Stacy Martin – que não consegue sentir nada e, por isso, precisa desesperadamente se entregar ao sexo sem limite –, acabou desembocando na Joe madura e amargurada, figura masoquista, quase destruída e conferida a Charlotte Gainsbourg, que narra sua pífia existência ao eventual interlocutor. Mas, nessa primeira metade, dividida em capítulos, já é possível entender que a ninfomania é apenas uma ferramenta para o diretor falar de todos nós, viciados em sexo ou não, homens ou mulheres, hetero ou homossexuais. Afinal, preencher com sexo o buraco que existe dentro da gente nunca foi novidade e transcende o universo daqueles que têm distúrbios da libido. E, na sociedade urbana pós-revolução sexual, naturalmente essa prática se tornou quase uma premissa ou, pelo menos, algo contumaz, mas cotidiano. Ainda mais hoje, quando a tecnologia da informação, com todas as suas possibilidades (whatsapp, mídias sociais, chats de encontros, etc), rebaixa o ato de seduzir a um esporte umbigóide, selfie e banal, quilômetros abaixo da superfície, urdido no subsolo e se tornando mero arremedo daquela genuína caça ao desejo que é praticada no céu por águias de responsa.

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Fotos: divulgação

Para tanto, na reta final dessa primeira parte, surge a confirmação de algumas pistas deixadas pelo cineasta ao longo da projeção: a vida – e a incessante busca por algum sentido – de Joe pode ser dividida em três aspectos que, embora impossíveis de co-existir, representam aspirações comuns a todos os seres humanos, contraditórias sim, mas reais e em proporções variáveis. Ao fim dessas duas horas de filme, Joe revela que, embora continue não sentindo nada dentro de sua imensa solidão, consegue encontrar segurança naquele parceiro sexual que representa uma existência sem deslumbres, certinha e previsível como um papai-e-mamãe; furor animal em outro que a trata como um pedaço de carne pronto a ser devorado; e, por fim, o amor naquele que lhe tirou a virgindade (Shia LaBeouf), com quem cruza algumas vezes durante seu percurso e consegue imaginar uma história a dois, mesmo não querendo abrir mão de todo o resto. E é sobre essa incapacidade humana – a de se sentir pleno vivendo apenas um desses aspectos – e da impossibilidade de conseguir tocar adiante essas três facetas ao mesmo tempo, que Lars Von Trier revela ao expectador muito mais do que sexo: a utopia da plenitude eterna é mito tão fantasioso quanto o monstro do Lago Ness. Agora, resta esperar março para confirmar tudo mais que ele tem a dizer.