Luiza Braga: Da Amazônia ao candomblé, atriz detona suavização de sotaques e a invisibilização afrorreligiosa


A artista poderá ser vista na série “O Negociador”, da Amazon Prime, como Mariana, uma mulher que mesmo grávida é sequestrada e durante o rapto entra em trabalho de parto. Luiza celebra sua participação na obra do streaming e anuncia seus dois outros trabalhos: “Pororocas”, no qual aborda a religião afro através de mulheres do Tambor de Mina, e “Mulheres de Encruza”, que aborda o feminino sob várias perspectivas. Como uma mulher amazônica, ela discute a folclorização da região na arte e no audiovisual brasileiro, além de criticar a reiterada invisibilização da qual as religiões de matriz africana são alvo. Ainda mais aquelas que, como a sua, obedecem a uma outra liturgia. A prática do candomblé mina-jeje é totalmente diferente da iorubá-nagô, comum no Rio e na Bahia. “As pessoas estranham muito, olham muito diferente”, constata

*por Vítor Antunes

A Amazônia foi muito episodicamente retratada na televisão e também para filmes. Nascida na região – e autoclassificada como amazônida – Luiza Braga diz que antes de tudo é necessário “respeitar o local. Não basta chegar na floresta com os equipamentos e começar a filmar. É preciso entender as forças que ali atuam, tanto sociais como espirituais”. Nascida nos mururés amazônicos – entre a cidade de Cametá e a Ilha de Marajó – e criada em Belém, no estado do Pará, Luiza relata que no seu fazer artístico por diversas vezes teve que mudar o sotaque e fazer fonoaudiologia para falar como paulista ou carioca. O sotaque do amazônida (nativo da região da floresta) é bem diferente. E as pessoas não têm referência sobre esta forma de falar. Há quem pense que sou carioca. Quando retratam o Nordeste, por vezes pegam o sotaque baiano como referência quando este acento é totalmente diferente daquele praticado pelo sergipano, por exemplo”. Luiza Braga estará compondo o elenco de “O Negociador“, da Amazon Prime, série protagonizada por Malvino Salvador, além de estar na série ficcional “Pororocas“, realizada por um coletivo de artistas paraenses, o “Filhos de Iracema“. Estará também na montagem teatral “Mulheres da Encruza“, estrelado por ela e por Chris Ubach.

Outra das pautas que compõem a bio da atriz consta a sua vivência com o candomblé, e numa prática totalmente diferente daquela experienciada pelos povos de matriz africana do Centro-Sul. Luiza pratica outro rito da fé afro, o mina-jeje, muito difundido no Maranhão e no Pará e do qual muito pouco se fala. Nesta, a prática afro se ritualiza com a pajelança, com as raízes indígenas e a via dos caboclos. A atriz lamenta que haja ainda, e de forma ostensiva, preconceito religioso.

As pessoas agem como se tudo parecesse normal e aceito, mas já vimos recentemente, mães de santo viradas no orixá e que tiveram o culto interrompido, assim como gente sendo agredida por intolerância religiosa. No Brasil não há apenas preconceito com pessoas da religiosidade afro, mas com amazônida, com indígena, com trans pretas… Uma multidimensionalidade – Luiza Braga

Luiza Braga. Atriz pauta o protagonismo afrorreligioso e amazônico (Foto: Caio Oviedo)

AMAZÔNIDA 

No dicionário, “Amazônida” é aquele que nasce no estado do Amazonas. Porém, Luiza retoma uma outra acepção para o termo. Algo que remonta a uma ideologia trazida pelo jornalista Lucio Flavio Pinto, que diz que ser “amazônida envolve a individualidade da região, para cuja caracterização, existência e persistência, diz sobre a sua vinculação à água, à luz e à floresta, como um organismo integrado”. Criada em Belém e oriunda de um seio familiar marajoara e cametaense, Luiza Braga afaga a Amazônia com as suas palavras e desmente a mística que se estabeleceu absurdamente nas redes sociais de que não há boa sorte às produções audiovisuais que retratam a floresta. “A Amazônia tem proteção. Não dá para chegar lá de qualquer jeito, temos que baixar a guarda. Trata-se de um lugar com uma força ancestral. Num rio daquele tamanho a gente não consegue ver a margem. Ou seja, há uma dificuldade concreta. Não dá para se deslocar de carro, só de barco. Existe uma dificuldade, um mistério. Mistério este que os guias fazem questão de manter, por proteção. Para que a floresta não seja destruída, apropriada, colonizada”.

É necessário que haja uma compreensão concreta do que uma produção precisa para ocupar e filmar a Amazônia. É  uma região vulnerabilizada e pobre, que recebe menos dinheiro e estrutura – Luiza Braga

Amazônia, de 1991, na Manchete, foi um fracasso (Foto: Reprodução/Revista Manchete)

Na novela da extinta Manchete acima ilustrada, nenhum papel de destaque foi vivido por atores indígenas. A contrário. Para representá-los, em toda ocasião a emissora recorreu ao redface – ou seja, a caracterização absurda de transformar um ator branco em ameríndio. Há uma certa recorrência em representarem os amazônidas com algum grau de folclorização. Sob a perspectiva de Luiza, tal fato tem a ver com “o desconhecimento e despreocupação com o olhar para a Amazônia. O que aprendemos nos livros de História não é verdade. O Brasil precisa deixar de acreditar que ele acaba ao fim da Dutra [rodovia que liga o Rio a São Paulo]. Hoje está acontecendo de pessoas da Amazônia estarem ocupando espaços artísticos e isso é revolucionário, simbólico. Os artistas amazônicos não deixaram de produzir em suas praças. O que eles precisam é chegar ao mainstream”. É necessário que atores indígenas possam ocupar esses espaços”.

Há alguma resistência em alguns grupos de ativistas quanto ao uso da palavra “caboclo”. Perguntamos à atriz se, para ela, trata-se de algo ofensivo ou inadequado e ela disse não ofender-se. “Nós, nortistas, somos caboclos, somos mistura. A conotação desrespeitosa quem dá é o falante, quando classifica-nos como ignorantes e enganáveis. Eu vejo esta palavra e essas pessoas como a uma existência múltipla, diversa e que reúne no mesmo ser muitos saberes. Quem problematiza isso talvez tenha um saber que desconheço eu me entendo como uma mulher cabocla”, frisa.

O Sudeste hierarquiza os saberes e nesse sentido, a palavra “caboclo” pode ser vista como algo depreciativo. Mas, para mim, é uma manifestação de identidade – Luiza Braga

Luiza Braga acredita que o sudeste categoriza as pessoas e isso acaba reiterando o preconceito (Foto: Caio Oviedo)

MINA

Tradição mina-jeje, o “Tambor de Mina” é uma prática religiosa do candomblé especificamente presente no Pará e no Maranhão. Nesta, a questão afro diaspórica se soma à encantaria indígena, dos caboclos e dos saberes ancestrais. A soma de referências que compõem a magia da floresta: “Minha família, mesmo sendo católica, sempre usou das folhas e do misticismo indígena. Os nativos diziam que não podemos atravessar o rio nas horas grandes – às 6h, às 18h, ao meio-dia e à meia-noite, para não se encantar e poder voltar. Para não ser arrebatado. Isso compõe-lhes o cotidiano cultural”.

Quando afirma ser de candomblé, especialmente por ser uma mulher paraense, Luiza diz que via de regra “as pessoas estranham muito, olham muito diferente. Há na religião essa faceta mais conhecida que é a do candomblé da Bahia (iorubá-nagô) ou kêto, que está mais na mídia e é mais aceita nas artes cênicas”. Porém, a atriz relata que passa por adversidades oriundas do apagamento social às práticas afro: “Já me aconteceu de eu estar numa preparação de elenco na qual eu teria uma cena de sexo, e esta aconteceria numa sexta-feira e, sendo filha de Oxum com Oxalá, tive que me preparar especialmente para isto”. Sexta é um dia consagrado a Oxalá. A atriz prossegue: “A essas delicadezas o mercado ainda não está pronto. Tive que pedir muito agô para poder fazer a cena por tratar-se de um trabalho”. Oficialmente, agô é um africanismo oriundo da língua iorubá e significa um pedido de licença. Extra-oficialmente, a palavra também é usada como um pedido de desculpas.

Luiza Braga acredita que o sudeste categoriza as pessoas e isso acaba reiterando o preconceito (Foto: Caio Oviedo)

NOVOS PROJETOS

Luiza estará no “O Negociador“, série policial brasileira da Amazon Prime. O projeto é protagonizado por Malvino Salvador, um negociador da polícia e integrante do Grupo de Ações Táticas Especiais, responsável por resolver situações de crise complexas. No episódio que Luiza faz parte, ela é uma grávida que, ao ser sequestrada, entra em trabalho de parto. A personagem chama Mariana e coincidentemente, ou não, este nome tem um valor especial para a atriz: “Mariana é o nome da minha encantada. Dona Mariana é uma princesa e a padroeira do Tambor de Mina, além de haver sido homenagada pelo cantor de carimbós Pinduca”. Para Luiza, que nunca teve filhos, fazer uma gravida é um desafio. “Não tenho essa memoria emocionalmente densa. Uma mulher grávida não consegue amarrar o tênis, por exemplo. Fisicamente é desafiador”.

Ainda para este semestre, Luiza estará em uma montagem teatral junto à atriz Chris Ubach. “Temos um trabalho de video performance que irá para os palcos e estreia em outubro, no SESC, em São Paulo. Chama-se “Mulheres da Encruza“. Tem esse nome não apenas pelo sentido religioso, mas num lugar de escolha, de possibilidades, de encontro, de violência, das dimensionalidades de existir sendo mulher, na busca por uma autonomia de existência no corpo feminino. Uma encruzilhada à noite é especialmente perigosa para mulheres, por exemplo”. Como a religião faz parte do corpus artístico da atriz, ela produziu uma série chamada “Pororocas”, em Belém, com equipe e elenco locais, que conta a história de três mulheres da religiosidade Mina.

Luiza Braga em “Pororocas”. Ancestralidade na tela (Foto: Divulgação)

TV aberta ainda é um ambiente a se explorar. Luiza ainda não fez nenhum trabalho para esta plataforma: “A TV é um grande comunicador com as camadas mais humildes da sociedade e um artista que tem preconceito com as novelas é desconectado do que alcança a população . Muitas vezes este é o único acesso à cultura e arte dessas pessoas. Eu adoraria fazer TV e acho que ela tem um poder grande, especialmente em razão das mudanças sociais que estão acontecendo. As novelas têm se aberto a entender o Brasil”

Para encerrar, a atriz diz que o fato de ser uma mulher de Oxum a faz entender que “a orixá não mora no rio, ali distante, mas na minha cabeça, comigo. É uma força da natureza. Somos morada dos nossos orixás, caboclos, exus… Nunca me sentindo sozinha, pois tenho-lhes a companhia. E o meu fazer artístico tem o lugar da fala de uma mulher amazônida. Da terra dos unguentos, garrafadas e saberes ancestrais”.