Lara Tremouroux: um papo sobre carreira, arte, resistência e representatividade


Com o fim de Onde Nascem Os Fortes, onde viveu a frágil Aurora, a atriz empoderada fala sobre o passado, o presente e o futuro depois da série: ” o que eu quero é isso: trabalhos incríveis, amores, amigos, viagens”

Não se deixe enganar pelos traços doces e um tanto quanto angelicais de Aurora, personagem de Lara Tremouroux em ‘’Onde Nascem os Fortes’’, cujo episódio final foi exibido nesta segunda-feira, 16. Afinal, as aparências enganam mais do que gostariam e se tem uma coisa que a jovem provou durante a trama foi que ela é, sem dúvidas, uma mulher forte e capaz de liderar o próprio mundo. Em meio a tantas mazelas da vida – lúpus, superproteção dos pais, relacionamentos abusivos -, Aurora desabrochou e transformou-se finalmente naquela que brilha como o ouro, conquistando de praxe no meio do caminho o amor que sempre buscou. ‘’A autoestima é uma construção diária e constante, então eu acho que a gente nunca chega no ideal, mas ela está em um lugar muito mais em paz consigo mesma e se aceitando mais também. Esse é o final que eu torci para ela, principalmente para que ela fosse feliz, não necessariamente que ela estivesse com outra pessoa, mas sim bem e confiante. Finalmente, ela também achou alguém que aceita ela do jeito que ela é, que é o Clécio (Ravel Andrade) e a relação com ele é um amor, uma pureza e eu acho isso ótimo também’’, conta a atriz.

Aurora e Clécio em momento romântico. (Foto: Divulgação)

Antes de chegar ao final feliz, Aurora precisou passar por altos e baixos. Apaixonada, a jovem se deixou levar pela malícia de Plínio (Enrique Diaz), delegado da região, e pela liberdade que o relacionamento poderia oferecer a ela, que vivia presa pelas imposições da mãe Rosinete (Debora Bloch). Em contraste com a relação dos atores nos bastidores, que se conhecem desde que Lara era mais nova devido à amizade com o pai da atriz, a jovem vivia com o delegado, anos mais velho, uma relação marcada por machismo, humilhações e abusos emocionais e físicos. ‘’Esse assunto é bem complexo e minhas opiniões ainda não estão completamente definidas porque eu acho que essa questão da diferença de idade depende muito de várias situações, mas a relação deles é esquisitíssima. Ele era um machista nojento, grosseiro que se aproveitava da vulnerabilidade dela. É uma diferença muito gritante, porque por mais que ela tenha escolhido estar ali talvez tenha sido apenas por causa da vulnerabilidade dela, do momento de não maturidade que ela vive, pela influência de ter alguém que trata ela de igual para igual e não por uma relação de amor genuína. Além disso, ele tem idade para ser pai dela e eu acho que tudo tem limite. Eu espero que agora ele tenha o que merece’’, afirma.

Assustada, Aurora é atacada por ex-namorado Plínio, um homem machista e abusivo. (Foto: Reprodução)

A diferença de idades entre os dois era explícita, e a violência mais ainda. Em diversas cenas, Plínio agredia-a, fosse com uma arma ou com uma palavra preconceituosa sobre o corpo da jovem, marcado pelas manchas da doença. Embora algumas cenas fossem fortes, para a atriz foi de extrema importância o retrato cru e real desse relacionamento para a problematização e conscientização da população de que essa é a realidade de milhares de mulheres no Brasil, o que torna o país o quinto no ranking de feminicídio de acordo com uma pesquisa divulgada pela ONU Mulheres. ‘’O que eu acho legal na série é que é problematizado, não é como se fosse ‘’ai que lindo esse romance’’. Se fosse colocado nesse lugar, talvez eu me preocupasse mais e achasse importante discutir essas questões. Mas é mostrado justamente que ele é esse canalha, o personagem é absurdo  e ela ainda é um contraste muito grande porque ela é uma pureza, ela é uma fofura mas é isso que eu acho legal porque é colocado como uma coisa esquisita mesmo, é para incomodar’’, afirma.

Lara caracterizada de Aurora em ”Onde Nascem Os Fortes”. (Foto: Divulgação)

Como Aurora, além dos relacionamentos abusivos, Lara teve a oportunidade de levantar outras questões que vão para além do poder ficcional da narrativa: os dois lados da moeda –  a superproteção e o preconceito diário – da realidade de uma jovem diagnosticada com lúpus, doença autoimune cuja cura ainda não foi encontrada. Filha de dois pais superprotetores, Rosinete e Pedro Gouveia (Alexandre Nero), a doença é imposta na jovem como um empecilho, de modo que impedia-a de explorar os arredores e ter, na medida do possível, uma vida normal. ‘’Às vezes as pessoas acabam tratando quem sofre dessa doença como se elas fossem de vidro, como se elas fossem quebrar a qualquer momento e isso às vezes acaba subestimando a capacidade delas de lidarem com certas coisas. Fica uma coisa chata para a pessoa porque ela se sente meio infantilizada o tempo inteiro’’, conta. Assim como Aurora, Lara também precisou lidar com o excesso de proteção por parte da mãe, Lorena Silva, mas, diferentemente da personagem, apesar de todas as brigas, ela faz questão de enaltecer esse traço e a relação que construiu com a mãe. ‘’Nós tivemos recentemente uma discussão por causa disso porque eu falei que ela era preocupada demais. Ela acha que não, mas ela é muito mãe e isso na verdade eu acho que é uma das potências, uma das belezas dela. É a mãe mais mãe que eu já vi, ela tem um instinto animal com essa coisa de proteger, sabe?’’, afirma.

Aurora ao lado dos pais, Pedro e Rosinete, e do irmão Hermano. (Foto: Reprodução)

No meio de qualquer caos, por maior que seja, sempre tem uma fresta de luz. E para Aurora não foi diferente. Durante a trama, era difícil pensar nela sem a companheira de todas as horas: a sanfona, que acabou torna-se um personagem a parte. Além de sido um pouco cupida no relacionamento da jovem com o Clécio, já que os dois compartilham do amor pela música, o instrumento foi, por muito tempo, a força que Aurora precisava para lidar com as dores do mundo. ‘’Era algo muito bom para ela, é um escape e uma maneira que ela encontra de colocar as coisas para fora, o que depois com a relação com o Clécio também foi um dos elementos que uniu eles, então eu acho isso bonito’’, diz Lara que não faz nenhuma questão de esconder que aprender sanfona não foi tão fácil quanto imaginava. Embora não saiba tocar, a atriz compartilha um lado musical com a personagem também e busca, assim como ela, uma válvula de escape sempre que pode – até porque a vida real é tão dura quanto a ficcional. ‘’Eu estou tentando me reconectar justamente com isso e voltar a tocar violão que era uma coisa que eu fazia, e eu toco carrão às vezes um pouco em casa também. Quando não estou nas tecnologias que me sugam, os livros também são bons aliados, e eu gosto de escrever. Quando eu viajo sempre faço diário de bordo e escrevo tudo o que estou pensando e sentindo – não assim todo dia, mas quando vem. É uma maneira de você ir fazendo uma terapia.’’

Tudo na vida é uma dualidade, até mesmo nas relações materiais. Para a Aurora, o instrumento era sua chance de se desprender dos limites impostos à ela. Já para Lara, a relação com o material permitiu que ela se conectasse com um dos seus lados íntimos, o paterno, ao tocar a mesma sanfona utilizada pelo pai, o ator Thierry Tremouroux, nas gravações de ‘’Amores Roubados’’, minissérie exibida pela Globo em 2014. “Eu falei pro José Villamarim (diretor) porque ele é super ligado nessas coisas de energias, e ele disse que estávamos conectados. É o trabalho que eu mais estou levando amigos e pessoas. Foi muito bom mesmo’’, lembra a atriz que tem o pai como uma das maiores referências artísticas. Para o pai, a experiência da filha só foi motivo de orgulho e, mesmo de longe, ele fez questão de acompanhar todos os passos da primogênita e da sanfona todos os dias. ‘’Ele ficou super feliz. O meu pai é fofo demais, ele é corujão, então ele assiste a série todos os dias e me manda áudios revoltados com os personagens, é muito engraçado. Ele ficou super babão’’, diz.

Lara Tremouroux caracterizada de Catarina em ”Filhos da Pátria”. (Foto: Divulgação)

Além do pai biológico, Lara teve a oportunidade de fortalecer outra relação paterna nos bastidores. Depois de ter trabalhado como a filha de Alexandre Nero na pele de Catarina em ‘’Filhos da Pátria’’, série exibida em 2017 e que deve retornar para uma segunda temporada ano que vem, a dupla se reencontrou no Sertão de ‘’Onde Nascem os Fortes’’, marcando mais uma parceria. ‘’Eu gosto muito de estar com o Nero, a gente tem uma coisa risonha, um humor parecido, uma coisa leve. A gente fica brincando que ele não vai parar de ser meu pai nunca. Nós somos para sempre’’, brinca. Apesar de jovem, Lara Tremouroux compreende seu privilégio e faz questão de aproveitar ao máximo cada oportunidade que surge de dividir cena com grandes nomes da atuação brasileira. Para ela, que cresceu observando atores da coxia dos teatros, é um aprendizado sem fim assistí-los e com Nero óbvio que não seria diferente. ‘’Ele tem uma capacidade de se transformar e ele é muito potente e confiante. Eu aprendi muito com ele, eu tinha uma coisa de observar as pausas que ele dava sem medo e que são às vezes incríveis e isso é uma das coisas mais lindas dessa série, que é você ter tempo para os silêncios, sabe? Eles existem na vida e não são valorizados na teledramaturgia. Eles são necessários e contam muita coisa também, e o Nero tem isso, ele está presente em todos os momentos, inclusive nos silêncios’’, diz.

Lara posa para um ensaio fotográfico. (Foto: Vinícius Mochizuki)

Com apenas 21 anos, Lara pode dizer que seu destino na arte foi escrito nas estrelas. Filha de dois artistas, Thierry e Lorena, a jovem cresceu rodeada de todos os tipos de influências, e talvez a mais forte de todas tenha sido o teatro. Criança, ela participava das produções dos pais, sempre lá atrás no bastidores, aprendendo e guardando todo o conhecimento para quando pudesse utilizá-lo. Hoje, embora ainda jovem, a atriz já sabe muito bem qual o seu lugar no mundo e não abre mão da sua maior paixão: a arte. ‘’Para mim, a arte é meu lugar, é minha casa. Eu sou uma pessoa que tem um lado tímido e eu me constranjo com muita facilidade, mas quando eu estou em cena eu me sinto confortável. É a paixão da minha vida, eu me sinto muito privilegiada por gostar tanto do que eu faço. Faz parte de mim e não tem Lara se não tem arte, se não tem teatro. Simplesmente não rola para mim. Faz parte de mim mesmo, é inerente, eu preciso’’, declara.

Em busca do sonho, Lara decidiu se aprimorar nas escolas de teatro Catsapá e Casa de Artes de Laranjeiras (CAL), onde explorou seu talento em diversos espetáculos, como ‘’Grease’’ e o ‘’Auto da Compadecida’’, e mais recentemente se arriscou nos corredores da universidade de Artes Cênicas da UniRio. Para muitos a formação acadêmica não é necessária, afinal, talento é natural e não se conquista. No entanto, para a jovem atriz, a escolha ofereceu-lhe uma nova visão de mundo e novos métodos de aprimoramento. ‘’Eu faço uma faculdade pública e é muito bom estar em contato com outras realidades, cidades, famílias que reagiram de outras formas. Às vezes a gente acha que as coisas estão dadas, mas para você ser melhor ator é muito importante estar sempre em movimento, se exercitando, testando, errando, vendo possibilidades, então eu acho que qualquer coisa que eu faça que seja nesse lugar de estudo, de exercício, de prática vai me tornar uma artista melhor’’, afirma.

Lara posa para um ensaio fotográfico. (Foto: Vinícius Mochizuki)

Mesmo com uma crescente carreira na televisão, Lara sempre busca voltar para este lugar do teatro, onde tudo começou para ela, não só para manter o pé no chão como também para reforçar como artista a força da arte que produz, principalmente em um contexto no qual a falta de incentivo e patrocínio é um grande obstáculos para a manutenção cultural do país. ‘’Fazer teatro e viver só de teatro não é fácil. Nós temos que falar sobre ele, mas principalmente fazer. Numa hora dessas, é muito difícil, mas tem que fazer teatro, tem que ultrapassar todas essas coisas, todos esses empecilhos e eu digo isso até para mim também. Fazer teatro é um ato de resistência e é um ato político’’, reflete.

Seja na televisão ou nos palcos, Lara Tremouroux já provou que é capaz de ir sempre além na arte que se compromete em fazer e entendeu o poder que tem como artista é capaz de mover barreiras e paradigmas. ‘’Tem um lugar meu que é da Lara pessoa de usar essa oportunidade que eu ganho como artista para falar de assuntos que eu acho importante, como os preconceitos, as intolerâncias, é algo que vem de ser pessoa pública. Como artista meu lugar também é de emocionar, de fazer as pessoas acreditarem, de poder contar histórias diferentes e se transformando e sempre aprendendo’’, afirma a atriz que sempre busca interpretar personagens que assumem a complexidade humana.

Feminista em construção, a luta das mulheres é uma das pautas sobre as quais a atriz faz questão de abordar em seu trabalho. Na pele da Aurora, Catarina, Sandrinha e tantas outras personagens, Lara constrói um currículo carregado de empoderamento feminino, entrando para o time de atrizes que estão contribuindo para a transformação na representatividade feminina nas telinhas – que quando é feita, na maioria das vezes, reforça o estereótipo machista marcado pela objetificação e sexualização. ‘’Representatividade é tudo. Às vezes, eu acho que as pessoas não entendem a importância e o quanto é efetivo, o quanto funciona você ter representatividade em tudo. O caso das mulheres ainda é um específico, que é o meu lugar de fala, mas ainda faltam as mulheres negras, por exemplo. Tem milhões de outras esferas que ainda precisam ser ocupadas e tem espaço, só precisamos colocar. Eu acho muito importante essas mulheres empoderadas e diversas que tem na televisão’’, declara a atriz que se sente inspirada pelo discurso realizado pela atriz afro-americana Viola Davis ao ganhar o Emmy de Melhor Atriz em 2015. Sempre em busca de reforçar o debate, principalmente com relação a este tópico, ao lado de uma das suas inspirações femininas e feministas, Mariana Lima, a atriz irá explorar exatamente essa questão da representatividade no próximo trabalho, que, segundo ela, ainda está em fase de negociações e, portanto, sem spoilers por enquanto.

Engajada em assuntos sociopolíticos, a atriz também abre espaço no seu trabalho e redes sociais para outras bandeiras, como causas LGBT e da esquerda política, sem medo das possíveis críticas e comentários preconceituosos. Assumida desde o fim do ano passado, Lara, diferente de muitos integrantes da comunidade LGBT, teve um processo de aceitação pessoal natural e foi muito bem recebida pelo público, embora pessoas próximas tenham tido certo receio com relação ao futuro da carreira da jovem. ‘’Eu sempre lidei de forma natural. Em relação a postar fotos, eu falava ‘’Gente, eu vou andar de mãos dadas na rua se eu estiver namorando com homem ou mulher’’, então não faz sentido eu esconder isso porque era impensável eu viver uma realidade na qual iria ficar me escondendo. Isso não vai acontecer e já teve gente me falando que eu iria perder trabalho por isso… bom, que pena de quem vai deixar de chamar alguém por causa disso porque isso não define nada com relação a minha atuação ou a minha pessoa, então para mim foi uma coisa tranquila’’, conta a atriz que, apesar do preconceito ainda existente, acredita que os tempos estão mudando.

Ariana convicta – sim, ela tem quatro planetas regidos por áries -, Lara Tremouroux sabe muito bem o que quer em todos os âmbitos que se dispõe ocupar – arte, política, relacionamentos, e por aí vai -, e coloca a boca no trombone sem medo de ser feliz. É desse jeito que, para a infelicidade daqueles que achavam que se afirmar no mundo pela sua arte e figura pública seria um tiro no pé, tem colhido os frutos do seu esforço e talento. ‘’Eu estou em uma fase muito boa, eu estou muito feliz. Faz um tempo que eu me sinto bem sortuda. Eu já falei tantas vezes que sou tão apaixonada pelo o que eu faço que quando vão me dando esses trabalhos incríveis eu vou ficando muito feliz’’, diz. No meio de tantas incertezas, principalmente no destino político do Brasil, pelo menos uma certeza Lara ainda tem na vida: ‘’Eu espero que continue essa onda porque sempre que eu escrevo e penso sobre o que eu quero é isso: trabalhos incríveis, amores, amigos, viagens. É isso e para mim está bom!’’