*por Vítor Antunes
“Buba demorou mais de 20 anos para se decidir pela cirurgia que a transformou, definitivamente, em mulher“, dizia a matéria da Revista Manchete tratando sobre um tema inédito nas novelas. O hermafroditismo [sic]. Hoje tida como inadequada, a expressão deu vez a outra. Para se referir à pessoa que convive com elementos característicos de ambos os sexos, o mais adequado é o termo guarda-chuva intersexual, ainda que a utilização de “hermafrodita” não seja exatamente errônea, segundo Thais Emilia de Campos dos Santos, psicanalista e presidente-fundadora da ABRAI (Associação Brasileira Intersexo), órgão que se dedica à defesa dos direitos civis de pessoas intersexo e promove mais de 600 atendimentos diretos e mais de 2 mil indiretos. “O hermafroditismo verdadeiro é uma condição biológica que existe. As pessoas negam, mas está ali. É uma condição médica. A própria ABRAI atende cinco pessoas que são hermafroditas verdadeiras”.
A questão intersexo poderia ser debatida até em programas infantis, afinal é uma condição biológica congênita. É muito triste fazerem esse apagamento da única personagem intersexo que já teve em uma novela brasileira. A gente tem recebido inúmeras queixas e angústias de pessoas intersexo desde que foi anunciado que a Buba não seria mais assim. Por que não fazê-la trans intersexo, por exemplo? – Thaís Emília Campos dos Santos, presidente da ABRAI
Em 1993 , Buba (Maria Luísa Mendonça) trouxe à tona esse debate na primeira versão da novela “Renascer”. Porém, mesmo àquela época, ainda que sob a ótica da novidade, não gerou tanta discussão como se supunha. Na Revista Manchete, apenas uma matéria sobre. No Jornal do Brasil, não chegam a dez. E agora, na nova versão, a personagem deixa de ser intersexo e passa a ser uma mulher trans interpretada por Gabriela Medeiros. Neste caso, estaria a pauta da transexualidade se sobrepondo e talvez até invisibilizando a do intersexo? Para o jornalista e Mestrando em Comunicação com ênfase em questões LGBT pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Mário Camelo, não. “Falar que uma pauta que precisa de visibilidade silencia outra, não está certo, porque a transgeneridade também precisa ser vista. Porém, creio que a personagem poderia ter sido mantida como intersexo, seria interessante discutir isso hoje em dia”. Fala da qual se coaduna Thaís, da ABRAI: “Não se pode fazer uma luta apagando a outra. Por quê não fazer a Buba trans intersexo?”, questiona. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), entre 0,05% e 1,7% da população mundial nasce com características intersexo — o que pode significar até 3,5 milhões de pessoas apenas no Brasil.
Thaís Emília salienta que o desconhecimento sobre a questão intersexo reforça o preconceito: “Há muito, desde a gestação. Sugerem que interrompamo-la porque o bebê é intersexo, fora as violências obstétricas… Quando nasce um bebê intersexo, o hospital inteiro fica tentando tirar foto do genital da criança escondido da mãe, além de termos dificuldades para coisas elementares como emitir a certidão de nascimento deles. Hoje as crianças intersexo não têm direito a CPF. A emissão da certidão de nascimento para bebês intersexo, foi por causa da história do meu filho, que teve um impacto, tanto que chegamos ao STF, ao CNJ e hoje é possível registrar bebês intersexo”. No último dia 30 de janeiro, a União recebeu a tarefa de fazer alterações em seus formulários relacionados ao registro/alteração de CPFs de indivíduos LGBTQIA+. Isso deve ser feito dentro de um prazo de 180 dias. A intenção é reconhecer a diversidade de estruturas familiares e identidades de gênero, assim como a existência de pessoas intersexo.
“O BEBÊ AQUI DO LADO É HERMAFRODITA!”
Conta-nos Thaís que as violências começam “desde o nascimento. Há as cirurgias precoces sem consentimento, as cirurgias estéticas que são propostas nos primeiros meses de vida – e que na verdade não são propostas, mas impostas como se não houvesse outra forma de viver”. À Revista Marie Claire em abril de 2023, Thaís contou sobre a sua própria experiência com a intersexualidade. Era esta a condição do seu filho, Jacob. Ela sempre soube que seu filho convivia com a condição. “O médico me disse que, onde eles viam um pênis, parecia um clitóris aumentado”. Já ao parto, Thaís prosseguiu dizendo lembrar de “uma mãe me perguntar se meu bebê era menino ou menina, e eu dizer que não sabia. Nessa hora, ela gritou pela porta: ‘O bebê aqui do lado é hermafrodita’. Essa reação, para mim, foi como uma violência. A privacidade acabou. O impacto social foi grande. Chegou ao ponto de pedirem fotos dele durante o banho ou troca de fralda, por curiosidade”.
Pouco resolutivas as discussões sobre o gênero de Jacob, acabaram por impedir a emissão de documentos como Certidão do Nascido Vivo (CNV) e até mesmo CPF. O registro do menino só veio depois do exame de cariótipo, que avalia os cromossomos, o que apontou que o filho de Thaís era do sexo masculino. Sem documentação, a mãe não teve direito à licença-maternidade e o menino ficou desamparado de plano de saúde e/ou cartão do SUS. “Era como se Jacob não existisse. Crianças intersexo são invisíveis”. Antes de saber que Jacob era do gênero masculino, porém, houve uma sugestão radical da junta médica. “Propuseram: ‘Se ele for XX, fazemos uma vagina e você educa como menina. Se for XY, fazemos um pênis e você educa como menino’. Na hora, questionei se a cirurgia era necessária. E se ele for XXY (Indicativo da Síndrome de Klinefelter)? Sou educadora e sei que a criação não tem o poder de mudar a identidade de uma pessoa”, disse à Marie Claire. Naquela época, no Brasil, não era permitido o registro de pessoas intersexo, já que a Lei de Registros Públicos determina ser obrigatória a informação do sexo biológico no momento do nascimento. Jacob morreu em 2018, pouco antes de completar 1 ano e 8 meses de vida. O dia 26.09 marca a data Conscientização Contra a Mutilação Infantil, e foi o dia do nascimento do menino.
Um grande preconceito que as pessoas intersexo sofrem hoje é, por exemplo, o de que a novela apague a existência da personagem Buba. É uma forma de preconceito, de apagamento. Eu entendo como intersexofobia – Thais Emilia de Campos dos Santos, presidente da ABRAI
Eu acho muito difícil uma novela trazer esse assunto. Talvez o autor da novela não esteja querendo arriscar a falar sobre esse isso de um jeito aberto [no remake]. Ainda é um tema do qual não se fala muito na mídia, na imprensa. E, bem ou mal, a transgeneridade é um tema que já é mais recorrente nas novelas – Mário Camelo, jornalista e acadêmico
Benedito Ruy Barbosa, autor de “Renascer” declarou em entrevista ao Jornal do Brasil nos Anos 1990 que “Buba realmente é um personagem complicado, mas quero lidar com ela com o maior tato, colocando o amor acima de tudo. (…) Não estou lidando com esse problema [sic] de maneira sensacionalista. Essa é uma situação verdadeira, a despeito de ele/a ter um apêndice masculino e o namorado achar que ele é um travesti. Buba é mulher e é mulher pacas!”, disse. Ainda que hoje possa parecer uma fala problemática, e talvez seja, ela é mais razoável que a que o próprio Benedito deu quando da estreia de “Velho Chico“, em 2016 ao afirmar “odiar história de bicha“, o que causou grande celeuma na comunidade LGBTQIAPN+.
Pela estranheza do personagem eu sabia que Maria Luísa Mendonça, ia fazer bem – Luiz Fernando Carvalho, diretor de “Renascer”, em 1993.
ESTRANHOS NO PARAÍSO
“Ela não teme ser hermafrodita“, era uma das manchetes do Jornal do Brasil, que apresentava não apenas a personagem da então nova novela das 21h, mas a atriz Maria Luísa Mendonça na televisão. Uma matéria publicada em O Globo, em 1995 destaca alguns atores ainda pouco conhecidos do grande público naquela ocasião, por virem do teatro, e que por isso eram escolhidos para fazer personagens como Buba, ou Sarita Vitti – personagem hoje compreendida como trans e interpretada por Floriano Peixoto em “Explode Coração” (1995). Eles eram escalados, segundo a reportagem, por não terem uma imagem tão sólida como a de um ator de televisão que poderia se “queimar com personagens esquisitões”, diz a matéria, cujo título é o que abre este segmento da reportagem: “Os Estranhos no Paraíso da TV”.
Para quem vem do teatro, não é tão difícil fazer um papel como este por que não se tem imagem nenhuma – Floriano Peixoto, em 1995
Também problemática à visão de hoje, Marina Colasanti disse em crônica do JB, algo definitivo sobre a abordagem à Buba de então: “Os gregos e romanos mandaram matá-los. Alguns povos os reverenciam. Nós os levamos para a televisão”. A intersexualidade ainda é um tema de porta entreaberta. Houve especialistas que se negaram a dar depoimento para esta reportagem. E hoje, ainda que se discuta todo tipo de tema, se problematiza e se reivindica protagonismo, “Renascer” faz ressurgir, também, o silêncio.
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