Horace Lannes: mostra do maior figurinista argentino celebra uma Buenos Aires que já foi Olimpo das divas latinas


Se a política econômica argentina parece uma montanha russa, com subidas e descidas dramáticas, a exposição sobre o “figurinista das estrelas” atenua o baixo astral vivido pelos “hermanos’ ao tirar do baú modelos eternizados pelo cinema de uma Argentina opulenta

* Por Flávio Di Cola, direto de Buenos Aires

Para quem está com viagem marcada para a metrópole portenha até o dia 24 de agosto e pronto para mergulhar no seu glorioso passado de capital do cinema latino-americano e do music hall durante as primeiras décadas do século XX, não pode passar ao largo da exposição “Horace Lannes. Elegancia y glamour en el cine argentino” em cartaz no Museo Nacional de Arte Decorativo (MNAD), instalado desde 1937 no antigo palácio em estilo eclético francês da família Errázuriz Alvear – um dos mais vistosos expoentes do patriciado argentino – e onde, durante décadas, encenou-se a mais refinada vida social durante o sonho dos buenairenses de que viviam numa Paris abaixo do Equador.

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Horace Lannes nasceu em Buenos Aires em 1931. E como todo jovem de classe média da sua geração e habitante da mais importante, próspera e cosmopolita cidade do Hemisfério Sul, ele gastava grande parte do seu tempo no escurinho dos magníficos e monumentais cinemas da capital, quase todos inaugurados na Calle Lavalle entre as décadas de 1920 e 1940. Chamada a partir de então de “calle del cines”, a Lavalle chegou a abrigar 15 cinemas simultaneamente, cujos números de assentos seriam humilhantes para qualquer sala de hoje. O Cine Atlas, por exemplo, recebia 1900 pessoas que não tinham razão para reclamar das condições de visibilidade, já que a sua tela alcançava 23 metros de largura por 10 metros de altura. Hoje, quase todos esses templos da Sétima Arte desapareceram, dando lugar a restaurantes fast food, igrejas evangélicas e lojas populares. Eventualmente, se o flâneur nostálgico desses tempos não for atropelado pelos pedestres apressados, poderá encontrar – no chão da calçada da outrora mítica rua – uma e outra placa de granito que identificam os locais onde jaziam os antigos cinemas antes das suas demolições criminosas. Lannes, que testemunhou dezenas de estreias no velho estilo hollywoodiano nas salas do centro da cidade em que as atrizes chegavam elegantérrimas enquanto eram ovacionadas pelos fãs, lamenta: “A Calle Lavalle é hoje uma tristeza.”

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Todavia, foi dentro desses “palácios de ilusões”, monopolizados pelas películas de Hollywood e do México, que se formaram a cultura e o imaginário cinematográfico de Horace Lannes, povoados pelos luxuosos musicais art déco da dupla Fred Astaire e Ginger Rogers, ou pelos poderosos melodramas femininos que arrastavam multidões diante dos olhos de Bette Davis, das ombreiras de Joan Crawford ou das sobrancelhas arqueadas da super estrela mexicana Maria Félix. E os looks desenhados por Adrian, Helen Rose, Travis Banton e Edith Head para cobrir e divinizar as heroínas das telas acabaram por fazer uma festa na cabeça do jovem Lannes: “Quando eu chegava em casa, depois do cinema, começava a desenhar o que eu tinha visto, os adornos, os vestidos, tudo”, relembra.

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Num episódio digno de um filme da seção da tarde, Horace Lannes ganhou, aos 21 anos, um concurso para criar os figurinos do filme “La mujer de las camelias” protagonizado pela estrelíssima Zully Moreno (1920-1999), uma voluptuosa versão portenha de Rita Hayworth (esta, aliás, nascida Margarita Carmen Cansino), cuja filmografia inclui títulos tão suculentos quanto intraduzíveis para outros idiomas, como “Nunca ti diré adiós” (1947), “Dios se lo pague” (1948), “Me casé com uma estrella” (1951), “La indeseable” (1951) ou La calle del pecado” (1954). Se a glória de Zully Moreno acabou com o fim do regime peronista, a de Lannes como principal figurinista do cinema argentino começou logo em seguida e se estendeu por mais de 100 filmes de quase todos os gêneros, épocas e orçamentos, além de uma destacada atuação no teatro. Sua importância e talento não foram se esmorecendo com o tempo, pois aos 73 anos ainda arrebatou o prêmio de Melhor Figurinista da Asociación de Cronistas Cinematográficos de la Argentina pelo filme “Ay, Juanito” (2004) que narra a atribulada trajetória de Juan Duarte, irmão de Eva Duarte Perón. Algumas peças do premiado vestuário dessa caprichada produção de época estão presentes na exposição no MNAD.

Zully Moreno, uma das estrelas máximas do cinema argentino , uma Rita Hayworth portenha (Foto: Reprodução)

Zully Moreno, uma das estrelas máximas do cinema argentino , uma Rita Hayworth portenha (Foto: Reprodução)

Aliás, um dos pontos fortes dessa mostra – além de sua extensão e variedade – é o fato de que os figurinos criados por Horace Lannes se espalham pelos vários salões da antiga morada do casal Josefina de Alvear e Matías Errázuriz – inaugurada em 1918 com uma festa tremenda – e se misturam naturalmente à fabulosa coleção de arte acumulada na Europa durante os anos em que Matías trabalhou para o serviço diplomático argentino na Paris da Belle Époque. Assim, os visitantes do museu usufruem de um duplo prazer: percorrer os cinquenta anos da carreira de Lannes e encher os olhos com uma das mais ricas coleções de arte originalmente privadas, numa época em que a Argentina era o celeiro do mundo e um país controlado por um punhado de poderosíssimos clãs.

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A exposição também é uma viagem a uma época em que a palavra “diva” tinha um significado muito preciso, implicando uma árdua agenda de obrigações para aquelas que a representavam, o que incluía a criação e a manutenção de uma imagem absolutamente impecável e em sintonia com as ideias mais delirantes e arbitrárias do que o público imaginava ser uma vida estelar. Horace Lannes foi um dos mais talentosos artífices desse conceito clássico de divismo que definiu o grande espetáculo cinematográfico e teatral durante boa parte do século XX, mas sem se esquecer das necessidades artísticas e dramáticas específicas de cada projeto de que participou, e mesmo dos anseios de elegância das várias gerações de mulheres que influenciou através do seu olhar e do seu traço. Sobre como a sua arte chegava às ruas, ele declara: “Naquela época não havia tantos meios de difusão de moda como hoje ocorre graças à televisão, mas tão logo meus vestidos saíam nas revistas, as mulheres os levavam às modistas.”

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Como um dos últimos remanescentes de um ideal de elegância cada vez mais distante e menos possível para a realidade do mundo de hoje – e talvez exatamente por isso –Horace Lannes continua exalando um charme sutil e raro que ainda encanta mulheres e homens de todas as gerações que têm tido a ventura de encontrá-lo pessoalmente nos salões dourados dos Errázuriz Alvear durante a temporada da mostra. Reconheça-se: um privilégio que só Buenos Aires pode desfrutar.

“La Calle de Los Cines”

Serviço:

“Horace Lannes. Elegancia y glamour en el cine argentino”

Museo Nacional de Arte Decorativo

Av. del Libertador, 1902, Buenos Aires

De terça-feira a domingo, das 14h às 19h. Até 24 de agosto

* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul , capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria