“Histórias de Arcanjo” exibe um Tim Lopes que imortaliza o arquétipo do jornalista investigativo


Bruno Quintella, filho único de Tim Lopes, procura a verdade sobre seu pai através de depoimentos com colegas de profissão e personagens do jornalista

*Por João Ker

Entre os dias 2 e 5 de junho de 2002, o Brasil acompanhou fervorosamente as investigações sobre o desaparecimento do jornalista Arcanjo Antonio Lopes do Nascimento, mais conhecido como Tim Lopes. Com cobertura massiva da mídia, que pressionava as autoridades a capturarem os responsáveis pelo seu assassinato, o nome do repórter ficou mais conhecido em 3 dias do que nos seus 30 anos de labuta. Quando sua morte foi inevitavelmente anunciada e seus algozes devidamente presos meses depois, Tim Lopes rapidamente se transformou em um mártir do jornalismo investigativo e muito se falou dele nos anos seguintes, sobretudo nos meios acadêmicos, onde professores de jornalismo trazem até hoje à tona as questões sobre o exercício da profissão e seus perigos decorrentes. Sua trajetória, enquanto importante artífice dessa vertente no métier, bem como um debate profundo sobre ética e até onde se deve ir em uma investigação, costumam ser recorrentes nas salas de aula. Já as histórias precedentes ao seu assassinato provavelmente ficariam enterradas e inertes na memória brasileira, não fosse o documentário “Histórias de Arcanjo”, que chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (5/6), exatos doze anos após sua execução.

Cartaz de "Histórias de Arcanjo" (Foto: Divulgação)

Cartaz de “Histórias de Arcanjo” (Foto: Divulgação)

O filme dirigido por Guilherme Azevedo segue Bruno Quintella, o único filho de Tim, em uma jornada para descobrir “quem foi Tim Lopes?”. Para isso, ele vai em busca dos depoimentos de delegados, repórteres, familiares, fotógrafos, policiais e até moradores do Complexo do Alemão, lugar onde seu pai foi capturado pelos criminosos. Como um personagem de tragédia grega, Bruno tem sede de detalhes sobre todos os aspectos da vida do Arcanjo e, quanto mais ele descobre, melhor para o público.

Ao longo de mais de uma hora, o espectador é transportado ora para o ano em que Tim morreu, ora para os bastidores de célebres reportagens que o jornalista fez na TV Manchete, no Jornal do Brasil ou na própria Rede Globo. Claro, o objetivo aqui não é desvendar o assassinato do Arcanjo – feito já realizado há anos pela polícia -, mas sim coroar o prtotagonista como exímio jornalista implacável na cobertura investigativa e no faro de detetive que nutria desde criança.

Tim Lopes e os meninos de rua (Foto: Divulgação)

Tim Lopes e os meninos de rua (Foto: Divulgação)

Mesmo tendo nascido em Pelotas, Tim Lopes era, dentre muitas coisas, essencialmente carioca. Assume-se aqui que, para ser carioca, basta reunir uma série de atributos como determinação de espírito e certo estilo de vida que transcende a localização geográfica do seu nascimento: boêmio, amante do samba, amigo de moradores de rua e habitual corredor da orla de Ipanema. Todas essas características favoreciam o jornalista em seus disfarces para as coberturas reveladoras e marcantes, que podiam tanto abordar prostitutas, moradores de rua e assaltantes, quanto surfistas e vítimas do crime.

O documentário engloba várias esferas da vida do repórter e traça um perfil que dificilmente não ganhará a empatia do público. Apesar de entrevistar muitos envolvidos na fatídica reportagem que causou a sua morte e no próprio acontecimento em si (desde repórteres e delegados até moradores do Alemão que viram o jornalista de tocaia na época do crime), um elemento crucial para o caso fica ironicamente de fora do documentário. A Rede Globo, organização para quem Tim Lopes estava a serviço quando foi cruelmente executado, não é minimamente citada ou sequer procurada, nem sua responsabilidade sobre a segurança de seus funcionários é questionada no documentário. As acusações feitas pelos sua colega, Cristina Guimarães, são solenemente ignoradas e, para quem as conhece, fica um certo aroma de incompleto no produto final.

Ainda assim, “Histórias de Arcanjo” pode ser encarado como uma aula de jornalismo via sétima arte e, também, um compêndio sobre como realizar cinema documental. Ou ainda uma biografia póstuma de alguém tido como um dos maiores profissionais que já trabalharam no Brasil. É difícil não se sensibilizar com os depoimentos emocionantes dos familiares e com as memórias do próprio Bruno sobre o pai. O filme dá luz a um legado que merece ser lembrado por gerações e se torna obrigatório no aprendizado da profissão.

Mas, acima da profissão em si, é um relato que interessa a espectadores de todas as áreas e níveis sobre como ser obstinado por aquilo que se faz e o quanto o amor ao seu trabalho pode levar alguém à mais completa ruína, no sentido literal da expressão. Tim exemplifica algo comum no meio jornalístico: a priorização da competência e da excelência de um trabalho, em detrimento de outros aspectos como o amor próprio e a prudência com o ego. E, mais do que isso, reaviva na memória da plateia uma época em que jornalistas precisavam se preocupar mais com as ameaças dos criminosos do que com a censura arbitrária da polícia militar em manifestações de rua. Uma época em que jornalistas iam às ruas ao invés de ficarem sentados em frente ao computador obtendo suas “verdades inquestionáveis” através de Google ou Wikipédia.

Além de tudo, o longa-metragem se mostra em sintonia com aquilo que o cinema sabe fazer de melhor: permite que se estabeleça, através da força contundente de uma narrativa plena de recursos audiovisuais, mais um arquétipo na cabeça dos espectadores, estilizando a função do jornalista investigativo como mais um mito a ser decorado pelo grande público. Sim, Tim Lopes saiu das páginas policiais direto para o imaginário popular como um obcecado mártir da profissão, assim como Vladimir Herzog. E, nessas decodificações e estereotipações do profissional de jornalismo, o documentário agora em cartaz vai fundo e adiciona o seu quinhão de contribuição.

Trailer oficial de “Histórias de Arcanjo” (Divulgação)